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BAETHGE, Martin Trabalho, socialização, identidade a crescente subjetivação normativa do trabalho In: MARKET, Werner Teorias de educação e iluminismo, conceitos de trabalho e do sujeito Rio de

OLHAR E IMAGINAÇÃO: PARA SE TECER A TRAMA DO REAL

70 BAETHGE, Martin Trabalho, socialização, identidade a crescente subjetivação normativa do trabalho In: MARKET, Werner Teorias de educação e iluminismo, conceitos de trabalho e do sujeito Rio de

Os argumentos desta tendência recaem sobre pesquisas que revelam, entre outras evidências: a aplicação de critérios de sentido pessoal na fala do trabalhador sobre o trabalho (relaciona o trabalho a si mesmo e não si mesmo ao trabalho); a valorização da relação interna com o trabalho e das intenções subjetivas com este, principalmente com o conteúdo da atividade e as relações de trabalho; referências à relações do trabalho com a emocionalidade, o auto- desenvolvimento e auto-representação.71

Mas como se mostra, na concretude do fazer diário, estas nuanças tão subjetivas entre o sujeito que se vê naquilo que faz, ou que sente a possibilidade de manifestação autêntica e expressiva de si em ato e obra, e o sujeito que assume para si uma outra atividade, dando a si próprio um novo uso ? E, mesmo que esta exigência (interna externalizada ou externa internalizada) não lhe prometa novas possibilidades de auto-expressão ou, até mesmo, que não apresente nenhum outro sentido além do mero cumprimento de uma atribuição, este trabalhador faz esta escolha ou simplesmente sujeita-se a uma opção já posta institucionalmente?

Que processos subjetivos se desenvolvem neste sujeito, consciente ou não, nesta dialética do conformar o trabalho e por ele ser conformado ?

É óbvio que a relação do trabalhador com uma mitologia própria, apontada até aqui, não é suficiente para clarear este processo, mas talvez seja uma das pistas, um dos elementos fundadores destas duas perspectivas da face do trabalhador: a face do sujeito que se percebe único e especial (o que não quer dizer essência mítica supra-histórica e supra-social); e a mesma face do ser que se percebe sujeito moral de seu agir.

Os trabalhadores expressaram, em sua maioria (94%), a nítida percepção da diferença entre momentos em que “se sente ele mesmo” , “fazendo do seu jeito”

71 “Eles [trabalhadores] querem ser tratados como pessoas completas, e não apenas como personagens, e recusam pragmaticamnete relações de autoridade não-fundamentadas; vêem o trabalho tembém como oportunidade de aprender algo novo, de se desenvolver e ganhar um sentimento de competência e independência; ao mesmo tempo, calculam exatamente até que ponto têm a ver com um certo trabalho. Eles não querem se deixar consumir pelo trabalho, já que também querem uma levar uma vida privada satisfatória, e procuram, se a atividade não preenche as suas necessidades expressivas, satisfazer estas últimas em algum ponto fora do trabalho." {Ibidem, p.182)

e outros momentos em que age por assumir papéis, responsabilidades e condutas definidas e esperadas. O critério ou ponto de referência utilizado para esta diferenciação mistura conteúdos da razão e do sentimento e se estabelecem em torno de conflitos ou cisões básicas:

“o que gosta de fazer” X “o que não gosta de fazer” “o que sabe fazer” X “o que não sabe fazer bem” “o que é fácil de fazer” X “o que é difícil de fazer1’

“o que deseja fazer” X “o que não deseja fazer”

Assim, o que não se gosta, não se sabe, é difícil e não se deseja fazer, é feito porque é necessário, é importante, é parte da prática profissional. O racional e o emocional se mesclam em torno de idéias chaves qualificadoras do fazer ou das atividades que compõem este fazer: a idéia de competência e capacidade; agradabilidade/ prazer; dificuldade/limite; adaptação/tolerância, entre outras. Da combinação de sentimentos e avaliações que o trabalhador faz de si e de seu trabalho, chega a se constituir a percepção de “estar inteiro naquilo que se faz”, de perceber sentido e realização na sua ação.

Então, a possibilidade de achar sentido para si no trabalho é imediatamente relacionada com as atividades ou parcelas deste trabalho com as quais o trabalhador se identifica em termos de capacidade e prazer, por exemplo. Quanto maiores e mais numerosas forem estas atividades no total das ações realizadas, maior será, consequentemente, o sentido de realização e investimento pessoal do sujeito. Isto, é claro, não inibe a crítica que se possa fazer à forma assumida de organização daquele trabalho na instituição, ou de modo geral, na sociedade como um todo.

Algumas falas são representativas destas deduções:

"... eu me sinto inteira é no momento em que estou em sala de aula. É porque eu gosto de fazer, é o que eu acho que sei fazer melhor. É uma coisa envolvente... uma coisa de iluminação... um momento glorioso. E coisas assim, que de fato não sou eu, eu

não consigo executar bem esse papel, é de coordenação... não vou mais nem sofrer.’’ (teste)

“Quando eu estou tentando passar alguma experiência, alguma noção de prevenção em relação ao ambulatório. Tem as áreas, mas são nesses momentos que eu sinto mais... que eu tenho mais liberdade." (Marte)

“Mais a assistência. Gosto do ambiente familiar no caso. Gosto de trabalhar com outras mulheres. É ótimo. É diferente de criança, porque com criança é uma coisa, eu já não gosto. Agora, uma gestante... eu estou tá no céu." (Tália)

“Eu sou muito melhor quando eu sou eu, entende? Quando eu tenho que ser aquela enfermeira padrão que você aprende na escola... que não usa brinco assim, que não usa isso... aquela enfermeira freira... A í eu sou horrível. A gente é boa quando a gente é a gente.’’ (Eurídice)

Transparece, também, o quanto o processo de auto-conhecimento permeia a experiência de tornar-se trabalhador e de buscar dignidade e satisfação no trabalho. Pode até parecer óbvio, mas à medida que conhece melhor seus limites e seus potenciais, seus gostos e jeitos, - e isso não se dá “a priori” - é que o trabalhador pode reelaborar as idéias, mitos e esperanças sobre si e seu trabalho. Talvez seja aí, no cair das máscaras - a sua própria e a do trabalho que escolheu - que, para muitos, o conflito se torna insustentável, como insuportável pode ser viver sem máscara alguma. Para estes a única saída se torna o abandono do emprego ou da profissão.

Mas, voltando às falas dos entrevistados pode-se ilustrar este processo de reconhecer e conviver com seu limites:

“Eu acho que não sirvo para isso (chefiar). Que eu não gosto de mandar em ninguém; que prefiro ser mandada do que mandar nos outros. ” (Têmis)

“... mas eu gosto de outras funções, do burocrático, digamos assim. Eu não sei se é uma situação conflitante ou não. Também não interessa, porque eu tenho que me aceitar dessa forma... Que eu não gosto é de ficar repetindo sempre a mesma tarefa. Quando tem alguma coisa diferenciada também é interessante, você toma seu dia-a-dia mais vanado, não dá tempo de enjoar das coisas." (Ônfale)

“Quando tu começas a trabalhar tu vê que a coisa não é por aí. Então, às vezes é difícil ter que mudar, ter que observar. Às vezes, as pessoas... Ai meu Deus, se fosse eu ia lá e já fazia do meu jeito. " (Egina)

“Quando me sinto observada, que eu estou tendo que mostrar que eu sei fazer, aí eu não sirvo mais para nada... Como a vida da gente é um processo, né? Quando eu era criança... " (Eurídice)

Nesse mesmo processo no qual o trabalhador descobre potenciais e limites - rasga algumas máscaras e mitos mesmo que para construir novas, fortifica suas ligações com o trabalho, através da opção de nele permanecer, inventando novos artifícios face aos enfrentamentos cotidianos, - ele descobre, também, uma outra capacidade, a de adaptação e sacrifício. Não o sacrifício dos heróis trágicos que se entregam por inteiro por uma causa, fé ou paixão. Mas os sacrifícios meio astuciosos, revestidos de banalidade, que tentam resolver uma certa tensão angustiante entre o real e o ideal, entre o querer e o dever, entre o cotidiano repetitivo e a fantasia rica em profundos e intensos interesses, sentimentos e razões. O que a primeira vista pode parecer uma fraqueza ou abandono do trabalhador às exigências do trabalho, pode, também, ser visto como mecanismo do trabalhador para, na ausência de identificação com grandes heróis e mitos salvadores, realizar do melhor modo possível e em si próprio, mesmo que em pequenas doses, o que sente possível do seu ideal e modelo, do alter-ego (outro eu) que precisa encontrar ressonância, precisa de alguém com quem se identificar, precisa de um mínimo espaço para se manifestar. Assim, se é claro que o sujeito orienta sua conduta por certos mitos diretores e rompe com outros tantos padrões, recapturando o riso, a zombaria e o desleixo em situações de rigidez e seriedade; se é claro que estas e outras estratégias dão compensação e evasão às angústias, insatisfações e proibições que pesam sobre este sujeito; talvez deva-se tomar algumas condutas de sacrifício como uma outra forma de resistência. Sacrifício não como oferenda ou castigo sagrado, mas como apelo a si mesmo, apaziguamento eficaz do eu com seu duplo, de uma imagem de si com seu fantasma ou sombra. Resistência frente a um risco bem maior: a perda do auto referencial, da auto-estima, da identidade de trabalhador, isto, na linguagem do trabalhador da saúde possui várias denominações: responsabilidade, compromisso, necessidade...

“Você sente que você faz porque é uma necessidade, mas não porque você se... Não...Eu gosto também. Sabe, assim... (Tétis)

"... se toma uma coisa assim, indesejável; que eu gostaria de não enfrentar. Uma situação bastante chata. Que realmente é uma função que tu tens que encarar e tal. (Esfinge)

“É uma diferença assim gritante. Nessas horas eu fico atacada. Porque às vezes é um paciente que está te chamando mas tu tens que cumprir aquele teu papel ali... ali administrativo, tu és obrigada a fazer. Então essa obrigação por essa parte administrativa é que me irrita. ” (Electra)

“Mas não é uma coisa assim... que seja a gente que está fazendo aquilo.... Tem que fazer, faz parte da profissão." (Egina)

"... é estafante, entende? Infelizmente, para mim, agora eu vou pegar uma direção de um hospital. Não é induzido, porque induzido não seria a palavra correta. Eu fui convidado e no fim a gente tem que assumir, porque chega determinado ponto na vida a gente... ” (Menelau)

A Imagem além de si

O homem moderno, pelo horror de adoecer e de sua própria morte, necessita do saber e da técnica como refúgio para seu medo e precariedade. Outros homens vendem sua força de trabalho administrando tais incômodos, construindo histórica e socialmente um processo de trabalho onde o poder e a técnica se encarregam de diluir o impacto e o sentimento de impotência desconcertante.72

Estes homens, trabalhadores da saúde, como vimos, tem uma consciência de si fortemente imbricada no trabalho que realizam, que lhes toma grande parte da existência e da energia; e para onde acaba se dirigindo grande parte de suas pulsões psíquicas, emocionais e eróticas.

Vimos, embora sem o caráter de novidade, que a imagem que o trabalhador faz de si é arquitetada na relação que se estabelece com o outro e com o tempo/espaço vivido. Assim, falar de si é pouco. Falar de si é,

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