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Índios umutinas quase foram extintos após primeiro contato com não índios No país, segundo a Funai,

7.3 Traços da memória da/na língua nas narrativas orais

Os trechos que seguem fazem parte de quatro narrativas orais coletadas junto a dois anciãos da aldeia, o senhor Antônio Apodonepá e Joaquim Kupodonepá. As quatro narrativas selecionadas para a análise foram relatadas na língua portuguesa, porque os dois anciãos já não falam mais a língua Umutína fluentemente, por isso são considerados por mim como “lembrantes” da língua.

É importante destacar, aqui, que para minha surpresa, não encontrei nenhum vestígio da memória da língua, em relação ao léxico, nas narrativas coletadas com o senhor Joaquim Kupodonepá, porém percebi que vestígios da sintaxe da língua indígena ainda estão presentes nas narrativas orais, aspectos que tratarei em seguida. Em relação ao léxico, causou surpresa porque ao contrário, do senhor Antônio, o senhor Joaquim é considerado na aldeia o índio Umutína que mais sabe sobre a língua, pois é um dos últimos índios independentes vivos que resistiu ao contato no processo de pacificação. Inclusive foi o meu colaborador durante toda a pesquisa, pois foi com ele que coletei parte dos dados lexicais que fazem parte deste trabalho. Das cinco narrativas coletadas, apenas uma apresenta vestígios da língua materna indígena, de ordem lexical.

Nos primeiros recortes retirados da narrativa I, relatada pelo senhor Antônio, identifiquei poucos traços da língua, referentes ao léxico:

“Cismado, ali... e aí ele foi chegando, devagar, devagar... Daí ele foi, pegô um frô. Cherô, diz que tava cheroso, cheroso fala pitukwá, né. Que é, né. Aí ele olhando, aí ele foi e pegô um punhado do frozêro.”

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“E apareceu, formô os pessoal, e era diz que só Umutina, e aí ele vortô pensando naquilo e vortô, aí procuraram o nome dele que era, eles fala, na linguagem, mitikami, mitikami, é a linguagem nosso, né. Mitikami, mitikami e aí ele botô o nome, né otopô, otopô otopô. Então ficô. Era só os índio memo. Aí ele trouxe, levou na casinha dele.”

No primeiro trecho, traços da língua se fazem presentes na modalidade oral da língua portuguesa por meio de um adjetivo, pois pitukwá significa, “bonito, bom”. O outro traço aparece por meio de uma expressão interrogativa mitikami? ”(Como se chama, Qual é seu nome?) E o último traço que aparece na narrativa é otopô que, segundo o senhor Antônio, seria um nome próprio na língua Umutína.

Embora esse índio não fale mais cotidianamente o idioma materno, resistem ainda em sua fala, vestígios daquilo que foi interditado, silenciado pelo Estado. O que se observa aqui, neste caso, é que a língua indígena, apagada na história em detrimento da língua oficial, guarda um lugar na constituição do sujeito índio Umutína, como língua “apagada” mesmo, e a partir deste lugar, no sujeito e na história, produz os seus efeitos de sentido. (PAYER, 2006)

Compreendo esses traços de memória da língua apagada que retornam, como traços de memória presentes na modalidade oral da língua portuguesa. São também traços da memória histórica, que permanecem na língua. Estes traços de memória da língua apagada constituem também, ao lado da língua nacional, a linguagem e o sujeito de linguagem. (PAYER, op.cit. ) Isso significa que a língua interditada não desapareceu completamente, ela continua significando, fazendo parte da constituição do sujeito índio.

As análises nos mostram que o sujeito, para se afirmar enquanto índio, necessita voltar ao passado, retomando dizeres que não são mais possíveis no nível do presente.

Mas não são somente traços de ordem lexical pertencentes à língua Umutína que aparecem nas narrativas orais, pois ao retomar os enunciados acima vê-se aspectos sonoros que se fazem presentes na fala do enunciador. Entre tais aspectos, que podem ser marcas da língua Umutína, destaco alguns, como a palatização da consoante fricativa alveolar [s]:

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“Mas tinha chefe do ['poʃto] aqui, só pra olhá os índio, né, governá os índio

aqui.”(Antônio Apodonepá]

“Aí quebrou milho, [deʃkaʃ 'ko], encheu jacá dela e foi embora. Enquanto ela tá

tirando cabelo de milho na [eʃ ' piga] pra ela comê, foi relano, né... aí [eʃkuɾe 'sew], aí a muié chamou filho dela pra vim bebê chicha e comê biju, milho assado...”(Joaquim Kupodonepá]

“['dojʃ] 21

casal Umutina, casal, ['eleʃ] tem ['dwaʃ] filha, né.”(Joaquim Kupodonepá] Esse fenômeno, que além de estar presente na fala dos dois anciãos mais velhos da aldeia entrevistados por mim, também aparecem muito forte na fala das crianças e dos jovens.

Além desses traços fonéticos, há, também, nos enunciados que seguem, a presença de um outro traço morfossintático: a não aplicação da regra de concordância de gênero.

“E apareceu, formô os pessoal, e era diz que só Umutina, e aí ele vortô pensando naquilo e vortô, aí procuraram o nome dele que era, eles fala, na linguagem, mitikami, mitikami, é a linguagem nosso, né.”(Antônio Apodonepá)

“Todo isso, e o curpado desse coisa é o São Pedro. O São Pedro ele andou pro mundo com Jesus, né.”(Antônio Apodonepá)

“E aí duas filha subiu num árvore em cima do jirau, cheia de urucum.”(Joaquim

Kupodonepá)

Vestígios de ordem sintática também aparecem nas narrativas orais, das quais destaco alguns exemplos. Neles pode-se observar que a ordem dos constituintes da frase são muito semelhantes à estrutura sintática da língua indígena, possivelmente, da língua Umutína.

“Daí levô tudo pra casa dele. Eles foram, ficou cheia de povo lá. Daí ele foi fazê trabaiá, fazê frecha pra todinho, né. Trabaiando ali, depois de frecha tudo pronta. Aí ele foi repartindo pra cada um dele, e foro recebendo, foro recebendo as frecha tudo. Daí tinha um branco no meio, aí ele foi dá a frecha pro homem, homem falô que não, que esse num presta, que ele ia fazê.”

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“Dois casal Umutina, casal, eles tem duas filha, né. Aí esses dois home saíro. Foi fazê caçada e num aparecia pa família, matava muito pexe, enchia jirau de pêxe, cada um com seu jirau.”

“Aí ele foi roçá, chegou tempo de queimá roça, ele tacou fogo. Aí outro dia ele pediu pra muié; “Vamô lá na roça eu prantá as coisa. Chegô lá, tá buniiito de novo a prantação.”

Os traços linguísticos observados acima referentes à fonologia, morfologia e à sintaxe mostram a presença de vestígios de memória da língua Umutína, no português oral da comunidade. Isso significa que “falar Português no Brasil é falar uma língua que são várias”. (GUIMARÃES, 2005, p. 21)

E a partir dessa mistura linguistica que funciona na prática de linguagem dos Umutína, imagem de língua e de sujeito vão se constituindo. Mesmo que essa língua seja permeada de traços outros, eles continuam presentes como forma de memória nesse português com características particulares falado na comunidade.

Em outros momentos, a língua também vai se mostrando como “lugar de memória” através do uso de nomes próprios , como é o caso da Escola Indígena Julá Paré, em homenagem ao último falante da língua, falecido em 2003, no nome da associação das mulheres: Associação indígena Umutína Otoparé , Associação indígena Haypukú, criada recentemente devido à formação de uma nova aldeia, denominada por eles de Bakalana22.

Segundo Payer (op. cit), a permanência da língua nos nomes próprios é uma forma possível de identificação particular com a língua materna e “com os valores a ela associados no contexto do seu desaparecimento”. ( 2006, p. 117).

Isso significa que o índio Umutína, embora sofra mudanças e transformações em seu modo de vida e cultura, a partir do contato com o não índio e os índios de outras etnias que convivem na aldeia, busca identificar-se, imaginariamente, como sujeito índio, a partir da memória dos seus antepassados, principalmente, a partir da memória de sua língua materna.

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Essa nova aldeia, distante 20 km da aldeia central, ainda em formação, surgiu devido a conflitos internos na comunidade. Atualmente, cerca de trinta e cinco famílias estão migrando para lá.

114 7.4 Traços da língua no espaço virtual

Como estou tratando de memória da língua, aproveito e trago para esta discussão os traços da língua Umutína presentes nas práticas discursivas do índio Umutína no facebook, espaço, atualmente, bastante utilizado pelos jovens.

Urixá Pitukwá -Sitio Santa Rosa- Tatuí SP

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Wagg Kezo nosssa que orixas lindas de mais da conta...rsrsrsrsrsrsrsrsr

há 6 horas · Curtir Curtir (desfazer)

Eder Apodonepá é urixá wagner, e é msm elas são muito lindas...

De uma forma ou de outra, a língua continua significando em forma de memória, como nesses exemplos retirados de uma página do Facebook, em que traços da língua Umutína aparecem nas conversas entre seus usuários. São dois elementos de ordem lexical, que formam uma locução nominal ‘urixa pitukwá’, o primeiro, um substantivo que significa ‘mulher’ na língua Umutína e o segundo, um adjetivo que significa ‘bom, bonito’. No contexto em que os dois termos foram empregados significam ‘mulheres bonitas’. Outro aspecto interessante que chama a atenção no diálogo entre Wagg e Eder é a palavra ‘orixás, pois há neste caso, a morfologia da língua portuguesa presente na língua Umutína,

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uma vez que não se usa o morfema flexional ‘s’ para designar plural em Umutína. Quando Wagg diz orixás, rapidamente é corrigido pelo amigo Eder, pois a palavra correta na língua Umutína é urixá. Nesse exemplo, temos a memória da língua portuguesa fazendo-se presente na língua indígena Umutína, situação inversa das análises anteriores, em que os traços da língua indígena estão presente na língua portuguesa.