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Traços da população repatriada

PARTE I – PROBLEMÁTICAS DO REPATRIAMENTO COLONIAL

1.4 Traços da população repatriada

indivíduos declararam viver nas ex-colónias em 31 de dezembro de 1973. Sessenta e um por cento dos retornados são oriundos de Angola (290.504), trinta e quatro por cento de Moçambique (158.945) e os restantes cinco por cento (21.978) residiam em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné. No entanto, “com base na taxa de crescimento censitária de 1960-70, a população branca de Angola seria, em 1973, de 324.000 indivíduos e a de Moçambique de 190.000 indivíduos” (Pires, 2003, p. 199), concluindo-se que cerca de 65.000 colonos portugueses não regressaram à metrópole ou emigraram para outros destinos, após o repatriamento.

A maioria dos retornados (63%) nasceu em Portugal (32% no norte do país, 36% no centro, 20% em Lisboa, 9% no sul e apenas 4% nas ilhas). “Em números absolutos, a grande maioria dos migrantes para o ultramar era natural, por ordem decrescente, dos distritos de Lisboa (14,15%), Porto (12,16%), Viseu (8,26%), Guarda (7,12%), Aveiro (6,95%), Bragança (6,44%) e Vila Real (6, 22%)” (Castelo, 2004, p. 7). O Norte e o Centro interiores registaram maior tendência migratória para África nos últimos anos de dominação colonial.

A distribuição regional do retorno é bastante desigual, o que pode ser explicado, como já referido anteriormente, pelas motivações de fixação. Por um lado, a possibilidade de obter apoio familiar e comunitário é um fator determinante, observando-se um fluxo superior (53%) em direção aos locais de origem. Por outro, foram certamente mais atrativos os mercados de trabalho urbanos. Consequentemente, as cidades de Lisboa e do Porto tornaram-se as zonas de concentração principais, bem como a maioria dos centros urbanos, polos de difusão cultural e centros políticos e económicos dominantes, especialmente apelativos para os retornados não nascidos em Portugal ou sem vínculos familiares na metrópole.

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Em Pires et al (1984) o total de repatriados atingia os 505.078, número reproduzido em Correia (1991) e em Guerra, J.P. (1996), entre outros. Pires (2003) justifica a discrepância com o “repatriamento de indianos de Moçambique que não foram recenseados nas estatísticas de estrangeiros por terem, na altura, nacionalidade

0 5 10 15 20 25 30 35 Aveiro Beja Braga Bragança Castelo Branco Coimbra Évora Faro Guarda Leiria Lisboa Portalegre Porto Santarém Setúbal Viana do… Vila Real Viseu RA Açores RA Madeira %

Como se pode observar no gráfico 1.1.20, quase metade (43%) residia, em 1981, em três distritos (Lisboa, Porto e Setúbal), e “só em Lisboa estavam concentrados cerca de um terço dos indivíduos envolvidos no retorno das colónias” (Pires et al, 1984, p. 46). Numa análise por concelhos, os contrastes são ainda mais visíveis, dado que “em apenas 6% dos 305 municípios do país residiam 50% dos retornados, a maioria dos quais pertencia à área metropolitana de Lisboa, neles vivendo 39% da população repatriada” (Pires, 2003, p. 201).

Gráfico 1.1 - Retornados por distrito de residência em 1981

A migração interna dos retornados é pouco significativa e coincide com o padrão de movimento interno da população portuguesa: do distrito de origem para um segundo distrito de fixação, normalmente nas zonas litorais. Tal pode dever-se à experiência

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90,5 7,5 1,3 0,7 0 50 100 No mesmo concelho

Noutro concelho Nos Palop Noutro país

%

colonial de deslocação para áreas mais dinâmicas, bem como aos apoios familiares ou comunitários que tinham migrado anteriormente para esses destinos.

Há ainda a considerar a emigração para outros países (gráfico 1.2.21), após o repatriamento. Sabe-se que “embora alguns tenham feito escala em África do Sul ou na Rodésia, a metrópole foi o destino da grande maioria dos colonos, com exceção de uma pequena minoria de técnicos qualificados que ali se radicou (…). O Brasil foi também um grande acolhedor de portugueses refugiados do ultramar” (Pinto e Faria, 1996, p. 5). Assim, “na ausência de dados fiáveis (…) pode, no entanto, estimar-se que teria envolvido um efetivo não superior a 60.000 indivíduos, proporcionalmente mais elevado entre os originários de Moçambique” (Pires, 2003, p. 198). Este grupo de emigrantes poderia ter considerado insatisfatórias as condições de integração na metrópole ou procuraria uma melhoria da sua situação económica, visando um posterior regresso a Portugal. Constituem um contingente populacional com previsíveis dificuldades de assimilação na sociedade portuguesa, pelo que a trajetória do seu êxodo resultou, provavelmente, num processo de filtragem adicional do grupo repatriado.

Gráfico 1.2 - Retornados: residência em 1981 comparada com residência em 1979

A distribuição populacional no país é afetada pelo retorno desequilibrado, em termos regionais. “Para tal, é mais útil considerar um outro indicador: a percentagem de retornados na população residente de cada distrito e concelho. Para o conjunto do país

Agricultura, caça e pescas Indústrias extractivas Indústrias transformadoras Electricidade, gás e água Construção e obras públicas Comércio, restaurantes e hotéis Transportes, armazenagem e comunicações Bancos , serviços financeiros e às empresas Serviços à colectividade e pessoais Actividades mal definidas

0 10 20 30 40

%

População activa total Retornados

era de 4,8%, em 1981, variando entre 1,5% em Beja, e 8,1% em Bragança” (Pires, 2003, p. 201). O repatriamento contribuiu significativamente para atenuar dinâmicas regressivas, das décadas anteriores, na estrutura demográfica portuguesa, com maior impacto nos distritos periféricos, caso dos distritos de Bragança e da Guarda cujas taxas de crescimento populacional, em 1981, atingiram, respetivamente, 2,5% (previsão de - 6,4%) e -3,7% (previsão de -10%). “Entre 1970 e 1981, o crescimento da população residente em Portugal foi, segundo os censos, de 1.184.645 indivíduos, dos quais 40% eram retornados” (Pires, 2003, p. 209). A evolução da população portuguesa deve, portanto, cerca de metade do acréscimo registado ao repatriamento das ex-colónias.

Quanto à população ativa (gráfico 1.3.22), os retornados são predominantemente jovense do sexo masculino (64% com menos de 40 anos e 53% do sexo masculino) e representam 5,9% dos ativos nacionais. “Eram retornados 4,8% dos residentes no país, em 1981, mas estes representavam 7% da população entre os 20 e os 40 anos, por um lado, e não passavam de 2% da população com mais de 65 anos, por outro” (idem, p. 209).

Gráfico 1.3 - Retornados e população ativa total, por atividade, 1981

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Concentraram-se maioritariamente no sector terciário (65%), especialmente nos serviços e, em menor percentagem, no secundário (29%), registando-se somente 6% no primário, correspondendo às profissões desempenhadas nas antigas colónias e à distribuição metropolitana por setores de atividade. Predominam os trabalhadores por conta de outrem e evidenciam um peso relativo superior nos grupos de profissões mais qualificadas e com menos efetivos (profissões científicas, técnicas e artísticas, dirigentes e quadros superiores, mas também pessoal administrativo, comerciantes e vendedores). Na emigração para a África portuguesa, excetuando-se os períodos de maior fluxo, em que se observa um “alargamento da base social de recrutamento” (Castelo, 2007, p. 189), verifica-se um “certo padrão migratório mais qualificado, constituído em proporções mais elevadas por técnicos, quadros e dirigentes” (idem).

Ao nível regional, 78,2% exerce a sua profissão na orla litoral, 47,5% em Lisboa e Setúbal (Pires et al, 1984, pp. 134-138). Nas regiões periféricas, a sobrequalificação profissional dos repatriados é mais notória. Em Bragança, a título de exemplo, “os retornados representavam pouco mais de 10% dos ativos do distrito, mas 19% dos patrões, em geral, e mais de 25% dos patrões não agrícolas, em especial” (Pires, 2003, p. 218). Deste modo, “a todos os concelhos de Portugal chegaram retornados. Muitos transportaram (…) o espírito do autoemprego que praticavam em África e abriram negócios nos mais adormecidos locais deste país. À falta de reconhecimento oficial, os cafés Nova Lisboa, as oficinas Cabinda, as mercearias Bilene, as pensões Mussulo (…) são o testemunho das suas histórias” (Matos, 2010, p. 37).

Os indicadores de habilitações escolares23, do Censo de 1981, revelam contrastes com a população portuguesa: 6% de retornados analfabetos contra 30% de analfabetismo em Portugal e 5% com curso superior, contra 2% da população residente. Para os retornados em idade escolar, a taxa bruta de escolarização no ensino secundário e no ensino superior é duas vezes superior à da maioria da população residente em Portugal.

0 20 40 60 Não sabe ler nem escrever

Sabe ler e escrever sem ter grau Primário elementar Preparatório Secundário unificado Secundário complementar Propedêutico ou 12º ano Curso de índole profissional e artístico Curso médio, enfermagem, profissional Curso superior

População residente Retornados

Gráfico 1.4 - Retornados e metropolitanos por qualificação académica, 1981

Na emigração para África, “os migrantes tinham habilitações superiores às do conjunto da população portuguesa” (Castelo, 2007, p. 188), o que veio a revelar-se um fator facilitador na sua integração profissional, aquando do repatriamento. Esta “sobrequalificação relativa da população retornada” (Pires et al, 1984, p. 113), assim como uma “pronunciada mobilidade profissional (se não ascendente, pelo menos geográfica) que parece ter pautado o historial laboral destes migrantes” (Oliveira, 2008, p. 6), podem ter facilitado a sua integração no mercado de trabalho metropolitano. São ainda trabalhadores mais seletivos, o que se observa no adiamento da entrada no mercado de trabalho e numa maior resistência na aceitação de horários semanais e de condições de trabalho exigentes (trabalham em média 35 a 45 horas, contra as 45 horas ou mais de média da população residente).

Conclui-se que o retorno contribuiu para um aumento potencial da mão-de-obra qualificada, especialmente nas regiões menos desenvolvidas de fixação, já que “os retornados representam um quarto dos indivíduos com cursos profissionais em todos os distritos do norte e centro interiores” (Pires et al, 1984, p. 118). A reprodução do estatuto profissional e social, no regresso a Portugal, para um número considerável de repatriados, pode também ter agilizado a sua integração na sociedade portuguesa: “o

facto dos processos de socialização serem diferenciados por «condições de existência», que definem a classe de pertença de um indivíduo, sugere, ao mesmo tempo, que as suas práticas e representações variem de acordo com essa mesma inserção social, ou seja, com a posição que ocupam na estrutura social” (Brilhante, 2000, p. 40).

O nível educacional dos retornados, determinante na sua integração, reflete-se ainda nos mais jovens, quando “as elevadas taxas de escolarização observadas tipificam uma integração sem exclusão da «segunda geração», fator decisivo em processos de assimilação” (Pires, 2003, p. 214).

Os percursos individuais e socioculturais dos retornados são também distintos, pois “o retorno representa, acima de tudo, a inclusão, na sociedade portuguesa, de indivíduos com trajetórias muito diferentes das que caracterizam a biografia da maioria dos portugueses” (Pires et al, 1984, p. 17). Embora afastados de uma perceção metropolitana de ‘génio do sertão’, emigraram para outro continente e vivenciaram experiências diferentes. “O emigrante é sempre um homem à procura do seu lugar (…), levando consigo um lastro cultural que irá cruzar com outras formas de vida (…), o que tem feito dele, ao longo do tempo, um agente de modernidade, enquanto contribuinte para a produção de culturas híbridas” (Alves, 2016, p. 41).

No caso da emigração para África, esta era percecionada como definitiva, numa sociedade colonial cuja distância da metrópole permitia maior mobilidade social, menor controlo governamental e social e incentivo à iniciativa privada e à escolarização própria e dos descendentes. O estatuto económico e social nas colónias será dificilmente recuperado para a maioria, em especial para os menos escolarizados. “Os colonos brancos (…) foram os grandes perdedores, muito embora o seu regresso em massa à metrópole tenha sido positivo para a economia portuguesa” (Pinto, 2001, p. 89).

No estado civil e na estrutura da família, regista-se uma maior intensidade de casamentos entre os retornados, mas também uma maior ocorrência de divórcios e de separações, em todas as classes de idades. O número médio de filhos é de 1, 81 contra 2, 19 dos nacionais e apenas 1,7% opta por ter mais de oito filhos, contra 4,3% dos portugueses não retornados (Pires et al, 1984, p. 91).

ascensão social, distanciada do mero papel de adorno da ‘casa portuguesa’, acaba por se destacar. Um dos elementos (…) diz respeito a um acesso mais facilitado à educação. Em completa oposição à realidade anteriormente conhecida na metrópole (sobretudo no meio rural), muitas foram as jovens mulheres portuguesas que puderam prosseguir os seus estudos além-mar, o que dificilmente teria sucedido se não tivessem rumado com as suas famílias ao encontro da nova realidade social encontrada no continente africano” (Machado, 2011, p. 48). A mulher retornada terá um papel não negligenciável nas questões de emancipação, ao nível do género, numa metrópole em ‘euforia’ revolucionária.

Quanto à religião declarada, o retorno contribuiu para um incremento substancial de alguns grupos religiosos minoritários em Portugal. No caso dos muçulmanos, o número de crentes triplicou, de 1642 indivíduos para 4 335. 78% dos retornados assume uma pertença religiosa (maioritariamente católica, em cerca de 93%), contra 94% da restante população residente (Pires et al, 1984, p. 96).

Os retornados, “enquanto grupo social, não constituem um todo homogéneo, embora sejam comumente tratados como tal” (Pinto e Faria, 1996, p. 93). Partilham, todavia, na sua maioria, traços que facilitaram a sua integração: emigrantes de primeira geração, jovens e qualificados, com ligações significativas à metrópole. O retorno deste contingente populacional vai ter impactos diversos no país que se exploram seguidamente: demográficos, económicos, políticos e socioculturais.

1.5 Impactos do repatriamento