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2 A SURDEZ EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-SOCIAL E

4.2 O MULTILINGUISMO: PROCESSAMENTO LÉXICO-SEMÂNTICO E A

4.2.1 Transferência na aquisição multilíngue

4.2.1.1 Transferência lexical multilíngue em línguas orais

Alguns trabalhos, no campo de aprendizagem de L3, tendo como escopo a transferência lexical das línguas orais por indivíduos ouvintes, podem ser citados. Ringbom (1987), na distinção que faz entre transferência de forma e de significado, menciona que a transferência lexical de forma normalmente se manifesta quando há a alternância completa de código (code-switching) ou no uso de falsos cognatos. A forma da palavra que foi transferida através do code-switching poderá ser modificada, morfológica ou fonologicamente, de acordo com os princípios assumidos da L3, levando à criação de termos híbridos ou misturas (blends) que não existem na L3. O autor ilustra a criação de termos híbridos por falantes de sueco (L1) aprendizes de LI (L3): In the morning I was tired and in the evening I was piggy. A

palavra em sueco pigg significa descansado. Ringbom (1987) exemplifica também a transferência lexical com os falsos cognatos do inglês e sueco como na produção da palavra fabric, que foi transferida do sueco fabrik, em vez do termo em inglês factory. O aluno sueco de inglês produziu: At the time he works in a fabric. Nesse caso, a forma da palavra se destaca o que faz com que o aprendiz ative ou seja influenciado por um vocábulo de forma semelhante na sua L1(fabrik) ou na L2, em vez do termo pretendido na L3 (factory). Ringbom (2001) enfatiza que a transferência lexical de forma ocorre principalmente no sentido L2-L3, enquanto a transferência de significado, que requer mais fluência e automatização na língua-fonte, ocorre na direção L1-L3, mesmo em línguas distantes tipologicamente.

O autor exemplifica também o uso de extensão semântica33 nas sentenças produzidas por um dos seus informantes, falante de finlandês (L1) aprendiz de sueco como L2 ao escrever um artigo em LI (L3). O aluno escreveu a seguinte sentença: He bit himself in the language. Em finlandês a palavra kieli significa tanto

tongue como language. O emprego incorreto da palavra language em vez de tongue

é, provavelmente, resultado da dedução errônea do aluno de identidade semântica entre as duas palavras.

O estudo da transferência de classe de palavras, ou seja, palavras de conteúdo e de forma, tem recebido atenção por parte dos pesquisadores. Nos estudos do bilinguismo as pesquisas indicam que a transferência de palavras de conteúdo é mais monitorada, mas que a transferência involuntária diz respeito às palavras funcionais (POULISSE; BONGAERTS, 1994). As palavras de conteúdo tendem a ser corrigidas durante e depois de pronunciadas, já as de forma, raramente são adaptadas morfológica e fonologicamente. Poulisse e Bongaerts (1994) atribuem esse fenômeno à relação entre proficiência na L2 e a atenção: quando o aprendiz tem pouca proficiência na língua-alvo ele tende a destinar a maior parte de sua atenção consciente ao significado e a focalizar mais nas palavras de conteúdo, conduzindo a mais erros nas palavras funcionais que requerem menos esforço para codificar e articular.

Nos estudos de línguas adicionais, De Angelis (2005), assim como Ringbom (1987), sugere a transferência de palavras funcionais da língua previamente

33 Extensão semântica consiste no uso de uma palavra com o fim de adquirir novos significados. Por

exemplo, atualmente as palavras janela e portal são termos aplicados à informática por extensão semântica. A extensão semântica de uma palavra é uma característica própria da evolução das unidades lexicais que adquirem novos significados por meio do uso. (RODRIGUES, 2006).

aprendida. Os participantes de sua pesquisa tinham como L1 o inglês, como L2 o espanhol ou o francês e estavam aprendendo italiano como L3. Ocorrências de palavras funcionais como preposições, artigos, pronomes e conjunções da L2 (80%) foram maiores do que as da L1 (18%). Ao final do estudo, a autora concluiu que o conhecimento anterior de uma língua não nativa parece guiar as escolhas dos aprendizes no que se refere às palavras funcionais. Hammarberg (WILLIAMS; HAMMARBERG, 1998) analisando a produção linguística de Sarah Williams, também constatou que a informante frequentemente recorria à sua L1(LI) conscientemente para fazer comentários metalinguísticos (e.g. how do you say ...?) e incorporações intencionais de itens lexicais da L1 para preencher lacunas durante a produção da L3 (sueco). Entretanto, Williams utilizava sua L2 (alemão) em alternância de língua involuntária que geralmente envolvia palavras funcionais curtas como mit (=with). Como demonstra Cenoz (2001), essa transferência de palavras funcionais da L2 é facilitada pela proximidade tipológica.

Em geral, como mencionado, os dados das pesquisas indicam que a transferência lexical e os fenômenos do code-switching e empréstimos lexicais diminuem à medida que a proficiência na L3 aumenta. Do mesmo modo, aparentemente, a influência da L2 diminui duas vezes mais rapidamente do que a influência da L1. (HAMMARBERG, 2001). Esse fato talvez indique que a transferência da L2 seja um processo mais superficial, como Ringbom (2001) sugere na distinção que faz entre transferência de forma e de significado.

O modelo proposto por Grosjean (1982, 2006), “language mode”, também discute as possíveis transferências interlinguísticas. Segundo o autor, a transferência lexical depende diretamente do “modo de língua” do usuário. Quando o sujeito está no “modo monolíngue”, a outra língua (guest language) está em baixa ativação a qual, por sua vez, impede a produção de sentenças misturadas como o

code-switching ou empréstimos lexicais, pelo menos os reduz drasticamente.

Contudo, segundo Grosjean (1982, 2006), interferências podem ocorrer, pois pode haver influência da língua pouco ativada. Por outro lado, quanto ao “modo bilíngue”, a guest language encontra-se quase tão ativa como a língua base, o que pode causar frequentes ocorrências de code-switching e empréstimos lexicais. Esses podem envolver tanto a forma quanto o conteúdo de uma palavra ou apenas o conteúdo. No “modo bilíngue” existe a possibilidade de que o bilíngue alterne completamente para a outra língua. A outra forma, segundo Grosjean, é tomar por

empréstimo (borrowing) uma palavra ou expressão da guest language e adaptá-la morfológica ou fonologicamente, na língua-base. Devido ao alto nível de ativação de ambas as línguas no “modo bilíngue”, não apenas o code-switching e empréstimos lexicais podem ser produzidos, mas inclusive a própria língua-base pode ser alternada, dependendo do interlocutor, tópico, situação, etc, ou seja, a língua levemente menos ativada pode passar a ser a língua-base. Grosjean observa que os bilíngues diferem entre si no que concerne ao movimento no continuum do “language mode”. Alguns bilíngues raramente estão no ponto final desse continuum, como os bilíngues que pouco utilizam o code-switching ou empréstimos. Há outros bilíngues, no entanto, que raramente deixam esse estado final, como os bilíngues que vivem em comunidades onde a mistura de duas línguas é a norma.

Não há dúvida que os estudos dos pesquisadores mencionados acima são fundamentais para a compreensão da transferência na aquisição multilíngue, entretanto, observa-se que algumas pesquisas têm produzido resultados conflitantes. Alguns estudos afirmam que a tipologia das línguas supera o “status de língua estrangeira” (CENOZ, 2001); outros indicam o contrário, que a condição de língua estrangeira da L2 é mais atuante na aprendizagem da L3 do que a semelhança tipológica entre a L1 e a L3 (WILLIAMS; HAMMARBERG, 1998). Segundo Williams e Hammarberg (1998), embora na maior parte das vezes a L1 seja o sistema linguístico mais frequente em um multilíngue, esse sistema é normalmente mais desativado do que o sistema da L2. Entretanto, em geral, os resultados das pesquisas são convergentes no que se refere à transferência lexical. Os pesquisadores que investigam línguas orais parecem concordar que a transferência do léxico ocorre no sentido L2-L3. Existem também outras variáveis a serem consideradas quando se aborda a questão de transferência lexical que não foram contempladas aqui, a saber, o tempo de residência e exposição a um ambiente de língua não nativa, a ordem de aquisição, bem como o contexto de aquisição da língua-alvo. Na próxima seção, será apresentada a questão da transferência lexical nas línguas sinalizadas, utilizando-se os pressupostos teóricos das línguas orais.