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1 SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA: O MUNDO DO TRABALHO EM REESTRUTURAÇÃO

1.6 Toyotismo e as transformações no mundo do trabalho

No decênio de 1960, em diversas partes do mundo, a contradição entre as classes sociais tornou-se mais acirrada, quando movimentos de contestação dos trabalhadores aos processos de trabalho autoritários atingiram patamares elevados. Paralelamente, a emergência dos movimentos estudantis, como os que eclodiram na França em maio de 1968 e se espalharam pelo mundo; a luta por direitos humanos; os movimentos da contracultura, dentre outros, revelavam que as contradições sociais extrapolavam os muros das fábricas. Toda essa intensificação das lutas sociais perturbava, do ponto de vista da classe dominante, o funcionamento do modo de produção capitalista. Nas palavras de Bernardo,

Nas décadas de 1960 e 1970, desenvolveu-se em todo o mundo um vasto movimento de contestação que, em vez de se limitar a exigir uma maior participação nas riquezas, teve como características principais colocar em causa a disciplina reinante nas empresas e processar-se fora das instituições reivindicativas oficiais, ou até contra elas (BERNARDO, 2004, p. 77).

Para Sader (2008), essa forte mobilização social, que vinha se desenvolvendo por diferentes vertentes, ao longo dos anos 1960, assumiu dimensões muito mais intensas em 1968:

Em primeiro lugar, como ponto central, havia as lutas de libertação nacional na periferia capitalista [...] havia as lutas de libertação individual de todas as formas de opressão coletivas (Estado, família, escola, fábrica), de gênero ou de etnia. E havia, por último, a luta contra os dois grandes blocos que dominavam o mundo, o soviético e o norte-americano. Com todos os amálgamas possíveis, essas lutas resultaram em manifestações libertárias que percorreram o mundo: de Paris ao México, do Rio de Janeiro a Tóquio, de Berlim a Turim, de Londres a Karachi. O elemento detonante, que as impulsionou e as unificou, foi a solidariedade com a resistência vietnamita que lutava contra a ocupação militar perpetrada pelos EUA. Mas, em cada lugar, articularam-se com temas que localmente mobilizavam sobretudo os estudantes, como em Paris e no Brasil, ou os operários, como no caso da Itália (SADER, 2008, p.38-39).

No caso do Brasil, Antunes e Ridenti (2008) ressaltam que essa era de múltiplas explosões e revoltas – dos operários, estudantes, mulheres, negros, homossexuais, entre tantas outras formas de descontentamento social – teve suas especificidades, por conta da cena brasileira estar marcada pela plena luta contra a ditadura militar.

O ano de 1968 iniciou-se no Brasil com a eclosão de várias manifestações estudantis. Os estudantes reivindicavam ensino público e gratuito para todos, democratização e melhoria da qualidade de ensino superior, com maior participação estudantil nas decisões, e mais verbas para as pesquisas voltadas para a resolução dos problemas econômicos e sociais do país. Também contestavam a ditadura implantada com o golpe de 1964 e o cerceamento das liberdades democráticas (ANTUNES; RIDENTI, 2008, p. 44).

Antunes e Ridenti advertem, contudo, que – para além dos estudantes – havia outra figura social presente nesse ciclo de rebeliões mundiais, cuja atuação foi importantíssima para se compreender o movimento histórico de rearticulação do capitalismo, que se consubstanciaria a partir dessa forte mobilização social. Trata-se do

[...] operário-massa, a parcela hegemônica do proletariado da era taylorista-fordista. As lutas de classes ocorridas em 1968 solapavam o domínio do capital pela base e traziam à tona a possibilidade de uma hegemonia (ou uma contra-hegemonia) oriunda do mundo do trabalho. Os operários estampariam desse modo seu descontentamento com a alternativa socialdemocrata, predominante nos sindicatos e nos partidos, que reivindicavam a representação das forças sociais do trabalho e seguiam uma via negocial, institucional e contratualista dentro dos marcos do ‘compromisso socialdemocrático’ (ANTUNES; RIDENTI, 2008, p.45. Grifos dos autores).

No Brasil, em relação à atuação operária, os autores destacam as greves dos metalúrgicos de Osasco (região industrial da Grande São Paulo), desencadeada em julho de 1968, e as greves de Contagem (região industrial da Grande Belo Horizonte), em abril e outubro do mesmo ano, que tinham um claro sentido de confronto, tanto com a ditadura militar, quanto com a política econômica, que se fundava na superexploração do trabalho. Se,

em nível nacional, a repressão a esses movimentos era condição necessária para que o golpe militar pudesse criar novos condicionantes para a expansão capitalista e sua maior internacionalização no Brasil11 (ANTUNES; RIDENTEI, 2008); também, no cenário mundial, os setores dominantes estiveram atentos à necessidade de controlar essa fase ofensiva – inteiramente inovadora – desencadeada pelos trabalhadores, que, em várias partes do mundo, ao assumirem o comando de empresas, “mostraram na prática que eram capazes de levar o processo revolucionário até um nível muito mais fundamental, alterando as próprias relações sociais de trabalho e de produção” (BERNARDO, 2000, p.27).

Ao analisar o ciclo de rebeliões em tela, Bernardo é enfático: “nunca o sistema global capitalista deparara-se com uma ameaça tão forte” (2004, p.79). Da mesma forma, Sader (2008) afirma que a importância histórica de tais eventos foi significativa. Considerando que nunca mais o mundo, após as barricadas de 1968, foi o mesmo, reitera: “todos os poderes passaram a ser questionados, nenhuma autoridade pôde impor-se impunemente, e nenhum império pôde proclamar-se imbatível” (SADER, 2008, p.40).

Ao lado do cenário de crise que se abateu sobre as economias capitalistas, a partir desses fervilhantes anos 1960, o bloco socialista foi passando por desmoronamentos, difundindo-se no mundo do trabalho, principalmente após a década de 1980, a idéia de fim do socialismo. Como conseqüência da queda do socialismo e das necessidades de rearticulação do capitalismo para enfrentar suas próprias dificuldades em manter altos índices de lucratividade, os representantes do capital – assombrados com a capacidade de mobilização popular – reagiram, combatendo os sindicatos, rebaixando drasticamente direitos dos trabalhadores e implementando novos modelos de gestão e organização do trabalho, caracterizados pela fragmentação da produção e pela adoção do modelo de (des)regulação liberal, agora na sua face neoliberal. A redução dos gastos públicos sociais e da intervenção estatal na economia, por meio das privatizações; a liberalização dos fluxos comerciais; fusões e aquisições de empresas; terceirizações e um forte clima de entusiasmo pelo mercado acabaram se tornando as marcas desses novos tempos globalizados.

11 O que se confirmou com o Ato Institucional n. 5, decretado em dezembro de 1968, oficializando a repressão. Cf. ANTUNES, Ricardo; RIDENTI, Marcelo. 1968 no Brasil. Margem Esquerda. Ensaios marxistas. n. 11, São Paulo: Boitempo, maio de 2008, p.43-48.

O capitalismo, dessa maneira, dava forma ao processo de reestruturação produtiva, com a intenção de, via acumulação flexível, não só assegurar elevados padrões de lucro, como também retomar o controle social dos trabalhadores.

Portanto, as transformações descritas anteriormente só podem ser criticamente compreendidas como decorrentes da relação dialética inerente ao conflito entre capital e trabalho, pois o sistema capitalista, ao reestruturar a produção, servia-se dos próprios instrumentos de auto-organização dos trabalhadores para colocar em prática novas modelos de gestão do trabalho, como toyotismo, qualidade total e, assim, arrefecer a luta de classes, tão intensa em momentos de contestação ao autoritarismo do modelo fordista.

De maneira geral, o toyotismo pode ser compreendido como o modelo de organização do trabalho, originário da fábrica da Toyota, no Japão, que se expandiu pelo mundo capitalista no processo de reestruturação produtiva. Para Antunes (2001), suas características principais, em contraposição ao modelo taylorista/fordista, são:

1)sua produção é muito vinculada à demanda; 2) ela é variada e muito heterogênea; 3) fundamenta-se no trabalho operário em equipe, com multivariedade de funções; 4) tem como princípio o just in time, o melhor aproveitamento possível do tempo de produção e funciona segundo o sistema de kanban, placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoque (que no toyotismo deve ser mínimo) (ANTUNES, 2001, p.21).

Dessa forma, o toyotismo procura horizontalizar o processo de produção e transferir a terceiros parte do que antes era produzido na própria fábrica. Multiplicam-se os Círculos de Controle de Qualidade (CCQ), integrados por trabalhadores estimulados a pensar alternativas para elevar a produtividade.

Ao incorporar elementos da inteligência do trabalhador, o toyotismo foi interpretado, muitas vezes, como um avanço em relação ao fordismo, por supostamente introduzir um paradigma produtivo isento das alienações características do modelo anterior. Outra discussão marcante em relação a este tema é se seria o toyotismo uma ruptura ou uma reformulação do modelo taylorista/fordista.

Coriat (1994, p.58), ao interpretar as iniciativas japonesas como uma “escola”, trata as inovações introduzidas por Ohno, engenheiro responsável pela criação do Sistema Toyota de Produção, como uma verdadeira ruptura, no "espírito e no detalhe das práticas, um novo sistema” tipicamente antitaylorista por reassociar, no interior da empresa, tarefas antes sistematicamente separadas.

Alves e Antunes (2004), lembrando que, desde a sua origem, o capitalismo pressupõe uma subordinação, ainda que formal, do trabalhador ao capital, lançam luz sobre a questão da continuidade/descontinuidade entre taylorismo/fordismo e toyotismo, ao afirmarem que:

Apesar do toyotismo pertencer à mesma lógica de racionalização do trabalho do taylorismo/fordismo, o que implica considerá-lo uma continuidade com respeito a ambos, ele tenderia, em contrapartida, a surgir como um controle do elemento subjetivo da produção capitalista que estaria posto no interior de uma nova subsunção real do trabalho ao capital – o que seria uma descontinuidade com relação ao taylorismo/fordismo (ALVES; ANTUNES, 2004, p. 346. Grifos dos autores).

É possível compreender esse processo ainda mais lucidamente, a partir da observação explícita de Antunes (2001) de que o toyotismo, além de não eliminar a exploração e a alienação típicas do capitalismo, torna-as mais profundas e complexas. Em seu próprio dizer:

[...] o despotismo torna-se então mesclado com a manipulação do trabalho, com o “envolvimento” dos trabalhadores, através de um processo ainda mais profundo de interiorização do trabalho alienado (estranhado). O operário deve pensar e fazer pelo e para o capital, o que aprofunda (ao invés de abrandar) a subordinação do trabalho ao capital (ANTUNES, 2001, p.21).

O fordismo procurou transferir o saber-fazer do trabalhador para a gerência, instância de elaboração e controle. O toyotismo tende a se apropriar da capacidade intelectual da força de trabalho, capturando integralmente a subjetividade operária, o que compromete definitivamente a possibilidade de uma existência autêntica e autodeterminada. Bernardo esclarece:

Os capitalistas compreenderam então que, em vez de se limitarem a explorar a força de trabalho muscular dos trabalhadores, privando-os de qualquer iniciativa e mantendo-os enclausurados nas compartimentações estritas do taylorismo e do fordismo, podiam multiplicar seu lucro explorando-lhes a imaginação, os dotes organizativos, a capacidade de cooperação, todas as virtualidades da inteligência. Foi com esse fim que desenvolveram a tecnologia eletrônica e os computadores e que remodelaram os sistemas de administração de empresas, implantando o toyotismo, a qualidade total e outras técnicas de gestão. [...] Um trabalhador que raciocina no ato de trabalho e conhece mais dos processos tecnológicos e econômicos do que os aspectos estritos do seu âmbito imediato é um trabalhador que pode ser tornado polivalente (BERNARDO, 2000, p. 29-30).

Concretiza-se então, por meio de tais mecanismos, aquilo que Bernardo (2000; 2004) denomina de recuperação das lutas dos trabalhadores. Em sua permanente resistência à dominação exercida pelo capital, a classe trabalhadora luta por uma vida norteada por seus interesses, logicamente opostos aos interesses capitalistas. Mas, nesse jogo de forças, muitas

vezes o capitalismo assimila tais demandas e as devolve aos trabalhadores com um novo viés, re-significado pela lógica do capital. Assim, inegavelmente, a principal característica dos novos modelos de gestão e organização da produção, típicos da reestruturação capitalista, sem dúvida é o aumento da participação dos trabalhadores no processo produtivo, mas como um novo modo de se apropriar do saber fazer e do saber pensar dos trabalhadores, e não de forma a valorizar sua capacidade de auto-organização e de emancipação em relação aos destrutivos fundamentos do capitalismo.

As metamorfoses ocorridas no sistema capitalista a partir de sua crise estrutural, da década de 1960 em diante, atingiram a classe-que-vive-do-trabalho não só em sua materialidade – a sua forma de ser –, como também em sua subjetividade – valores, ideário,

em que pautam suas ações e práticas (ANTUNES, 2005; 2006). Diante disso, urge investigar como os trabalhadores, num contexto histórico de extrema precarização do trabalho, tecem hoje os laços de pertencimento social; como constroem/reconstroem sua identidade; como resistem/desistem no cotidiano do trabalho, verdadeiro campo de disputa entre a alienação e a desalienação. Nos limites dessa pesquisa, elegemos a docência como uma forma de trabalho que merece ser investigada. Pois se considera que, dada a impactante repercussão de todos os processos descritos acima no universo da educação, faz-se necessário analisar especificamente como se estrutura o trabalho docente e as novas dimensões por ele adquiridas no bojo das alterações ocorridas no metabolismo societal do capital.