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Nesta seção discutimos o fenômeno através do qual o professor, mesmo adoecido, comparece ao trabalho. Trata-se do presenteísmo, muitas vezes definido

13 Função gratificada que, no período da pesquisa, consistia em R$ 12.309,21 (valor total). Os ocupantes de CD podem optar por receber o valor integral da remuneração do CD ou a remuneração do cargo acrescido de 60% da remuneração do CD.

como o absenteísmo de corpo presente. A esse respeito, os professores se posicionam aparentemente, de modo plural, porém com perspectivas bastante alinhadas entre si.

Ensinar constitui uma atividade altamente estressante que incide no desempenho profissional do docente e na sua saúde física e mental. Diante disso, em 1983, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontou os professores “como sendo a segunda categoria profissional, em nível mundial, a portar doenças de caráter ocupacional, incluindo desde reações a giz, distúrbios vocais, gastrite e até esquizofrenia” (WEBBER; LIMA, 2011, p. 727).

Vários são os agravos à saúde do trabalhador – distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho, síndromes neuróticas específicas, estresse crônico, depressão e outros (CRUZ; LEMOS, 2005).

Assim, a atividade de trabalho está peremptoriamente vinculada ao processo de adoecimento dos trabalhadores, considerando-se que a atividade docente é exigida cotidianamente, física e psicologicamente. O adoecimento do corpo docente teria sua gênese no paradoxo perceptível entre a missão e a invisibilidade do trabalho aos olhos da organização escolar (NORONHA; ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2008).

A fadiga e a frustração constantemente mencionadas pelos docentes podem estar associadas aos obstáculos relacionados ao volume de trabalho e à precariedade das condições existentes, mas também às altas demandas no trabalho, incluindo as demandas emocionais, junto com uma expectativa social de excelência, cujo limite é exigir do professor uma atuação capaz de reverter a situação na qual se encontra. (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009, p. 344).

A profissão docente é uma das que padecem com o estresse e outras síndromes procedentes das transformações no mundo do trabalho, notadamente pela proletarização do trabalho docente (MOREIRA et al., 2010).

Os estímulos estressores associados à atividade laboral são variados e podem ser sintetizados da seguinte forma: sobrecarga – caracterizada pela urgência de tempo, responsabilidade excessiva, falta de apoio e expectativas excessivas próprias ou de pessoas que o cercam; falta de estímulos – tédio; solidão ou falta de solicitações de sua capacidade e potencial; ruídos, alterações do sono; falta de perspectivas; mudanças constantes determinadas pela organização, por introdução de novas tecnologias, mudanças no campo de atuação profissional, mudanças auto impostas, além da negligência no cuidado com as condições ergonômicas na

organização do trabalho, que invariavelmente tendem a comprometer física e psicologicamente os professores (BENEVIDES-PEREIRA, 2002).

O desgaste físico e emocional ao qual os professores estão submetidos em seu ambiente de trabalho e na execução de suas tarefas também é muito significativo na determinação de transtornos relacionados ao estresse, como é o caso das depressões, transtornos de ansiedade, fobias, distúrbios psicossomáticos e a síndrome de burnout.

A síndrome de burnout na educação é um fenômeno complexo e multidimensional que advém da interação entre fatores individuais e do ambiente de trabalho, e sua ocorrência em docentes é considerada um fenômeno psicossocial importante porque afeta ao mesmo tempo o professor e o ambiente educacional, interferindo no alcance dos objetivos pedagógicos (SILVA; CARLOTTO, 2003).

No tocante ao fenômeno do “mal-estar” docente, entende-se que

Sufocados pelas exigências que a realidade educacional lhes impõe e por ideais educativos inalcançáveis, os professores manifestam uma enorme angústia e grande sentimento de desamparo e muitos não encontram saídas a não ser pela via do isolamento justificado pelas licenças médicas que autorizam sua retirada (DINIZ, 2008, p. 4). Dos indicadores do mal-estar docente, destacam-se: “Fatores principais: recursos materiais e condições de trabalho; violência nas instituições escolares; o esgotamento docente e a acumulação de exigências sobre o professor” (ESTEVE, 1999, p. 46).

Entretanto, nem sempre o mal-estar é sinônimo de uma patologia. Na maioria das vezes, encontram-se vivências de sofrimento nomeadas de várias formas: ansiedade, angústia, preocupação, estresse, tensão, entre outros (DEJOURS, 2011).

No âmbito nacional, as mudanças na organização do trabalho docente com as novas exigências e competências postuladas trouxeram sobrecarga de trabalho para os professores, tanto em relação ao volume de trabalho, à precariedade das condições de ensino, à diversidade e complexidade existente em sala com as quais o professor é obrigado a lidar, quanto à expectativa social de excelência do seu trabalho (GASPARINI; BARRETO; ASSUNÇÃO, 2006).

Os sintomas mais comuns do trabalhador com presenteísmo são: cefaleia, dores lombares, alergias, distúrbios gástricos, angústia, irritação e depressão

(PILETTE, 2005). Nesta situação, as pessoas estariam trabalhando, porém sem “produzir” em sua plenitude.

Todas essas enfermidades decorrem não apenas do exercício da profissão, mas também das condições mais amplas geradoras de estresse como, por exemplo, insegurança, baixa remuneração, violência escolar, constrangimentos institucionais, meio social de atuação, jornada de trabalho, aposentadoria e temas relacionados mais pormenorizadamente à política de progressão funcional. Jorge Amado aborda sua condição de saúde em relação às variações das demandas enfrentadas no trabalho docente:

Olha, eu tenho sido muito feliz ao longo da vida com o meu corpo, acho que mentalmente e fisicamente. Por vezes a gente tem estresses, nós temos que tomar decisões e decisão quando você tem que tomar, sempre a decisão ela será favorável a algum e não favorável a outros, mas desde que você assuma posições de gestões e cargos de gestão isso aí é uma atividade natural, nunca me senti incomodado não. Quando a atividade administrativa é mais intensa, os números lá nos exames dos médicos eles costumam a mexer um pouco, acho que são estresses. A glicose, os lipídios, essas coisas todas andam subindo, mas depois voltam ao normal. (JORGE AMADO)

Jorge Amado correlaciona trabalho e saúde de modo intrínseco e vincula as alterações identificadas nos exames laboratoriais aos fatores estressores vivenciados no trabalho. Reconhece que o processo decisório, no âmbito da gestão, é algo por si só desencadeador de estresse e que, na condição de gestor de um curso de PG, tem se conscientizado que o processo de tomada de decisão é algo complexo e estressante por si só, além de inerente a esta realidade.

Vinícius de Moraes compartilha uma realidade comum a todos os professores participantes desta pesquisa. Na condição de gestores, conciliam a gestão com o ensino, a pesquisa e a extensão. Nesse sentido, o professor fica comumente impossibilitado de abdicar do cumprimento de sua carga horária diurna em virtude de uma agenda intensa de compromissos e de atividades administrativas. Na mesma direção, não pode dispor de estar presente nos horários previamente agendados para atuar no ensino. Assim, num ciclo repetitivo e intermitente de indisponibilidade e, ao mesmo tempo, exigência por uma disponibilidade total para o trabalho docente, o trabalhador docente vive, literalmente, conciliando todas as janelas a um só tempo.

De modo específico, Vinícius de Moraes reitera a vivência do estresse no esforço continuado de demarcar limites entre a vida pessoal e a vida profissional.

Para tanto, está gradativamente inserindo novos hábitos de vida em seu cotidiano:

O estresse é sempre um motivo de preocupação pra gente, no começo era muito pior, porque eu tentava e não conseguia muito separar a minha vida fora da Universidade com a vida da Universidade, mas hoje eu separo até razoavelmente, então eu consigo separar o final de semana pra fazer as coisas que eu faço, não abro e-mail em final de semana, não respondo “WhatsApp” no final de semana, então quando você consegue ao máximo separar isso você consegue uma qualidade de vida melhor, mas por exemplo eu gostaria de ficar aqui na Universidade oito horas e eu não fico, a minha média diária é com certeza de dez pra cima, entendeu? Então, é uma coisa que eu não consigo por que, eu faço muitas atividades administrativas e isso é durante o dia, e como eu dou aula, na licenciatura é a noite, então não tem jeito. Eu não venho aqui à noite e falo assim “eu não vou de manhã porque eu vou a noite”, porque aí vem reunião, vem várias coisas, que o pessoal não fica aqui a noite. Então, eu acabo trabalhando em média mais do que oito horas por dia. (VINÍCIUS DE MORAES)

Guimarães Rosa esclarece que já veio para o trabalho várias vezes adoecido.

Várias vezes. Eu tenho dois grandes problemas crônicos, não é agudo, mas é crônico. Eu tenho um problema crônico de dor na coluna, osteomuscular, um problema que me acompanha até mesmo quando era magro, com o sobrepeso isso piorou. Desde que eu me conheço por gente, desde pequeno, quando eu jogava bola nos campinhos [...] eu tenho problema de coluna, mas isso lógico, com a idade e com o sobrepeso iam piorar, então já vim muitas vezes com dores lombares e com remédios. Eu tomo os meus remédios que meu irmão é médico, ele me receita, então eu tomo lá os meus remédios e venho aqui meio entorpecido, mas vim trabalhar várias e várias vezes, já dei aula, já fiz trabalho de campo, trabalhos exaustivos, mas, adoecido. E outro problema crônico que é a questão da visão, às vezes a leitura, porque nós lemos muitas teses, monografias, dissertações, trabalho de conclusão, ou seja, uma quantidade de leitura muito grande. Então, isso reflete na minha dor de cabeça e tomo os meus remédios, os analgésicos da vida e venho trabalhar. Então, trabalhar doente foram várias vezes, com febre, gripado, isso pra mim sempre foi muito complicado porque eu trabalhei muito tempo na iniciativa privada e falta na iniciativa privada é complicada, você vai trabalhar mesmo se arrastando. Eu já tive dois amigos que morreram na sala de aula. (GUIMARÃES ROSA)

Guimarães Rosa expõe a existência de problemas crônicos de saúde: coluna e visão, ambos agravados pelo ritmo de trabalho enquanto docente. O fato é que o entrevistado em questão já foi trabalhar muitas vezes adoecido. Tem internalizado em si a vivência na iniciativa privada de que mesmo “arrastando” o docente vai trabalhar. Embora se refira às instituições privadas como aquelas em que “você vai trabalhar mesmo se arrastando”, o mesmo tem ocorrido na universidade pública: o docente trabalha adoecido graças à medicalização, aos “analgésicos da vida”.

nenhuma manifestação mais grave que uma gripe. Nas suas palavras: “Já, gripada, essas coisas bem corriqueiras, mas nada grave”. (Zélia Gattai). É quase unânime entre os professores o reconhecimento de que uma gripe ou uma dor de cabeça não constituem motivos para o não comparecimento no trabalho.

Clarice Lispector compartilha que já trabalhou muitas vezes adoecida, mas após um necessário processo de inserção de novos hábitos e comportamentos, assumiu a condição de protagonista da construção de sua própria saúde:

Muito. Eu não sabia que tava doente, eu vinha adoecida, mas era uma doença silenciosa. [...] Já cheguei a vir gripada, cheguei a vir muito doente, pra você ter uma ideia de como eu estava doente, quando eu passei por cirurgia eu ainda tava com sonda, tava com os pontos, eu tinha cinco dias de cirurgia, uma cirurgia severa, grave porque mexeu com o fígado, eu vim trabalhar. Isso é insano, no dia que o médico descobriu ele falou: “- Você vai morrer naquele lugar”, você entendeu? Isso não é saudável, isso não é bonito. E por que a gente faz isso? Por que a gente acha que a Universidade vai parar sem a gente. Nada, ninguém para, mas eu precisei ouvir isso do médico, ele falou: “- Você vai morrer e todo mundo vai continuar igual”. E o mais interessante quando eu me peguei fazendo isso eu falei “- Não, tá tudo errado”. Imagina você com ponto, com dor, cinco dias de cirurgia e de sonda aqui no corredor da faculdade, pra que isso? Então, isso eu não faço mais hoje, de jeito nenhum. (CLARICE LISPECTOR, grifos nossos)

O caso de Clarice Lispector é emblemático, pois traz com intensidade os processos de adoecimento, a permanência na universidade mesmo adoecida e a construção de uma nova lógica de cuidado e da compreensão do trabalho. Assim reflete:

Mas por exemplo, hoje eu vim pra cá com dor de cabeça, pergunta se alguém vem com dor de cabeça, mas hoje eu vim. Lembra as minhas perguntas [menção a outro momento da entrevista]? Eu marquei com alguém, então eu venho, se eu não tivesse marcado hoje [a entrevista] a minha postura era não vir hoje, depois de passar por tudo que eu passei. Antes não, antes eu vinha de qualquer maneira. (CLARICE LISPECTOR)

Foi preciso que Clarice Lispector fosse confrontada pelo médico para refletir sobre a gravidade de sua condição que chegou a afirmar que caso morresse, a rotina da IFES seguiria sem ela. Clarice Lispector reconheceu o quanto foi agressiva consigo mesma, ao insistir em ir trabalhar mesmo estando doente e no período pós- operatório.

Carlos Gomes insere-se em um sistema de comprometimento incondicional para com o trabalho, enfatizando a existência de “necessidades inadiáveis”, que poderiam comprometer todo o trabalho:

Sim. Nós às vezes temos necessidades inadiáveis, principalmente no final do ano, como a nossa área de atuação é [...], nós estamos em um período de [...] que é agora, outubro e novembro, março e dezembro, nós temos que levar materiais para o campo. Então, nesse período é inadiável toda a atuação do coordenador do programa de melhoramento da pesquisa e às vezes mesmo a gente não estando com excelente saúde, nós temos que ir exercer o nosso papel se não compromete todo o trabalho passado e futuro. (CARLOS GOMES)

Tom Jobim considera a impossibilidade de ter quem o substitua em pelo menos 90% das coisas que faz, motivo pelo qual, em nome da responsabilidade, trabalhe ainda que adoecido. O docente enfatiza que outros trabalhadores vão conseguir se afastar plenamente do trabalho para cuidar da saúde. Porém, no seu caso, tomar esta decisão seria irresponsabilidade. O ponto crucial é que caso as condições mínimas inexistam, elas podem ser mentalmente elaboradas e mantidas. Assim, temos organização de uma dinâmica psíquica desfavorável à saúde do trabalhador:

Sim, várias vezes, por responsabilidade. Tenho que vir, não tem quem me substitua em 90 por cento das coisas que eu faço, então eu tenho que fazer. Acontece que vários colegas meus simplesmente ignoram isso e vão cuidar da vida e eu não consigo, acho que se eu ignorar a minha responsabilidade eu vou estar sendo irresponsável. Então, eu prefiro, obviamente tendo condições mínimas, eu estarei aqui. (TOM JOBIM, grifos nossos)

Machado de Assis esclarece que já compareceu várias vezes ao trabalho adoecido e acrescenta que nunca apresentou um atestado durante toda a sua trajetória profissional de 14 anos. Reitera repetidas vezes que nunca faltou e paralelamente a este discurso apresenta algumas das situações mediante as quais já veio trabalhar:

Já, várias vezes. Eu acho que nunca faltei o trabalho, por motivo de doença não. Nunca deixei um atestado nem nada não, acho que quebrei a perna uma vez, o pé, mas eu vim engessado. Então, nunca faltei o meu trabalho, por motivo de doença nunca faltei nesses não sei quantos anos de faculdade, acho que 14 anos, 12 anos de faculdade, nunca faltei. (MACHADO DE ASSIS)

Os professores demonstram a centralidade do trabalho em suas vidas. O trabalho docente é compreendido como eixo central a partir do qual destrincham-se todos as dimensões da vida, o que nos permite reconhecer a inter-relação entre o trabalho, a saúde e a vida destes trabalhadores. A natureza da relação assumida com o trabalho docente decorre de aspectos da personalidade de cada trabalhador, da sua história de vida e das vivências tidas até o momento e é permeada pela

organização e as condições do trabalho atreladas à dinâmica das relações sócio- profissionais.