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4 ANÁLISE DO CORPUS DE PESQUISA

4.1 O ETHOS POLICIAL

4.1.7 Tramas paralelas

Após essa breve digressão acerca da formação do policial de tropas de elite, a trama passa a desenrolar um novo capítulo. Neste, Romerito, uma criança moradora do morro onde funciona a ONG para a qual os amigos de faculdade do Aspirante Matias sensibilizados ao descobrirem que a dificuldade de aprendizagem que sofria o garoto decorria de uma dificuldade de visão, providencia a aquisição de um par de óculos para a criança. O intermediador dessa entrega é um dos membros da ONG mas que também informa ao “comando” do morro, que monta uma armadilha para matar o personagem. Em seu lugar, entretanto, quem realiza a entrega é seu colega de farda, o Aspirante Neto, que acaba sendo alvo de um tiro e vem a falecer. Mais adiante, durante uma manifestação em prol da morte de outros dois alunos da faculdade, o narrador comenta:

Quadro 18 – Narração desabafo do Capitão Nascimento

CAPITÃO NASCIMENTO: Engraçado, porque ninguém faz passeata quando morre um policial. Protesto é só pra morte de rico. Quando eu vejo passeata contra a violência, parceiro, eu tenho vontade de sair metendo a porrada.

A partir daí, inicia-se uma caçada a um traficante de epíteto “Baiano”, responsável pela morte do Aspirante Neto. Tomado pela vontade de justiça, o objetivo é matar indiscriminadamente o algoz do Aspirante Neto, mesmo que para isso tivesse que torturar inocentes e usar de violência gratuita. Assim, a película encerra-se com o sacrifício do tal “Baiano” pelas mãos do sucessor do capitão Nascimento, o Aspirante Matias.

Todo esse enredo ocorre dentro de uma impressão de formação prática, empregando-se meios pedagógicos não convencionais com o fim de forjar um caráter particular daqueles que envergam uma “farda preta”.

4.1.8 A empatia como elemento discursivo-construtivo dos Direitos Humanos

O processo de empatia foi a principal ação articuladora da evolução dos Direitos Humanos na idade moderna. Nesse sentido, Hunt (2009) demonstra que um

ano antes de publicar seu clássico O contrato social, Rousseau ganha notoriedade internacional ao publicar um romance intitulado Júlia ou A Nova Heloísa. O jogo de palavras entretanto não foi à toa: Heloísa de Argenteuil (1090) era uma personagem francesa da vida real que nutriu uma paixão proibida pelo filósofo (e provavelmente seu professor em algum momento da vida) Pedro Abelardo, rendendo a este último o infame destino de ser castrado. O romance foi todo traçado e descrito em cartas trocadas entre os amantes, o que foi reescrito por Rousseau para descrever uma personagem que também descreveu sua vida em cartas, mas com um desfecho diverso do roteiro da Heloísa.

Tropa de Elite parece seguir a mesma estratégia discursiva. Criando um Rio de Janeiro ficcional que se identifica quase que integralmente com as realidades vividas pelos expectadores da obra, desenha um policial ficcional que age da mesma forma como muitos policiais (reais) até eram conhecidos e apresentados na mídia: violentos para uns, destemidos para outros, decerto com uma ética dissonante daquela correspondente às relações humanas comumente aceitas. Essa estratégia de estranha semelhança ganha um novo traço ao construir um discurso onde o receptor é convidado a compreender os sentimentos e realidades vividas pelo personagem apresentado, deixando a este último a possibilidade de construir um Ethos próprio de cada policial que passar a ver na rua.

Hunt (2009) demonstra que romances como Júlia foram importantes para promover uma reflexão sobre as realidades vividas por este ou aquele personagem e isso porque os leitores passavam “a se identificar com personagens comuns, que lhes eram por definição pessoalmente desconhecidos. Os leitores sentiam empatia pelos personagens, especialmente pela heroína ou pelo herói, graças aos mecanismos da própria forma narrativa”. A seu ver, Rousseau pretendia com Júlia promover o debate acerca da incondicional submissão da mulher à figura masculina, seja do pai ou do esposo, e para tanto se esforçou em criar condições favoráveis para que essa construção fosse feita a partir do conhecimento de um novo Ethos feminino, encarnado em uma personagem destemida capaz de sacrificar seus próprios desejos.

A empatia então promove ao discurso uma modalidade ímpar de identificação e adesão. Ao gerar essa empatia, o Ethos passa a ser então patrocinado tanto pelo enunciador como pelo ouvinte, seguinte uma ordem coordenada de direção.

A posição do receptor entretanto não é passiva. Ao atingir um determinado nível de identificação, ele apresenta indícios de comunicação com o enunciador-fonte e que são notoriamente perceptíveis. Hunt (2009) ao descrever o resultado “midiático” da personagem Júlia, demonstra que “toda sorte de pessoas comuns escreviam a Rousseau para descrever seus sentimentos de um fogo devorador”, o que provavelmente na modernidade pode ser comparado ao fenômeno cinematográfico vivido pelo personagem capitão Nascimento logo após a publicação do filme.

A empatia parece então ocupar uma dupla função dentro discurso. Ao mesmo tempo que é fruto, valida sua existência.

Esse sentimento caracteristicamente humano é capaz de fazermos “compreender a subjetividade de outras pessoas e ser capaz de imaginar que suas experiências interiores são semelhantes às nossas” (HUNT, 2009).

Buscando compreender melhor a construção desse Ethos a um só tempo violento e instigante, passaremos à análise de algumas expressões com inspiração formulaicas encontradas em Tropa de Elite que reverberaram com bastante força em corporações policiais, e de modo mais tímido entre a população em geral. Não são fórmulas discursivas de modo estrito, mas funcionam de modo similar ainda que não possuem parte fixa e parte variável como acontece nas fórmulas de que são exemplos “Somos todos X ou Somos todos Z”.