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2 A SURDEZ EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-SOCIAL E

4.2 O MULTILINGUISMO: PROCESSAMENTO LÉXICO-SEMÂNTICO E A

4.2.1 Transferência na aquisição multilíngue

4.2.1.2 Transferência da língua de sinais para a língua oral

Se existem inúmeros estudos que investigam a transferência lexical entre línguas orais, o mesmo não pode ser dito a respeito da transferência entre línguas de modalidades diferentes.

Cummins (1981, 2006) foi um dos poucos linguistas a se preocupar com a questão da transferência interlinguística não só entre línguas orais, mas também entre línguas de modalidades distintas. No contexto de aquisição de línguas orais/escritas por surdos nos EUA, o autor defende que, se a ASL34 (L1) for bem estabelecida, poderá haver transferência tanto de seus elementos linguísticos como de habilidades metalinguísticas e metacognitivas.

A Teoria da Interdependência Linguística de Cummins (1981) assume que a L1 é a base sobre a qual a outras línguas serão aprendidas. Se na tarefa de aprender uma nova língua o aluno utiliza seus conhecimentos anteriores, seja no nível das estratégias metacognitivas e metalinguísticas como no nível conceitual ou linguístico, o aprendiz surdo poderá lançar mão de sua competência na LIBRAS (L1) para aprender a LP (L2) ou a LI (L3).

Quanto à diferença de modalidade encontrada entre essas duas línguas, argumento que tenta refutar o pressuposto de que a LS (L1) seja a fonte de onde as transferências ocorrem, o próprio autor da teoria contrapõe seus críticos afirmando que mesmo línguas de modalidades diferentes são interdependentes35. (MAYER;

WELLS, 1996). De acordo com Cummins (1981), o conhecimento construído anteriormente na L1, seja conceitual ou linguístico (por exemplo, o uso da datilologia e dos sinais inicializadores) será trazido na tarefa de se aprender outra língua, independente do canal em que se expresse. Em outras palavras, o conhecimento de

34 Em seu estudo, Cummins (1981, 2006) utiliza a ASL como exemplo de língua sinalizada e como

língua oral o inglês, contudo, outras línguas de sinais ou orais podem ser utilizadas em contextos que não o dos Estados Unidos.

35 A proposição defendida por Cummins (1981) foi duramente criticada por Mayer e Wells (1996).

Para esses autores, a possibilidade de transferência de habilidades da LS para as línguas orais é baseada em uma falsa analogia, pois as condições de sua ocorrência não são as mesmas das transferências que ocorrem entre línguas orais. Segundo Mayer e Wells, o surdo, mesmo com surdez leve, não apresenta uma oralidade inteligível e tem acesso mínimo ao canal auditivo da comunicação. Apesar dos esforços em se criar uma língua escrita para as LS, nenhuma língua espaço-visual possui uma forma escrita amplamente aceita e difundida. Assim sendo, como a L1 do surdo não possui um sistema escrito utilizado largamente, os surdos não têm habilidades de alfabetização na sua língua materna que possam ser transpostas para a forma escrita de uma L2. Mayer e Wells julgam que, nesse aspecto, o modelo da Interdependência Linguística não se mostra aplicável para o surdo. (CUMMINS, 1981 apud MAYER; WELLS, 1996).

uma LS pode auxiliar a aprendizagem de um idioma oral-auditivo. Perfetti e Sandak (2000) destacam que a explicação para o fato de que surdos filhos de pais surdos tendem a ser melhores leitores do que surdos filhos de pais ouvintes é fruto de que a aquisição de qualquer língua é melhor do que a não aquisição de nenhuma. Segundo os autores, é relevante para o aluno surdo a base cultural e motivacional do bom êxito educacional recebido na língua materna.

Ainda que autores como Mayer e Wells (1996) tenham se posicionado contra a tese de que seja possível transferir elementos linguísticos das LSs para as línguas orais, esses autores não negam a importância das LSs para a escolarização do surdo, que os mesmos definem como crucial. Conforme Mayer e Wells (1996), a aprendizagem da LS como L1 pode ajudar a desenvolver as habilidades cognitivas que servem de base para as transferências conceituais e cognitivas entre línguas de modalidades distintas. Pode-se supor então que, mesmo que a LS (L1) e a língua oral (L2, L3) sejam de modalidades diferentes, a LS constituirá um facilitador para a apropriação de uma língua adicional oral-auditiva. Essa afirmação encontra respaldo na ideia de que o aprendiz de uma L2 nunca começa a aprender todos os conceitos na nova língua do princípio; ele os reinterpreta a partir dos conceitos que já possui.

Cummins (2006), para defender sua teoria, rebate as criticas de Mayer e Wells (1996) de que não seja possível se transferir elementos linguísticos entre línguas de modalidades distintas. Segundo o autor, o conhecimento conceitual é tão relevante para o desenvolvimento da alfabetização de uma língua oral como o conhecimento linguístico. O autor cita os resultados das pesquisas que demonstram a relação positiva entre a proficiência na ASL (L1) e as habilidades de leitura e escrita na LI (L2), principalmente os surdos filhos de pais surdos.

Inúmeros estudos (STRONG; PRINZ 1997, PADDEN; RAMSEY, 1998, 2000, WILBUR, 2000, HOFFMEISTER, 2000) realizados há mais de uma década nos EUA com a ASL indicam que todo o desempenho sócio-educacional dos aprendizes surdos filhos de pais surdos, que recebem input linguístico na infância, é superior ao de surdos filhos de pais ouvintes. Esses estudos indicam o efeito positivo e facilitador do conhecimento da LS (L1) sobre a aquisição do vocabulário e as habilidades de leitura e escrita de línguas orais (L2), o que é consistente com a Hipótese da Interdependência Linguística. Tais estudos parecem indicar que a quantidade e qualidade do input linguístico que a criança surda recebe na sua LS,

seja em casa ou na escola, é um fator crucial e que pode ser transferido para a aprendizagem de uma língua de modalidade ora-auditiva (língua adicional).

Entretanto, pesquisadores como Chamberlain e Mayberry (2000) afirmam que, embora exista uma forte relação entre as LS e a aquisição da língua escrita (L2), ainda há lacunas em nosso conhecimento acerca dos processos exatos de aquisição da língua escrita por surdos. Segundo as autoras, talvez não haja uma relação causal entre o conhecimento da ASL e a habilidade de leitura mas, em vez disso, um efeito facilitador no conhecimento das LS sobre a aquisição de uma língua escrita. Logo, são necessárias mais pesquisas que se dediquem a investigar a relação entre as LSs e a forma escrita das línguas orais. De qualquer maneira, e ainda que os estudos mencionados aqui se restrinjam ao âmbito de aquisição de L2, os resultados dessas investigações se mostram bastante relevantes para esta pesquisa, uma vez que processos semelhantes de transferência podem ocorrer entre a L1 (LIBRAS) e a L3 (LI).

É relevante mencionar que a transferência interlinguística está relacionada ao modelo proposto por Grosjean (1982, 2006), segundo o qual a quantidade de transferência lexical de uma língua a outra depende do “language mode” no qual se encontra o indivíduo. Esse modelo, como já definido, consiste no estado de ativação das línguas de um bi/multilíngue em um determinado momento. No “modo monolíngue”, uma das línguas (guest language) está em baixa ativação o que impede a ocorrência do code-switching ou empréstimos lexicais. Porém, no “modo bilíngue”, ela encontra-se quase tão ativa como a língua base, o que pode causar frequentes ocorrências de code-switching e empréstimos lexicais. A seção seguinte é destinada a apresentar os resultados de algumas pesquisas que investigam o processamento lexical em bi/multilíngues ouvintes, e na sequência será tratado o mesmo tema envolvendo sujeitos CODAS e surdos.