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Capítulo II – Conciliação entre Trabalho e Extratrabalho: O Papel do Género na

2.3 Trabalho pago e trabalho não pago numa perspetiva de género

O trabalho nas suas diferentes formas – nomeadamente trabalho remunerado em contextos profissionais e trabalho não-remunerado no contexto familiar – constitui-se como um dos domínios da atividade humana nos quais a valorização social dos tempos se refletiu de um modo mais assimétrico. Com efeito, os quadros legais, os aparelhos estatísticos e, em muitos casos, a literatura científica limitam o conceito de trabalho ao trabalho remunerado, exercido a título de atividade profissional. No entanto, em consequência, uma parte significativa do trabalho, é considerado invisível para a sociedade, as estatísticas e contagens nacionais – todo o trabalho não pago associado à reprodução, ligado à execução de tarefas domésticas e de prestação de cuidados, tarefas às quais não é atribuído valor social ou económico e que não são sequer reconhecidas como trabalho (Perista, 2002). O primeiro instrumento estatístico oficial, em Portugal, a permitir uma análise dos usos do tempo, foi promovido pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), intitula-se o Inquérito à Ocupação do Tempo 1999 e permite analisar as práticas habituais de mulheres e homens no contexto dos agregados domésticos, nomeadamente no que diz respeito à forma de trabalho não pago. Tem como objetivo a mensuração do tempo efetivamente despendido por homens e mulheres nas diferentes tarefas. Este inquérito permite verificar que a afetação dos homens e das mulheres ao trabalho não pago induz tempos diferentes em termos de género (Perista, 2002). Existe uma clara diferenciação em função do género no que diz respeito à afetação a diversas atividades, em contexto profissional e em contexto doméstico, sendo que estas diferenças se tornam mais evidentes em contexto doméstico. No caso das mulheres empregadas, o tempo que estas dedicam ao trabalho não pago reflete a duração semanal da atividade profissional, ou seja, quanto menor é a duração semanal do trabalho remunerado maior é a quantidade de tempo que dedicam ao trabalho doméstico e a

cuidados à família. Em contrapartida, o tempo dedicado pelos homens ao trabalho não pago não é afetado pela quantidade de tempo que dedicam à sua atividade profissional (Perista, 2002).

Segundo um estudo levado a cabo por Torres, Silva, Monteiro, e Cabrita (2004b) relativamente à divisão entre homens e mulheres do trabalho pago e não pago (tarefas domésticas, cuidado com as crianças, etc.) foi possível verificar que em Portugal, as mulheres realizem a quase totalidade do trabalho não remunerado, mesmo trabalhando no exterior aproximadamente o mesmo número de horas do que os homens, traduzindo uma sobrecarga feminina. Tal assimetria resulta, principalmente, da situação conjugal: os homens casados são os que menos tarefas realizam (9 horas semanais); as mulheres casadas são as que mais fazem (cerca de 29 horas). No campo oposto, os solteiros invertem aquele padrão de distribuição, já que os homens que vivem sozinhos realizam mais tarefas, do que os homens casados (15 horas semanais) enquanto as mulheres que vivem sozinhas realizam menos tarefas do que todas as outras (19 horas semanais). Em Portugal tem-se assistido, nas últimas décadas, a uma aproximação rápida e progressiva dos padrões de participação feminina e masculina no mercado de trabalho, contudo, isto não implica que o mesmo tenha acontecida em relação ao trabalho não pago, isto é, esta evolução não tem sido acompanhada por uma aproximação masculina no trabalho doméstico e cuidados à família. Porém, é de realçar que, apesar da persistência de uma grande desigualdade, tem havido uma lenta inserção dos homens no domínio do trabalho não pago (Perista, 2002). O trabalho doméstico mantém-se, por conseguinte, largamente feminizado nomeadamente no que diz respeito a tarefas de cariz mais rotineiro, mais exigentes em termos de dispêndio de tempo e confinadas ao espaço interior da casa como a preparação de refeições ou a limpeza regular da casa. A participação masculina em tarefas mais rotineiras é mais elevada quando existem no

agregado familiar crianças com menos de quinze anos de idade e, também, nos agregados com maior nível de instrução e rendimento.

Todavia, nestes agregados com maior nível de instrução, a menor afetação das mulheres às tarefas domésticas em geral, parece não resultar tanto de uma partilha mais equilibrada de tarefas entre os conjugues, mas sim de um processo de exteriorização do trabalho doméstico, nomeadamente no recurso ao apoio doméstico profissionalizado. Existe também uma elevada feminização da prestação de cuidados diários tanto a crianças como a idosos ou adultos dependentes. Por outro lado, a participação masculina ganha relevo em relação a um conjunto limitado de tarefas mais de carácter rotineiro e racional, como o acompanhamento das crianças às atividades desportivas, de entretenimento ou lazer (Perista, 2002). É importante realçar que estas diferenças de género, quer em termos das tarefas domésticas quer em relação à prestação de cuidados à família, persiste em indivíduos com idades compreendidas entre os quinze e os vinte e quatro anos, o que parece indicar uma reprodução dos estereótipos de género relativos à prática de afetação de tempo de trabalho pago e não pago (Perista, 2002).

2.3.1 Distribuição do trabalho profissional e tarefas domésticas

Partindo do pressuposto que o trabalho não pago inclui tarefas domésticas e cuidados com as crianças, é importante analisar como se procede a divisão das mesmas entre homens e mulheres.

Desta forma, é possível constatar, pelos resultados da investigação de Torres, et al. (2004b), que não é pelo facto de as mulheres exercerem uma profissão que deixam de realizar a quase totalidade das tarefas domésticas, enquanto os homens apenas colaboram numa pequena parte. Ao falar das tarefas domésticas, remetemo-nos a tarefas relativas à casa, roupa, alimentação, cuidados com as crianças e idosos, que ficam

restritas às mulheres, enquanto que atividades relativas a assuntos administrativos e financeiros, manutenção do carro, jardinagem e bricolage pertencem ao homem. Contudo, estes resultados permitem confirmar que a assimetria na repartição das tarefas domésticas parte da variável género (valores, atitudes, papel social) e não da condição perante o trabalho. Nesta perspetiva, cabe ainda ressaltar, que aquando a participação da mulher nas tarefas é diminuta, isto não resulta na maior participação do seu conjugue, mas sim da sua delegação numa empregada doméstica, que é, quase sempre, do género feminino. Relativamente a estes dados, a maioria das mulheres e homens, consideram justa a divisão das tarefas domésticas e o cuidado com os filhos entre os dois géneros, sendo uma percentagem mais reduzida que considera injusta. Assim como, a maioria dos inquiridos, em situação conjugal, afirmam a inexistência de conflitos a propósito da divisão das tarefas.

Importa salientar, que este tipo de informação, sobre a sobrecarga do trabalho não pago das mulheres portugueses, evidencia as disposições que lhes foram incutidas, ou mesmo a responder a expetativas tradicionalistas sobre os desempenhos de papéis na sociedade atual. Desta forma, a mulher que possui uma carreira profissional, estará sempre preocupada em provar que é uma boa profissional, mas também uma excelente mãe, capaz de gerir as tarefas domésticas. Sobre a mesma recai a responsabilidade de conciliar a profissão e a vida familiar, mas não sobre o seu conjugue (Torres, et al. 2004b).

Neste capítulo, podemos verificar que os modelos de compatibilização entre a vida familiar e profissional têm sofrido várias alterações, devido essencialmente ao crescente número de famílias em que ambos os conjugues trabalham. Assim, a divisão tradicional do trabalho pelos dois sexos, em que o trabalho se associava ao homem e o

trabalho à mulher, já não constitui atualmente uma opção consensual. Os papéis de género são culturalmente prescritos e sofrem mudanças de acordo com o contexto histórico. Assim, as mulheres são cada vez mais sujeitas a exigências profissionais intensas, limitando a sua disponibilidade para o desempenho de papéis familiares, e os homens parecem cada vez mais envolvidos com as suas famílias, observando-se uma alteração nas suas prioridades, embora que seja uma lenta inserção. No entanto, o ajustamento dos compromissos para cumprir as necessidades familiares, ou mesmo para as evitar não tendo filhos ou adiar a maternidade, são estratégias que surgem de opções limitativas às quais homens e mulheres se encontram em situação desigual. Todavia, as próprias definições culturais e organizacionais fazem com que exista pouco espaço para diminuir o investimento profissional em prol do cuidado dos filhos ou de uma maior partilha de responsabilidades entre o casal.

A articulação dos domínios trabalho e extratrabalho, é indiscutivelmente, um tema de grande pertinência, despertando atenção para o aspeto problemático da conciliação do trabalho instável com a dinâmica da vida para além da atividade laboral. Nesta perspetiva, o próximo capítulo, aborda uma das formas de trabalho flexível, nomeadamente o trabalho temporário, de forma a compreender os seus efeitos positivos e negativos para a dinâmica da vida extratrabalho.

Capítulo III – O Trabalho Temporário e o seu Impacto Psicossocial