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ESPAÇOS DO TRABALHO POLICIAL

2.3 DIMENSÃO INSTITUCIONAL DO OFÍCIO DE POLÍCIA

2.3.1 Trabalho Policial, Violência e Criminalidade

A idéia geral que permeia o pensamento das pessoas é que o combate ao crime é a função primordial do trabalho policial. A idéia da existência do crime, no entanto, é aceita como possível e provável de acontecer. Esse desvio é tido como uma agressão a uma autoridade que transcende a pessoa humana individualizada. No caso da polícia militar, cabe evitá-lo da melhor maneira possível através da sua presença nas ruas. Mas, se ocorrer, deve o policial reprimir.

Para o sociólogo Émille Durkheim, não existe força moral superior àquela do Estado na representação da coletividade. “Quando reclamamos a repressão ao

crime, não somos a nós que queremos pessoalmente vingar, mas algo de sagrado que sentimos mais ou menos confusamente fora e acima de nós.” (DURKHEIM, 1967, p. 89-81).

Atualmente, o crime e a violência, em suas diversas formas de representação, atormentam a sociedade brasileira. A depender do enquadramento na pirâmide social, eles se transformam no modo de atuação, porém seus efeitos são indistintos e afetam em menor ou maior grau a todos. Existem inúmeras explicações para a ocorrência do fator criminalidade, desde aquelas que apontam causas antropológicas até aquelas derivadas das condições psicológicas, sócio- econômicas e ideológicas, situando-as como determinísticas na formação do crime. A visão, o enfrentamento e o tratamento dessa questão no Brasil, nos dias atuais, reduzem-se normalmente a duas abordagens: a primeira, de forte cunho ideológico, visualiza certa despersonalização dos atores envolvidos no seu cometimento, atribuindo a injunções externas (fome, miséria, desajustes, capitalismo predador) a origem dos males. Nesta ótica, procedimentos repressivos não resolveriam o problema, devendo se realizar a médio e longo prazo políticas públicas centradas nas pessoas e comunidades que, aos poucos, através da assistência social e do respeito aos direitos humanos, teriam mais adequadas condições de se reformar e se livrar desse cruel determinismo; a segunda concebe como causa os comportamentos individuais e transgressores, os quais, como patologias desenvolvidas por questões individualizadas, devem ser “tratadas” com mecanismos de força e repressão. Neste caso, o crime e a violência acontecem por ineficácia do Estado em sua atuação, devendo os governantes “endurecer” na questão, objetivando restabelecer o equilíbrio da ordem pública.

O modo repressivo estipula e fomenta a idéia de uma justiça criminal de braço forte e positivista em que os direitos humanos, da maneira como são defendidos, decorrem por prejudicar a ação policial, tanto na sua ostensividade como na investigação, por acolher de maneira protecionista indivíduos que transgridem a lei, esquecendo-se dos direitos das vítimas desses algozes.

No centro dessa discussão encontram-se os policiais, agentes públicos que durante o desenvolvimento de seu trabalho são tachados, pelos setores do “pensamento progressista”, de praticarem ações abusivas e violadoras de direitos, constituindo-se, segundo eles, em uma linha de frente de um Estado repressor e imperialista.

Já na ótica conservadora, os delitos acontecem pelo fato dos policiais falharem na carga de repressão aos criminosos. O ideário dessa corrente estimula a necessidade de uma força maior para a polícia (geralmente contra pobres e minorias marginalizadas), além de atitudes mais “duras” dos governantes para com os transgressores da lei. A solução seria edificar mais presídios e isolar, dos “cidadãos de bem“, aqueles que não se adaptam ao padrão instituído.

Quando acontecem situações de anormalidade na ordem social, as pressões no modo de trabalho dos policiais são orientadas para um endurecimento no trato com os desviantes. Essas tensões são reforçadas pela mídia alarmista, cujos índices de audiência são elevados pelas conturbações ocasionais que se sucedem no seio institucional.

Na verdade, não se pode pensar em endurecimento nem afrouxamento nas ações policiais, pois as orientações são definidas previamente em ordenamentos técnico-comportamentais amparados por legislação atinente. O ato de policiar e agir como polícia é, por natureza, uma interação entre pessoas, situações, procedimentos e regras a seguir. O ato de se abordar suspeitos em via pública, por exemplo, deve obedecer a um padrão técnico e legal definido, seja numa favela ou num bairro de classe alta, tanto em situações habituais como nas manifestações públicas aberrantes do crime organizado. Esse padrão deve conferir aos agentes do Estado respeitabilidade pela adoção de ações inerentes a todas as pessoas e não apenas a algumas e em circunstância especiais. Infelizmente, observa-se que no cotidiano isso quase nunca acontece. Quando os operadores da segurança pública diferenciam pessoas, no desenvolvimento do próprio trabalho, isso se torna um sintoma de que o Estado também o faz de diversas maneiras, seja por ação ou omissão.

Quanto ao crime, Silva (1998, p. 11) explica que o fator criminal advém de uma série de fatores específicos que não se vinculam necessariamente, nem em um patamar de pensamento nem no outro. O escritor alinha, para efeito de apreciação e estudo, cinco fatores considerados condicionadores da criminalidade: o poder, o desenvolvimento, a desigualdade, a condição humana e o sistema penal. Nota-se que esses fatores incorporam elementos contidos na perspectiva humanista e no plano positivista. Quatro deles teriam, ainda segundo Silva (1998), um teor de fenômeno, (os quatro primeiros), enquanto que o último item, identificado como um sistema criminal injusto e desigual pertenceria ao grupo da ideologia conservadora.

Chega-se à conclusão que existe uma maior definição de causalidade quanto aos elementos oriundos da tese progressista, face à existência, em sua maioria, de quatro questões dominantes, dentre as cinco citadas.

Apesar das diversas discordâncias entre as duas correntes, há, no entanto, uma convergência: perceptível responsabilidade do Estado na questão do fenômeno da criminalidade. É ponto de concordância a existência de falhas históricas estruturais na condução do problema. Elas ocorrem simultaneamente, por omissão no atendimento às demandas sociais, as quais se acumularam ao longo do tempo, formando legiões de excluídos que formam o caldo da violência, paulatinamente saída dos guetos e avança na direção dos “cidadãos de bem”, expressão conhecida da população.

Paralelamente, existe o flagelo da corrupção que desarticula o imaginário conservador determinista, que vincula a criminalidade aos pobres e favelados. Os grandes bandidos do país, nos dias de atuais, usam ternos de corte refinado, são bem remunerados, aparecem na mídia como proponentes de políticas sociais e, contraditoriamente, ocupam parcelas de representação popular nas três instâncias governamentais: Executivo, Legislativo e Judiciário.

O envolvimento da elite institucional em atos delituosos ocasiona um outro abalo moral que agrava a situação de desordenamento institucional existente: o império da impunidade. O ordenamento legal-penal, através de esquemas e brechas desenhadas por quem habilmente as construiu, consegue imunidade de sanções, igualmente previstas em lei, para indivíduos que incorporam determinadas condições institucionais ou de poder econômico, como juízes, deputados, senadores, policiais, detentores de grandes fortunas e autoridades diversas. Assim, em uma mesma objetivação de cometimento de crime, pode ocorrer cominação diversa quanto à aplicação da sua pena, a depender de quem a desencadeou.

Dessa maneira, os agentes do início da ação penal, os policiais, vêem o seu trabalho ser desarticulado e perdido frente a um fator que desmoraliza e desestimula a sua efetividade, pois o ciclo da consolidação do “fazer justiça” se torna ineficaz, desgastante e proscrito. O sentido do trabalho se perde frente à certeza da não conclusão do ciclo de justiça iniciado pelos operadores policiais.

Em um cenário onde se nota que as deformações sociais são oriundas das deformações institucionais - por omissão, incompetência de gestão ou falta de vontade política - a gênese e permanência da violência e a da criminalidade

constituem-se os elementos ambientais com que os policiais militares initerruptamente trabalham. No ambiente inóspito em que as responsabilidades são dispersas e não se chega a uma individualização de culpabilidade quanto ao panorama existente, os próprios policiais são contaminados por ele e são tentados a justificar os seus atos desviantes fundamentados nessas circunstâncias.

Assim, um policial pode interpretar incorretamente que receber dinheiro de um comerciante para realizar um ato de extermínio, seja calcado na percepção de que existe um espaço estatal amplo e exemplificativo o estimula e, por vezes, o autoriza a praticar aquele desvio.

Essa noção deformada é de caráter moral e ético, e normalmente ocorre quando percebe que seus superiores (o seu comandante local, o político ou autoridades do judiciário, ou detentores do poder econômico) podem, fazem, acobertam e fecham os olhos a uma norma dada como inegociável, pois o direito é a sua fonte. O mesmo direito que atribui e consagra as suas funções, também “flexibiliza”, conforme seja a interpretação; pode congregar alguns e, no entanto, é bastante restritivo para outros, geralmente os menos aquinhoados. Este poderia ser um sintoma da estreita visão “bacharelista” e criminalmente limitada da atividade policial, acusada por muitos de ser meramente prescritiva com relação ao crime e à violência.

Não se trata aqui de justificar de modo pragmático e até cômodo os desvios dos agentes de segurança pública. Esta é uma profissão em que, pelas suas características, investe-se de maior responsabilidade no seu desempenho e também um maior encargo na sua correção e na sujeição à punibilidade. Todos os policiais devem estar conscientes disso. O que se pretende afirmar é que valores procedentes da composição do espaço estatal legal e da conjuntura do imaginário social podem estabelecer certa subversão na lógica do trabalho policial.

Entende-se, desse modo, que o espaço de influência institucional é um dos fortes definidores da ação policial, por ser germinador, formador e caracterizador do enfoque atuante dos operadores de polícia, simultaneamente. Como declara Freire Costa (2005), o Estado é super e supra-responsável por possuir a representatividade legal daquilo que é explicitado no dia-a-dia, em todos os seus campos. Cabe aos cidadãos fazer com que o Estado se “reinvente” na forma de pensar e agir exercendo a cidadania, e produza, no seu cotidiano, a tão desejada paz para a sociedade, incluindo-se os trabalhadores policiais.