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Vai trabalhar, vagabundo Vai trabalhar, criatura Deus permite a todo mundo Uma loucura Passa o domingo em família Segunda-feira beleza Embarca com alegria Na correnteza

(HOLLANDA, 1976) O trabalho é uma das categorias fundantes desta pesquisa cujo tripé temático assenta-se na compreensão do trabalho, da saúde e da vida dos trabalhadores docentes, com foco nos professores coordenadores dos programas de pós- graduação modalidade stricto sensu de uma instituição federal de ensino superior.

Nesta pesquisa, consideramos a categoria trabalho a partir da matriz crítica que o entende como fonte de emancipação, mas que sendo apropriado pelo capital, transformou-se em uma fonte de dominação e alienação.

A epígrafe de Chico Buarque de Hollanda anuncia uma concepção de trabalho enviesada por aspectos negativos. As terminologias “vagabundo”, “loucura” e “correnteza” e as locuções verbais no imperativo “Vai trabalhar”, “Passa”, “Embarca” sugerem um clima tenso e distanciado de uma vivência positiva no trabalho. Esta é uma realidade que pode acometer a muitos trabalhadores, imprimindo-lhe um sentido negativo do trabalho.

A temática do trabalho comporta em si uma multiplicidade de inquietações, a saber: O que é trabalho? Por que as pessoas trabalham? Quais os sentidos que dele advém? Por que muitos sofrem pela falta de uma vaga de trabalho enquanto outros sofrem por terem que trabalhar excessivamente? O trabalho é fonte de sacrifício e/ou de prazer? Navarro (2017)6 assim problematiza a respeito do trabalho:

“Os que saem do trabalho sofrem por ficarem sem e os que ficam no trabalho sofrem com o excesso”. Tal problematização anuncia o desafio de se estudar a categoria trabalho. Essas e muitas outras reflexões são possíveis e correlatas à categoria trabalho. O fato é que as respostas são singulares e perpassam a experiência subjetiva de cada um.

A palavra trabalho é utilizada em uma diversidade de situações cotidianas. Seja como ato, meio ou produto, o seu uso é corriqueiro e expressa o quanto o homem trabalha, tem trabalho ou produz trabalhos. Culturalmente, podemos ainda dizer ou ouvir as seguintes expressões: “Entrou em trabalho de parto” ou “Foram

vítimas de um trabalho de macumba”. Pereira (2005) discute possíveis acepções

para a palavra trabalho. Nas suas palavras:

A palavra trabalho é empregada com diversos significados, podendo referir-se tanto ao ato de laborar, de produzir (“estou trabalhando”), quanto ao esforço despendido (“me deu muito trabalho”), ou mesmo ao produto final obtido (como no caso de “trabalhos” acadêmicos. Albornoz (1986) menciona ainda outras aplicações da palavra trabalho, como no caso de deliberações de uma assembleia ou o processo de nascimento de uma criança, o que nos faz pensar em outras utilizações possíveis do termo: quem nunca ouviu falar de certos “trabalhos” associados à umbanda e outras práticas religiosas? (PEREIRA, 2005, p. 15)

6 Vera Lúcia Navarro proferiu esta reflexão na abertura do workshop intitulado “Reestruturação produtiva e Saúde do Trabalhador, desenvolvido durante “2º Seminário Nacional sobre Saúde e Trabalho: contribuições da saúde do trabalhador para o trabalho decente” realizado nos dias 22 a 24 de novembro de 2017 na Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto.

O trabalho é muito mais que um meio para atender as necessidades humanas básicas. Conforme nos esclarece Dejours (2004, p. 30-31), ele mobiliza a personalidade por inteiro. De modo análogo, Navarro e Padilha (2007, p. 14) situam o trabalho enquanto um construtor da identidade humana:

Entendemos que o trabalho tem caráter plural e polissêmico e que exige conhecimento multidisciplinar; é também a atividade laboral fonte de experiência psicossocial, sobretudo dada a sua centralidade na vida das pessoas: é indubitável que o trabalho ocupa parte importante do espaço e do tempo em que se desenvolve a vida humana contemporânea. Assim, ele não é apenas meio de satisfação das necessidades básicas, é também fonte de identificação e de auto-estima, de desenvolvimento das potencialidades humanas, de alcançar sentimento de participação nos objetivos da sociedade. Trabalho e profissão (ainda) são senhas de identidade.

A categoria trabalho é, também, impregnada de representações coletivas na medida em que, a partir de certas características e repercussões de certos tipos de trabalho, o imaginário coletivo se sente na condição de emitir posicionamentos sobre os impactos do trabalho:

De médico, louco e analista de saúde mental no trabalho cada um tem um pouco. Isto se constata quando se anda pelas ruas e quando se conversa com as pessoas. É comum ouvir expressões como: com

um trabalho como estes, qualquer um fica doido! É que a noção de

que o trabalho pode ser responsável pelo sofrimento psíquico é óbvia, é como se fosse possível enxergar o sofrimento no rosto, no andar das pessoas, no sobrolho franzido das professoras, no olhar de desistência dos bancários, nas marcas do esforço das rugas precoces do bóia-fria. (CODO; JACQUES 2010, p. 28)

Etimologicamente, a palavra trabalho origina-se do latim Tripalium, “que era um instrumento de tortura de três paus ou uma canga que pesava sobre os animais” (MARTINS, 2014, p. 4). Uma das primeiras modalidades de trabalho reconhecida é a escravidão de um povo subjugado por outro por meio de guerras tribais ou entre países. Na Antiguidade, o trabalho “representava punição, submissão, em que os trabalhadores eram aqueles que tinham sido vencidos nas batalhas, eram escravos. A escravidão era considerada como coisa justa e necessária. Ser culto significava ser rico e ocioso” (JORGE NETO; CAVALCANTE, 2013, p. 7).

Ainda na Antiguidade, o poeta grego Hesíodo, no século VIII a.C., em seu poema Erga eleva o trabalho ao patamar do heroísmo:

Hesíodo celebra o trabalho como único caminho, ainda que difícil, para alcançar a Aretê, evidenciando o valor do trabalho. A Aretê era para os gregos o padrão ético para o comportamento individual, e em várias línguas modernas é traduzida como virtude, que, na análise do

grego clássico, significa, propriamente, o desenvolvimento das possibilidades espirituais, mentais e físicas de uma pessoa. (VIEIRA, 2010, p. 352).

Na Idade Média, “inicialmente, o trabalho foi considerado na Bíblia como castigo: Adão teve de trabalhar em razão de ter comido o fruto proibido (Gênesis 3)” (MARTINS, 2014, p. 3). A sociedade feudal, por volta do século X, dividia-se em três classes: o clero (oratores), os guerreiros (bellatores) e os trabalhadores (laboratores). De acordo com Soibelman (1981), esse sistema manteve-se entre os séculos X ao XIII, quando a escravidão foi substituída pela servidão.

A partir do século XII, a expansão populacional, as atividades urbanas e comerciais e os contatos com o Oriente pelo Mediterrâneo ocasionaram mudanças. Praticamente, houve uma inversão entre a Idade Média e o Renascimento, sendo que no período renascentista “despontam a admiração pelo trabalho e o valor dele, mas principalmente o artesanal e o artístico (do escultor, do pintor, do arquiteto e do cientista)” (CARMO, 1998, p. 26).

João Calvino, com a Reforma Protestante que ocorreu no século XVI na Europa, difundiu a noção da eminente dignidade do trabalho e do trabalhador, sobretudo. Ele foi “fecundo em iniciativas sociais tendentes a dar a todos os trabalhadores o sentido e a dignidade de seu labor, contra todas as reformas de alienação e de opressão” (BIÉLER, 1990, p. 540).

Na perspectiva calvinista, o trabalho é sinal de graça, e “não somente a religião concernia a toda a vida – econômica, profissional, familiar –, mas tudo devia concorrer para a glória de Deus […] e Calvino afirmará que ‘dentre todas as coisas deste mundo, o trabalhador é o mais semelhante a Deus’” (WILLAIME, 2005, p. 70).

A Reforma Protestante alterou profundamente a concepção sobre o trabalho, deslocando-o a um total reconhecimento. Weber, em sua obra A ética protestante e

o espírito do capitalismo, afirma que Calvino demonstra um interesse pela vida

econômica e social maior do que Lutero, abandonando a ideia do trabalho como contemplação e mesmo como fonte de pecado original. Para Weber (1967, p. 112), a contemplação passiva é condenável “quando resultar em prejuízo para o trabalho cotidiano, pois ela é menos agradável a Deus do que a materialização de Sua vontade de trabalho”.

Em termos históricos, “o tipo de trabalho existente até a Revolução Industrial não era um trabalho livre, era um trabalho de escravos e servos, cuja ínfima condição social era condizente com o escasso ou quase nulo valor que se atribuía

ao seu esforço” (MELGAR, 1995, p. 50).

O trabalho pode representar a dimensão das relações que afeta os valores, as representações e a visão de mundo do trabalhador. Ainda, pode receber sentido, ao representar o campo das relações do indivíduo com a comunidade. Desta forma, o trabalhador passa a valorizar “o que é valorizado também pela sociedade como, por exemplo, ter um emprego, carteira assinada, receber um salário, e se submeter a muitas situações para manter-se ‘incluído’ dentro dessa população economicamente ativa, valorizada pela sociedade” (ZANARDO, 2010, p. 21).

Ademais, o trabalho “vem sendo reduzido à mera atividade vital, cuja única e exclusiva orientação ainda é a subsistência [...] não mais permite a possibilidade de afirmação pessoal, mas nos aprisiona junto ao impulso vital das necessidades imediatas” (MASCARENHAS, 2000, p. 76).

O trabalho, portanto, constitui-se como possibilidade de realização da essência humana no sentido ontológico atribuído por Karl Marx e, em cada momento histórico, tem se configurado de modo a atender interesses específicos. Nos tempos atuais observa-se com muita clareza as contradições entre as potencialidades de realização humana e de consciência de si mesmo e das relações com o outro e a alienação. O trabalho do(c)ente é síntese peculiar deste momento histórico.

É através do trabalho “que o homem é capaz de decodificar a natureza de modo a aproveitá-la instrumentalmente. O trabalho, portanto, funciona como uma ação intencional, consciente e reflexiva, capaz de libertar o homem da tirania da natureza” (CARDOSO, 2011, p. 11).

O trabalho é aqui compreendido em uma dimensão unicamente humana, assumindo o ser humano a condição de trabalhador. Diferentemente dos animais irracionais, o ser humano possui a capacidade de abstrair previamente o que deseja, isto é, projeta o seu trabalho mentalmente antes de executá-lo. Marx (2013) assim diferencia o trabalho do ser humano e o dos animais:

[...] Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a construção da sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado já existia idealmente [...] (MARX, 2013, p. 255-6)

Por vezes nos deparamos com trabalhos elaborados por animais irracionais, a exemplo das abelhas, aranhas e formigas, que de tão perfeitos desafiam a capacidade e a competência humanas. De acordo com Marx, a diferença entre o trabalho realizado por humanos e pelos animais irracionais consiste fundamentalmente na capacidade humana de planejamento a priori do que se pretende construir. Ao construir um prédio, o arquiteto elabora uma planta minuciosamente. Embora o mesmo não ocorra com a abelha, a arquitetura da colmeia põe em xeque a competência de muitos humanos (MARX, 2013).

Para Praun (2016, p. 28), “Trabalhar é, em alguma medida, improvisar e, como tal, empregar um pouco de criatividade pessoal no desenvolvimento da atividade em questão”. Nesse sentido, percebemos que o trabalho apresenta uma dinamicidade que extrapola as amarras da prescrição. Apesar de prescrito, o trabalho é, sobretudo, dinâmico. E ao dialogar com a realidade, o trabalho prescrito assume a roupagem do trabalho real demandando do trabalhador, além do ato de trabalhar, o de improvisar. O trabalho mobiliza funções cognitivas e psíquicas diversas, sendo a criatividade uma delas. Os improvisos no trabalho demandam quase sempre de criatividade que, sendo singular a cada sujeito, propicia um tom diferenciado ao resultado final alcançado e inicialmente planejado.

O trabalho extrapola o ato de trabalhar. Inclui, sobretudo, o ato de transformar e ser também transformado. Há, portanto, uma relação dialética que permeia a construção do trabalho. Dejours (2004, p. 30-31) assim esclarece:

Trabalhar constitui, para a subjetividade, uma provação que transforma. Trabalhar não é somente produzir; é também, transformar a si mesmo e, no melhor dos casos, é uma ocasião oferecida à subjetividade para se testar, até mesmo para se realizar. [...] O trabalho ultrapassa qualquer limite dispensado ao tempo de trabalho; ele mobiliza a personalidade por completo.

Pelo exposto, compreendemos que o trabalho incide diretamente na constituição da subjetividade e da personalidade do trabalhador. Nesse sentido, o trabalho compreenderia muito mais que o tempo gasto para o executar. Conforme elucida Dejours (2004, p. 30-1), o trabalho “mobiliza a personalidade por inteiro”, evidenciando a sua repercussão na esfera da totalidade humana.

A historicidade é um aspecto essencial para a compreensão da categoria trabalho. Lourenço (2009, p. 49) assim reflete:

Trata-se de pensar a categoria trabalho na sua condição sócio- histórica, ou seja, em cada período histórico o trabalho assume contornos determinados pelas forças políticas, econômicas,

científicas e culturais do período. Deve ser dito que, sob o capitalismo o trabalho está estritamente voltado para a produção e a reprodução do dinheiro, revestido em mercadorias. Por isso sofre profundas incrementações, com vistas a servir a valorização do capital.

O trabalho também influi na saúde dos trabalhadores. De acordo com Seligmann-Silva (2011, p. 35), “O trabalho, conforme a situação, tanto poderá fortalecer a saúde mental quanto vulnerabilizá-la e mesmo gerar distúrbios que se expressam coletivamente e no plano individual”. Compreender as relações entre trabalho e saúde constitui um dos focos deste estudo.

A existência de sentido na vida dentro do trabalho está condicionada à existência de vida fora do trabalho. A esse respeito, Antunes (2003, p. 112) assim esclarece:

[...] Não é possível compatibilizar trabalho assalariado, fetichizado e estranhado com tempo (verdadeiramente) livre. Uma vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho. Em alguma medida, a esfera fora do trabalho estará maculada pela desefetivação que se dá no interior da vida laborativa. O sentido da vida do homem sem trabalho foi traduzido pelo poeta Nascimento Júnior (1983), popularmente conhecido por Gonzaguinha na canção “Um homem também chora”. Ele assim canta:

Um homem se humilha se castram os seus sonhos Seu sonho é sua vida e vida é trabalho E sem o seu trabalho O homem não tem honra Se morre, se mata.

Os versos da canção de Gonzaguinha correlacionam trabalho e vida. Pelos versos, apreendemos que um homem sem trabalho vivencia o sentimento de humilhação, castração dos sonhos, desonra e até mesmo a própria morte. O trabalho é, também, concebido como fonte de vida. Dele advém o sentido para a vida do trabalhador e a indissociabilidade entre os conceitos trabalho e vida.

Imerso em um ritmo alucinado e alucinante, Pereira (2005, p. 25) assim caracteriza o trabalhador contemporâneo:

O trabalhador assim se anuncia como um passante, desprovido de lugar em si mesmo e no mundo, condenado a vagar de um lugar para outro, em um ritmo alucinado e alucinante, que o impede de pensar inclusive sobre o fato deste andar frenético não levá-lo a lugar nenhum, como o célebre coelho da história de Alice no País das Maravilhas.

Sato (2010) considera o cenário do trabalho em nosso país com “um “mosaico” no qual o velho e o novo se mesclam”. Acerca dessa complexidade elucida que:

[...] o Brasil é como se fosse um mapa arqueológico onde formas materiais e simbólicas de vidas distintas convivem lado a lado oferecendo-nos desde processos manufatureiros até os mais sofisticados baseados na automação; onde o trabalho escravo faz parte da cadeia produtiva de grandes empresas; onde a crença de que o trabalhador é indolente e preguiçoso – dizem porque descendemos dos índios – convive com aquela de que agora o trabalhador é responsável e tem condições de planejar o seu próprio projeto de atividades e metas, prescindindo de um controlador externo porque o controle simbólico, nos moldes do panóptico de Focault (1994) é eficaz o suficiente para garantir o conserto das práticas. Realidades que categorizamos como “novas” e “velhas” convivem lado a lado de forma ousada, sem qualquer constrangimento, inclusive em um chão de fábrica.

Diante do exposto podemos aqui refletir sobre as configurações contemporâneas de um trabalho frenético que, por vezes, pode estar pleno sentido ou ainda esvaziamento à vida do trabalhador. Imperam tensões entre o trabalho que realiza a essência humana e aquele que pode aniquilá-la. Entre o prazer e o desgaste, o campo da saúde do trabalhador funda pilares importantes para análise da constituição da identidade e da subjetividade dos trabalhadores.

A luz dessas reflexões sobre a compreensão do trabalho, na próxima seção, apresentaremos as especificidades do trabalho docente na pós-graduação stricto

sensu, o que foi potencialmente enriquecido pela experiência dos professores

entrevistados nas quatro dimensões: gestão, ensino, pesquisa e extensão.