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Não conheço documentação fidedigna que afirme taxativamente que no princípio, no jogo da capoeira só havia golpes. Entretanto, uma observação dos fatos me leva a crer que o acompanhamento musical não existia, conseqüentemente os toques teriam vindo depois e se adaptado aos golpes e a eles ficado intimamente ligados, a ponto de haver hoje golpes com nome de toques e vice-versa. Em princípio, até que nossos tenha conhecimento de documento em contrário, o que me levou a pensar num jogo de capoeira sem toques foi, de um lado, o fato de ainda hoje, se bem que mui raro, se jogar capoeira sem acompanhamento musical. Mestre Bimba, por exemplo, não admite o berimbau no começo do aprendizado, isso só acontecendo na terceira fase, a que chama seqüência com berimbau, sem se falar nos discípulos já formados, que jogam durante um tempo enorme, usando todos os golpes necessários, sem que se ouça uma nota musical qualquer, partida de um dos instrumentos musicais da capoeira.

Por outro lado, temos as escassas informações deixadas pelos cronistas e viajantes que por aqui passaram. Todos eles, quando se referem à capoeira, são unânimes em falar isoladamente do jogo sem o toque; ou do berimbau, 59 hoje instrumento principal da

capoeira, mas sem a ela se referirem. Rugendas, por exemplo, embora traga uma ilustração do jogo de capoeira, acompanhado por atabaque, no texto se restringe exclusivamente ao jogo, que chama de Kriegsspiel (brinquedo guerreiro), como se vê neste lance:

Viel gewalltsamer ist ein anderes Kriegsspiel der Neger, jogar capoeira, das darin besteht, dass einer den andern durch Stösse mit dem Kopf auf die Brust, denen sie durch gewandte Seitensprunge und Pariren ausweichen, unzuwerfen sucht, indem sie fast wie Böcke gegenaienander anspringen und zuweilen gewaltig mit den Köpfen geneinander rennen.115

A mesma coisa aconteceu com Debret que descreve o berimbau sob o nome de urucungo, mas sem se referir ao jogo da capoeira.116

Há no acompanhamento musical toques que se poderia chamar de gerais, porque são comuns a todos os capoeiras, os quais são executados ao lado de outros que são particulares

de determinada academia ou mestre de capoeira. Também acontece, e não raro, um mesmo toque, apenas com denominação diferente entre os capoeiras. Para que se tenha uma ideia, recolhi o nome dos toques de alguns capoeiras, que ainda atuam com frequência na Bahia, como:–

Mestre Bimba ( Manoel dos Reis Machado )

• São Bento Grande

• Benguela

• Cavalaria

• Santa Maria

• Iuna

• Idalina

Canjiquinha (Washington Bruno da Silva)

• Angola

• Angolinha

• São Bento Grande

• São Bento Pequeno

• Santa Maria • Ave Maria • 60 • Samongo • Cavalaria • Amazonas • Angola em gegê

• São Bento Grande em gegê

• Muzenza

• Jogo de Dentro

• Aviso

Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha)

• São Bento Grande

• São Bento Pequeno

• Angola

• Santa Maria

• Cavalaria

• Amazonas

• Iuna Gato (José Gabriel Goes)

• Angola

• São Bento Grande

• Jogo de Dentro

• São Bento Pequeno

• São Bento de Dentro • Angolinha • Iuna • Cavalaria • Benguela • Santa Maria

• Santa Maria Dobrada

• Samba de Angola

• Ijexá

• Panhe a laranja no chão tico-tico

• Samongo

• Benguela Sustenida

• Assalva ou Hino

61 Waldemar (Waldemar da Paixão)

• São Bento Grande

• São Bento Pequeno

• Benguela • Ave Maria • Santa Maria • Cavalaria • Samongo • Angolinha • Gegê • Estandarte • Iuna

Bigodinho (Francisco de Assis)

• São Bento Grande

• Cinco Salomão

• São Bento Pequeno

• Cavalaria

• Jogo de Dentro

• Angola

• Angolinha

• Santa Maria

• Panhe a laranja no chão tico-tico Arnol (Arnol Conceição)

• São Bento Grande

• Angola

• Jogo de Dentro

• Angolinha

Traíra (João Ramos do Nascimento)

• Santa Maria

• São Bento Pequeno

• São Bento Grande

• 62 • Angolinha • Cavalaria • Jogo de Dentro • Angola Dobrada • Angola • Angola Pequena

• Santa Maria Regional

• Iuna

• Gêge-Ketu

Como se vê, em todos eles há uma constância nos toques São Bento Grande, São Bento

Pequeno, Cavalaria, Iuna e Benguela. Como já tive oportunidade de dizer, os toques

divergentes dos comuns raramente constituem um toque totalmente diferente dos demais. Via de regra, é um já existente, apenas com outro rótulo ou então uma ligeira inovação introduzida pelo tocador, fazendo com que se dê um nome novo. A denominação de alguns toques da capoeira está ligada a determinados povos ou regiões africanas pura e simplesmente pelo nome, ou são toques litúrgicos ou profanos de que a capoeira se valeu, como Benguela, Angola, Ijexá e Gêge, isso sem se falar nas combinações Angola em Gêge e Gêge-Ketu. Antigamente, segundo capoeiristas idosos, o toque chamado na capoeira de Gêge era o toque dos povos gêges (Dahomey) chamado bravun, toque litúrgico, específico do deus Oxumarê, o Arco íris e que na capoeira era tocado em atabaque, conforme a ilustração de capoeira existente em Rugendas117 No toque Ijexá, na capoeira de Gato (José

Gabriel Goes), o nome é apenas um rótulo, pois o toque em si é uma alteração dos já conhecidos. Entretanto, em Caiçara (Antônio da Conceição Morais), quando em exibição para turistas, é o toque litúrgico característico dos povos ijexás, tocado para alguns deuses, que Caiçara toca no 63 berimbau e aplica na capoeira. Quanto às combinações nada têm a

ver senão nas denominações. O toque chamado aviso, usado pelo capoeira Canjiquinha (Washington Bruno da Silva), segundo seu mestre Aberrê era usado por um tocador que ficava num oiteiro vistando a presença do senhor de engenho, capitão do mato ou da polícia. Tão logo era sentida a presença de um deles os capoeiras eram avisados através desse toque. Em nossos dias, o comum a todos os capoeiras é o chamado cavalaria usado para denunciar a presença da polícia montada, do conhecido Esquadrão de Cavalaria, cuja grande atuação na Bahia foi no tempo do chefe de polícia chamado Pedrito (Pedro de Azevedo Gordilho), que perseguia candomblés e capoeiristas passando para o folclore, através da imaginação popular, em cantigas como:–

19

Toca o pandeiro Sacuda o caxixi Anda dipressa

Qui Pedrito Evém aí.

Ou então estoutras, colhidas por Camargo Guarnieri, da boca do povo de Salvador, cuja letra da primeira se refere a uma das perseguições sofridas pelo famoso babalorixá Procópio de Ogun Já (Procópio Xavier de Souza):–

20

Não gosto de candomblé Que é festa de feticêro Quando a cabeça me dói Serei um dos primêros Procópio tava na sala Esperando santo chegá Quando chegou seu Pedrito Procópio passa pra cá Galinha tem fôrça n'asa O galo no esporão Procópio no candomblé Pedrito é no facão

64 21

Acabe co’êste Santo Pedrito vem aí

Lá vem cantando ca o cabieci Lá vem cantando ca ô cabieci.118

O capoeirista Canjiquinha tem um toque com a denominação de Muzenza, que não é senão o toque jogo de dentro. Na Bahia, Muzenza é o nome que se dá à noviço nos candomblés de “nação” Angola. Quando ela aparece em público para dar o nome de seu orixá (deus), canta-se uma cantiga de saída de Muzenza, onde ela vem dançando uma coreografia ligeiramente curvada. Com base nessa coreografia, a malícia popular resolveu caricaturar a dança, aumentando a curvatura do corpo, dando a impressão que se vai ficar de quatro pés. Com isso se vê, constantemente, a brincadeira entre dois homens, quando um pede qualquer coisa ao outro, então o que não quer dar responde: – “só dançando muzenza…”, isto é só ficando em posição de quatro pés, para ser possuído sexualmente. Indaguei de Canjiquinha por que deu o nome de muzenza ao toque jogo de dentro, respondeu-me que apenas por deboche. Panhe a laranja no chão tico-tico é um toque de berimbau, que tem o nome de uma roda infantil, espalhada em todo o território nacional, cuja música é tocada no berimbau e a letra cantada nos jogos de capoeira. A roda, além de passar a ser cantiga de capoeira, deu nome a um toque. A letra tem o seguinte texto:

Panhe a laranja no chão tico-tico Meu amo foi simbora eu não fico

Minha toalha é de renda de bico Panhe a laranja no chão tico-tico.

Bigodinho (Francisco de Assis) inclui, entre os seus toques, um chamado Cinco Salomão, que é executado quando há um crime entre capoeiras, para que o criminoso fuja. Cinco

Salomão é uma corrutela de Signo Salomão, que é uma estrela de cinco pontas, também

conhecida por 65 Estrela de Salomão, qual se trasladou dos textos bíblicos, para ser usada

na maçonaria, espiritismo, capoeira e outras coisas que a imaginação popular pode inventar. Os toques da capoeira, em sua quase totalidade, já foram recolhidos e gravados comercialmente, como é o caso das gravações de Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado), Curso de Capoeira Regional, grava do por J. S. Discos, Salvador, Bahia; Traíra (João Ramos do Nascimento), Capoeira, gravado pela Editora Xauã, São Paulo; Camafeu de Oxossi (Apio Patrocínio da Conceição), Capoeira, gravado pela Continental, Rio de Janeiro/ Guanabara e mais tantos outros.

Quanto aos golpes, esses, mais que os toques, uns desapareceram, outros sofreram transformações substanciais e novos apareceram totalmente desvinculados do processo de formação, que originou os golpes primitivos, como é o caso dos golpes da chamada capoeira regional que, usando de elementos importados, conseguiu perfazer um todo de 52 golpes. A semelhança dos toques, há um certo número de golpes, que são comuns a todos os capoeiras como rabo de arraia, aú, armada, rasteira, jogo de dentro, cabeçada, meia

lua, em suas várias modalidades, de frente, costa, compasso, baixa, média, alta e mais

alguns golpes. A exemplo do que fiz com os toques, darei alguns golpes, recolhidos de alguns capoeiras de nossos dias:–

Mestre Bimba (Manoel dos Reis Machado)

• Duas de frente • Armada • Queda de cocorinha • Negativa • Saída de aú • Dois Martelos • Benção • Dois godeme • Galopante • Arrastão • Arpão de cabeça • Joelhada

• Meia lua de compasso

• Vingativa • Saída de rolé • Banda de costas • Asfixiante • Banda traçada • Cintura desprezada • Tesoura • Balão cinturado

• Balão de lado • Cutila • Cutila alta • Açoite de braço • Bochecho • Cruz • Quebra-mão 66 Cobrinha Verde (Rafael Alves França)

• Banda traçada

• Encruzilhada

• Tesoura torcida

• Balão de bainha de calça

• Cabeçada

• Rabo de arraia

• Quixim (queixinho) Pastinha (Vicente Ferreira Pastinha)

• Cabeçada • Rasteira • Rabo de arraia • Chapa de frente • Chapa de costas • Meia lua • Cutilada de mão Arnol (Arnol Conceição)

• Rabo de arraia

• Meia lua

• Aú

• Meia lua de compasso

• Arrasteira

• Cabeçada

• Meia lua baixa

• Boca de siri

• Meia lua alta

• Chibata

• Martelo

• Aú com armada

67 Bigodinho (Francisco de Assis)

• Meia lua de costa

• Meia lua de compasso

• Aú com rolê

• Abença • Armada • Tesoura • Salto mortal • Escorão • Martelo • Rasteira • Plantar bananeira • Boca de calça • Sapinho • Arqueada • Banda de lado • Banda de costas

• Dedos nos olhos

• Cutilada

• Galopante

• Murro direto Gato (José Gabriel Goes)

• Bananeira • Meia lua • Chapa-pé • Tesoura • Chibata armada • Cabeçada • Aú • Rabo de arraia • Rasteira • Plantar bananeira

• Leque ou boca de sirí

68 Canjiquinha (Washington Bruno da Silva)

• Meia lua de frente

• Baixa lua

• Média lua

• Alta lua

• Meia lua de costas

• Armada

• Rabo de arraia

• Chibata

• Chapéu de couro

• Meia lua de compasso

• Martelo

• Escorão

• Aú com boca de sirí

• Aú de cambaleão • Aú giratório • Boca de calça • Chapéu de frente • Chapeu de costas • Galopante • Ponteira

Do mesmo modo que os toques, os golpes, com maior intensidade, sofrem modificações de capoeirista, não só na sua estrutura, como na denominação, de modo que há caso de um mesmo golpe seja ele de defesa ou de ataque, solto ou ligado, ter uma denominação diferente para cada capoeirista. E difícil uma descrição rigorosa dos golpes, de vez que há muito 69 de pessoal nos mesmos, entretanto há duas excelentes tentativas de explicação de

uma boa parte deles, por Mestre Bimba, numa plaqueta anexa à gravação já citada119, assim

como Lamartine Pereira da Costa, em trabalho eminentemente técnico, no qual se preocupa exclusivamente com o aprendizado dos golpes, daí as explicações minuciosas, com ilustrações.120

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VII