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2.2 FAMÍLIAS EM REDE NO PIRAMBU: POBREZA, TRABALHO E HABITAÇÃO

2.2.3 Trabalho informal, bairro popular e transferência de renda

A família em rede é proteção aos parentes desde os imaturos até os idosos, mas não existe sem a provisão. Antes de migrar para a Capital, os moradores do campo tinham a

terra como opção de trabalho e alimentos por meio da manipulação da plantação na atividade agrícola, em especial sob a gerência do pai, que administrava o roçado, e, para os filhos, diferentemente do rural, o trabalho urbano exige escolaridade e conhecimentos a que os pobres não tiveram acesso, ou receberam uma aprendizagem escolar precária para a uma formação que os habilitasse a disputar vagas no mercado de trabalho.

Na Capital, porém, onde está o espaço para o trabalho do homem manter sua família? Na cidade, a rua41 é o lugar do trabalho masculino e feminino. Na pesquisa que fiz em 1999, foram aplicados 20 questionários nas casas das crianças ligadas à escola e ficou constatado que a maioria dos participantes da família com ocupação estava no mercado informal. Nesse mercado informal, trabalhavam como pedreiros, carpinteiros, pescadores, pintores, lavadeiras, serventes e faxineiras. Nele, as mulheres têm mais oportunidades do que os homens. Conforme elas próprias relataram, é mais fácil conseguir trabalho.

O diagnóstico da Secretaria de Infraestrutura do Município – SEINF/HABITAFOR realizou levantamento com 4.052 famílias moradoras nas proximidades da beira da praia que estão na área de intervenção do Projeto Vila do Mar42. Sobre as profissões dos chefes do domicílio e o trabalho, o relatório expressa que,

Conforme dados levantados sobre as profissões exercidas pelos chefes de família na comunidade do Grande Pirambu, constatou-se em maior número os trabalhos de empregada doméstica, com percentual de 6,54%, em segundo lugar as donas de casa com 3,78%, e em terceiro a atividade de vendedor (a) com (3,46%), além de outras especificidades, tais como costureira(o) (2,49%), comerciante (2,22%), lavadeira (1,14%), castanheira (1,63%), catador (0,57%), pedreiro (2,07%), pescador (2,12%), vendedor ambulante (1,06%), as quais são também relatados. (SEINF-HABITAFOR,2009).

Como a renda é definidora da pessoa de referência no domicílio, as mulheres têm ocupado cada vez mais o espaço de provedoras (D`ÁVILA, 2008). A PNAD/IBGE ressalta que no Brasil, entre 1998 e 2008, as mulheres passaram de 25,9% para 34,9% na provisão familiar, e o dado que chamou mais atenção na Síntese dos Indicadores Sociais – SIS foi o crescimento das mulheres declaradas como pessoa de referência com a presença do cônjuge, que subiu de 2,4% para 9,1%. Quanto ao Pirambu, no tocante à chefia feminina, o relatório da SEINF-HABITAFOR verificou que 52,86% das famílias analisadas são chefiadas por mulheres.

41 Utilizo a palavra rua no sentido de que fala Roberto DaMatta, como espaço impessoal, onde todos são

indivíduos em detrimento da pessoalidade dos espaços da casa. Cabe ressaltar que a rua aqui tem um sentido de distante, a que está na frente das casas é extensão da casa como lugar de sociabilidade.

42 Projeto de urbanização da área de praia capitaneado pela Prefeitura de Fortaleza, que delineou novos rumos na

De um modo geral, as famílias que compõe a população do Grande Pirambú, dentre as quais estão situadas a população beneficiária do Projeto Vila do Mar, segundo o diagnóstico da SEINF (2009), são em sua maioria chefiadas por mulheres. Com uma grande predominância de jovens desempregados e muitos beneficiários dos Programas de Transferência de Renda. O índice de escolaridade é pequeno, o que caracteriza também a grande precariedade na profissão dos chefes de família que ocupam empregos com baixos salários. (SEINF-HABITAFOR,2009).

Segundo fonte do relatório da SEINF/PRÓ-SANEAR, onde foram visitadas 1.125 residências para implantação do Projeto Pró-Saneamento43 nos bairros Pirambu e Cristo Redentor, as mulheres são mais recorrentes nas chefias entre os mais pobres. O documento denotou que 78,22% das residências eram chefiadas por elas, sendo um universo de 880 mulheres e 245 homens chefes de família. O relatório destaca que 784 delas recebem até um salário mínimo. São levantamentos realizados no bairro que afirmam a pobreza e a ligação da mulher com a família.

Nas famílias complexas, destaco o percentual de idosos provedores, considerando que os quatro casos de referência desta tese são de unidades domésticas chefiadas por sexagenários. Sobre a chefia do idoso, no relatório da SEINF-HABITAFOR, consta que 11,11% das famílias são chefiadas por eles, sendo 7,53% de mulheres e 3,53% de homens. Nesse relatório, o número de chefes coincide com o número de aposentados, levando a crer que o critério foi a renda da aposentadoria e não da idade a partir de 60 anos.

Na perspectiva da renda, Dona Rita, mesmo tendo 60 anos, não seria considerada chefe da sua família, pois não é aposentada. Uma pesquisa quantitativa por amostragem apresentaria o companheiro de Dona Rita como chefe, por ser idoso e aposentado, no entanto ele não é o provedor da casa nem o responsável pelas crianças; seu lugar é de companheiro e não pai nem mesmo padrasto dos filhos da cônjuge que ele já conheceu adultos. Para identificar os papéis e funções numa família complexa, são necessários um acompanhamento, que não se realiza em apenas uma visita, e a aplicação de um questionário socioeconômico.

As obrigações de manutenção da casa redefinem os papéis e as funções na família. A moradia não é lugar de produção, mas de consumo, o que requer que os meios de manutenção da casa venham do espaço exterior a ela, da rua, fora do locus doméstico. Assim, da necessidade de sustento da casa, os homens e as mulheres saem em busca de trabalho numa condição de paridade entre os sexos e as funções na família. O êxito ou não na disputa por

43 O relatório faz parte de um diagnóstico da SEINF para construção de kit´s sanitários e realização de

uma vaga no mercado de trabalho é um princípio de definição e redefinição dos papéis na unidade doméstica.

Sobre a renda das famílias, o diagnóstico levou em conta rendimentos formais e informais, excetuando benefícios sociais como o Bolsa Família, e verifiou:

A partir do cadastramento das famílias do grande Pirambu observou-se que 25,96% das famílias ganha de ½ a 01 salário mínimo. Quanto às famílias com renda mensal compreendida de 01 a 02 salários mínimos, o percentual verificado é de 31,27%. Os dados comprovam, portanto, que estas famílias sobrevivem de maneira simples, ou seja, que suas condições econômicas não lhes proporcionam opções de lazer e alimentação adequadas. Vale destacar que um total de 89 famílias (ou 2,20%) informou não possuir renda alguma. Dessa forma, sobrevivendo com dificuldades, contando apenas com doações da própria vizinhança ou esmolas, uma realidade critica e preocupante a qual clama por intervenções do poder público. (SEINF- HABITAFOR,2009).

As mulheres das famílias pobres estão mais presentes no mundo do trabalho que os homens. Muitos, em idade laboral, ficam ociosos nas ruas e bares do Bairro. Observo que os homens não permanecem durante o dia na residência familiar e não são disponíveis para falar com pesquisadores, preferindo chamar uma moradora da casa. Apesar de as mulheres terem um número maior de opções de trabalho do que os homens, elas também têm dificuldades de ocupação; nesse sentido, esta análise verifica que a maioria dos adultos nas famílias extensas não exerce atividade remunerada.

Então, como ficam as relações de funções na família diante dessas condições materiais? Os papéis são trocados e acumulados de acordo com as necessidades de manutenção do grupo por meio do trabalho de qualquer participante que consiga auferir algum rendimento. As trocas são solidárias, pois conservam o grupo, mas carregam consigo certa coerção na necessidade de conservação de si mesmo e da rede. A família se organiza assim, formando um arranjo complexo de obrigações, envolvendo o parentesco, o trabalho, a subsistência e a casa.

Além da dificuldade em torno da questão do trabalho, a população do Pirambu enfrenta problemas de acesso à habitação. As pessoas moram em casas que denotam, em muitos casos, a precariedade em que vivem. A casa de Dona Selene, nos últimos dez anos em que foi acompanhada pela pesquisa, teve uma média de moradores superior a 20 pessoas. Suas condições de higiene são bem precárias, pois só possui um banheiro e único ponto de água encanada para toda a rede de parentesco que habita a residência. Cabe ressaltar que a

única torneira está situada na sala de jantar, vizinho à cozinha, e serve para higiene dos cômodos da casa, do banheiro e da cozinha.

As condições de moradia na beira da praia são mais precárias do que na avenida onde mora Dona Selene, pois essas casas são mais antigas e recebem melhor infraestrutura. Sobre as tipologias das casas na área da beira da praia, o relatório das famílias a serem beneficiadas com as intervenções do Projeto Vila do Mar acentua que,

Com relação à tipologia da construção, as unidades habitacionais cadastradas na área são, em sua grande maioria, constituídas de alvenaria de tijolo, geralmente, com piso de cimento 81,81%, existindo também um número elevado de casas construídas de madeira (4,34%), papelão (0,05%), plástico (0,05%) e taipa (0,42%). Embora este número possa parecer pequeno, durante o trabalho de campo, ficou constatada a condição subumana a qual as famílias estão submetidas, colocando principalmente as crianças e os idosos em situação de vulnerabilidade. (SEINF- HABITAFOR,2009).

Em sua maioria, as casas no Pirambu são pequenas e construídas sem um padrão definido, semelhante ao que ocorreu com as ruas do Bairro. As casas têm traçados, tamanhos e formas diversas em razão da própria história contada no item anterior, em que cada um delimitava seu espaço numa relação de disputa com o outro, sem a intervenção legal em termos de urbanização.

As histórias das famílias mapeadas ao longo do processo de investigação foram de dificuldades para permanecer no local e sobreviver. A construção da casa de tijolo é apontada como o principal desejo dos moradores e seu êxito o maior prêmio. Na história de Paulo, morador da beira da praia, ele relata a demora para conseguir comprar os tijolos e construir sua casa, e explica que, enquanto os cômodos eram levantados, a “barraquinha” permanecia no quintal para abrigar a família na longa espera pela conclusão de cada cômodo. Aí fomos fazendo os quarto e a casa com a barraquinha no quintal (Paulo, em 2002).

Nas histórias sobre as habitações, estão presentes o desejo e a dificuldade de construir a casa de tijolo, que representa, para muitos, a realização de um sonho, a segurança de um endereço, um lar. Para as famílias que deixaram a zona rural e se aventuram na Cidade, a construção da moradia significa a confirmação de que a vinda para a Cidade foi um êxito. Por isso, a tristeza aparece e se esconde no rosto das pessoas, ao relatarem que moravam

numa “barraca” e construíram uma casa.

A moradia em “barracas” e “taipa” nos “quintais” e as construções de “compartimentos” em casas de parentes são um símbolo da relação do parentesco e das

afirma a intensa presença do parentesco no Bairro, em que muitos moradores são parentes e vizinhos.

Um dos fatores que entravam a remoção das famílias das áreas de praia do Pirambu reside no fato de os recebimentos de novas moradias se realizarem de forma parcelada, em que algumas pessoas são beneficiadas em detrimento de outros parentes que ainda esperam por sua vez. Assim, colhi um relato de uma jovem que, para não residir longe da mãe, vendeu o apartamento recebido em benefício pela transferência da “área de risco” e retornou à área a ser beneficiada, para continuar perto da mãe e receber novamente o direito a um imóvel na remoção das casas.

....a prefeitura deu os apartamentos pra todo mundo né, mas como a minha mãe, eu não ia vender meu apartamento, como a minha mãe eu só vivia sabendo dela tirando as coisas dos outros, entrou até na casa da sogra dela pra tirar um celular, roubou um bujão da vizinha então como tudo isso aconteceu o pessoal me pediu pra mim poder voltar pra lá porque eu estando morando lá ela se acalmava mais, porque eu tava direto prestando atenção nela né?, ela tava mais eu fazendo as coisas dentro de casa, não ia ter perigo dela está saindo como agora, eu me mudei pra lá a pouco tempo não tá nem com três semanas que eu voltei pra lá, aí eu vendi o apartamento, pra poder comprar uma casa lá, pra voltar pra lá (...) a minha mãe tava usando drogas demais, tava vendendo tudo de dentro de casa. (Rosilene, em janeiro de 2009).

No relato da filha sobre os procedimentos da mãe, a jovem não caracteriza a mãe como ladra e não se refere ao roubo, mas, na sua fala, diz que “ficou sabendo”, o que não lhe confere a certeza da ação indevida de que a mãe estava tirando as coisas dos outros. Na narrativa da jovem, resta evidente que a família não tipifica o parente como delituoso, mas antes, como alguém carente da ajuda e proteção, o que incumbe a filha a alternar a luta da sua casa com seus filhos e suas quatro sessões semanais de hemodiálise com cuidados à mãe.

Nesse caso, Rosilene retornou ao bairro para cuidar da mãe, pois o agravamento da situação levou os vizinhos a cobrar sua volta, sob pena de não “considerar” mais a vizinha e deixá-la para “se entender” com a polícia, haja vista que seus delitos deveriam ser tratados com força policial, no entanto, mesmo entre vizinhos lesados, a primeira providência é chamar a família. No caso, a filha para cumprir seu papel de proteger a mãe.

No processo de cessão de imóveis, há um comércio de unidades residenciais ou

“mercado negro” desde os cadastros de “barracas” até as casas e apartamentos prontos para os

beneficiados. Esse comércio, no entanto, não pode ser visto como relação mercantil comum, mas como prática cotidiana que segue uma lógica própria de interesses e necessidades44. A

44 Sobre esse tema, ver minha a dissertação de Mestrado (2003) “Uma rua, um bairro, uma cidade...”, em que

questão habitacional e os problemas ocorrentes nesse processo, recebimento e venda de imóvel beneficiado nessa política de realocação dos moradores e retorno ao bairro para a mesma área, objetivando um novo recebimento de imóvel, têm sido assunto das famílias da beira da praia. Minha intenção nesta análise, no entanto, é enfatizar que uma das motivações desse processo é o desejo de continuar a residir próximo aos parentes.

Pela leitura da trajetória das famílias pobres nos seus processos de vivência no Bairro e ante a precariedade urbana e acesso à moradia, pode-se supor que o tema central de união delas seria somente de ordem econômica no seu sentido mais objetivo e voltado para a sobrevivência, todavia essa união não consiste meramente de um arranjo econômico, sendo a organização familiar mais bem explicada por uma unidade que reúne parentes a partilhar valores preservados para benefício de todos numa rede de proteção.