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CAPÍTULO 1 FAMÍLIA BRASILEIRA E ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL: A

1.3 A voz das famílias das crianças e adolescentes em acolhimento

1.3.1 Trajetórias de vida: rupturas drásticas

Todos os entrevistados apresentaram mobilidade espacial da vida rural para a urbana, do Nordeste para o Sudeste do Brasil, tendo em comum a fixação ora em Morro Agudo, ora em Orlândia, ambas as cidades localizadas no Nordeste do estado de São Paulo e ligadas à produção da cana-de-açúcar.

Na fala de Joaquina fica evidente que “quem morava na roça não tinha essa liberdade toda pra conhecer o pessoal”, indicando que a migração tinha como pano de fundo motivo pessoal de quem estava em busca de novas formas de relação, mas sempre através do contato de algum parente ou amigo.

Ao descrever as migrações populacionais no período do Brasil Colônia, a historiadora descreve:

A migração não era um movimento aleatório. Respondia a escolhas individuais e motivos individuais, embora conjunturas específicas tendessem a unificar o movimento. Áreas em expansão tornavam-se chamariz poderoso, mas a opção por mover-se era particular e um dos estímulos mais fortes consistia em residir, na região escolhida, alguma pessoa do relacionamento anterior... Se agregarmos o alto índice de migração da época, fica claro que o viajante buscava lugares onde tivesse algum laço (consanguíneo ou não). (FARIA, 1998, p. 111-112).

Após migrarem, as pessoas buscavam conservar algo de sua identidade, ou seja, algum laço que os mantivesse ligados às suas raízes socioculturais.

João veio para o estado de São Paulo há quinze anos, regressou ao lar apenas uma vez. É membro de uma família numerosa, residiu em diversas cidades ligadas à produção de cana-de-açúcar como: Ribeirão Preto, Morro Agudo e Orlândia, todas localizadas no interior do estado de São Paulo. Uma das motivações para a migração foi a ausência de trabalho e renda na cidade da origem, que fazia com que ele sobrevivesse através da aposentadoria percebida pelos seus pais que também auxiliavam financeiramente outros filhos.

Ele também migrou em busca de melhores condições de vida, no entanto, acredita que, na cidade de origem, era melhor para educar os filhos, plantar e colher alimentos e não “depender dos outros” para sobreviver.

A expansão da acumulação do capital não é linear: vai abarcando progressivamente diversos ramos da produção. Ao atingir a agricultura, tende a reduzir a demanda da população trabalhadora rural, sendo que esta expulsão não é completada, como na indústria, afigura à população é a migração para os centros urbanos. (IAMAMOTO; CARVALHO, 1998, p. 61).

São pessoas caracterizadas pela superpopulação intermitente, que ora tem trabalho, ora não tem, sobrevivendo a partir de acesso ao trabalho de forma muito irregular, com nível de vida abaixo da média da classe trabalhadora.

Maria apresenta como principal motivação a busca por um lugar diferente, pois a cidade de origem “é um lugar muito sofrido” no sentido de ter dificuldades de

acesso à alimentação, trabalho e, principalmente, habitação, pois moravam em casa de barro.

Ela vai para São Paulo, capital, em busca de trabalho, regressa ao Nordeste para buscar as filhas, mas, como elas já haviam estabelecido vínculos de pertencimento no local onde viviam com a tia paterna, elas não quiseram acompanhar a mãe.

Na cidade de São Paulo, conhece o marido, identificando nele as figuras de referência que não teve no início de sua vida: “ele é meu pai, minha mãe, ele que cuida de mim”. Com ele, planejou e construiu uma família, vivencia a maternidade através da criação de um sobrinho, chamando-o de “filho do coração”. Por ser portadora de doença crônica, no estado de São Paulo, teve amplo acesso a tratamento médico e remédios.

Todos advêm de famílias numerosas, o que complexifica ainda mais a sobrevivência tanto no campo, como nas cidades, pela precariedade de acesso aos direitos sociais.

Joaquina teve onze irmãos de criação e sete irmãs biológicas. Aos dezessete anos migrou do campo para a cidade em busca de trabalho. Posteriormente, foi para São Paulo, capital, com sua madrinha de batismo, onde conheceu seu marido.

Aos dezenove anos, ela e o namorado “fugiram” para se casar, momento em que perdeu o contato com a família de criação. Após muitos anos, retoma os vínculos rompidos com seus familiares no momento em que um irmão está muito adoecido. Com o objetivo de ir visitá-lo, ela vende todos os móveis da casa, deixando apenas uma cama e um fogão, para obter o dinheiro necessário para ir até ao nordeste.

De São Paulo, capital, ela, o marido, os filhos e netos migram para Morro Agudo e, posteriormente, para Orlândia.

O desenraizamento social e a perda de laços sociais nos remetem ao conceito de desfiliação, explicitado por Castel (apud SPOSATI, 1999, p. 70) como:

A ruptura de laços de pertencimento, que leva à perda do vínculo societal. Trata-se da ocorrência de uma sucessão de rupturas na vida que fragilizam o vínculo societal e produzem a desfiliação e o despertencimento. O indivíduo fica sem referência, sem apoio, sem significados, sem intercâmbio etc.

Joaquina apresenta mudança constante de casa, de trabalho, de cidade, de estado sinalizando o não enraizamento em local nenhum, não pertencimento ao local e também todo o desprendimento material do pouco que possui: vende os móveis para ir “socorrer” a filha, o irmão, a sobrinha, mas sempre em busca dessa referência familiar, desse laço que a une à sua identidade.

A não fixação em normas sociais dos familiares de Joaquina também é apontada em Relatório Social elaborado pela equipe do Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) (Processo 2, folha 334):

Percebemos que mãe e familiares não possuem condições internas para se fixarem em trabalho, residência, rotina diária. A família transita muito de uma cidade a outra: de Orlândia para Morro Agudo e vice-versa, São Jose da Bela Vista. Joaquina sempre transita para Mato Grosso do Sul, etc. Também verificamos que este problema em transitar de um lugar a outro é geracional.

A questão de acesso a melhores condições de vida no estado de São Paulo fica evidente no trecho do Relatório Psicossocial elaborado pela equipe interprofissional do Fórum (Processo 1, folha 100), na fala da filha de Maria:

Quanto à possibilidade de retornarem para a cidade de origem no nordeste do país, coloca que este é um projeto da família, porém não agora, talvez em dois ou três anos. Afirmam que lá as dificuldades em conseguir trabalho, imóvel e outros são maiores e que, aqui no estado de São Paulo, eles têm acesso a bens e a serviços e, por conseguinte, a melhores condições de vida.

Diante das dificuldades encontradas em Orlândia para permanecer com a guarda de seus filhos, a filha de Maria, mãe das crianças que foram acolhidas institucionalmente, muda-se com o companheiro para Morro Agudo, para que ele trabalhe no corte da cana-de-açúcar e obtenha maior rendimento para o sustento da companheira e dos enteados.

A fala de Márcia evidencia que, na cidade de origem, na zona rural onde morava, era melhor para se viver, por não ter que depender de patrões para obter seus meios de subsistência, pois:

Lá cê memu plantava seus alimento, cê memo colhia, cê vendia, cê não tinha que ficá... [silêncio] dependeno muito das pessoa, igual aqui na cidade, entendeu? (Márcia).