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b) Transferência em Lacan

Jacques-Alan-Miller, em Percurso de Lacan, apresenta as várias facetas que o conceito da transferência aparece na obra lacaniana. No início, ela era tomada como um fenômeno imaginário e, no final, ela foi articulada ao registro simbólico e real.

Ele afirma: “Em 54, Lacan dizia que o fenômeno de carga imaginaria cumpre, na transferência, um papel pivô. Dez anos depois atribuirá esse papel de pivô ao sujeito suposto saber, exatamente nos mesmos termos”. (Miller, 1994, Pág. 76)

Ciaccia, no seu texto O início do tratamento em Freud e em Lacan, apontará para a passagem que Lacan faz ao sair do impasse Freudiano sobre a transferência. Para este, Freud conceitualiza a transferência através dos afetos erótico ou hostis e Lacan promove um giro da transferência para a questão do saber.

O autor recorre a “Proposição de 9 de outubro”, a divide em sete partes e foca- se na segunda parte, na qual Lacan afirma: “No início da psicanálise está a transferência”. Ele retoma a metáfora que Freud faz em relação ao jogo de Xadrez para se referir ao começo e o fim da análise. E define, assim como Freud, que a transferência se estabelece devido à presença do analisando. Ele ressalta o quanto a transferência vem apontar para o analista a inexistência da intersubjetividade; ela a refuta.

A inexistência da relação intersubjetiva está colocada o tempo todo no trabalho de discriminação que Lacan fez no decorrer de sua obra, principalmente sobre o conceito de pequeno e grande Outro e dos registros imaginário, simbólico e real.

Ainda Na Proposição de 9 de outubro,Lacan indica “com bastante clareza que nenhum sujeito é suponível por outro sujeito”. Será neste texto que ele irá apresentar a transferência simbólica, através do conceito do Sujeito Suposto Saber. O “sujeito

suposto saber é, para nós, o pivô a partir do qual se articula tudo o que acontece com a transferência”. (Lacan, 1967, Pág. 253)

Assim, Lacan inaugura a entrada da cadeia de significantes nesta “nova” cena, onde há uma suposição de saber, na qual o sujeito não supõe nada, mas é suposto; suposto pelo significante que o representa para outro significante. Aqui será possível lermos a transferência no registro simbólico. Lacan explicita esta engrenagem da transferência através do matema da transferência. Neste está colocado o estabelecimento da transferência significante.

No matema está contido “a articulação do significante da transferência com o significante qualquer do analista ‘escolhido’ pelo analisante e esta articulação tem como efeito a produção do sujeito”. (Lacan, 1967, Pág. 253) Aqui, Lacan ressalta a entrada na engrenagem significante e chama atenção para a ligação analisante/analista através de um significante.

Vemos que, embora a psicanálise consista na manutenção de uma situação combinada entre dois parceiros, que nela se colocam como psicanalisante e o psicanalista, ela só pode desenvolver-se ao preço do constituinte ternário, que é o significante introduzido no discurso que se instaura,aquele que tem nome:o sujeito suposto saber, esta é uma formação de artifício, mas de inspiração, como destacada do psicanalisante. (Lacan, 1969, Pág. 254)

Assim, há um terceiro nesta ligação entre o psicanalisante e o psicanalista, isto é, de forma simples, o inconsciente. E este é demarcado por este significante introduzido no discurso. Lacan afirma que a transferência não é, portanto, uma função do analista, mas do analisante. A função do analista é saber utilizá-la e estar atento ao efeito do estabelecimento desse Sujeito Suposto Saber. Neste momento da obra

lacaniana já é possível estabelecer a transferência a partir dos três registros imaginário, real e o simbólico.

No texto A transferência é amor, Silvestre afirma que “a demanda de análise é a demanda de ajuda, de alivio, mas é sobretudo uma demanda – uma pergunta-dirigida ao analista em função desse saber suposto ao inconsciente”. (1987, Pág. 95). Na cena analítica, o que aparece é a posição constitutiva do sujeito, na qual é o Outro quem sabe. “O que o sujeito não sabe sobre si mesmo – desde que exista tal saber – é preciso deduzir que quem sabe é o Outro. Um Outro que, do lugar do inconsciente, pode responder a quem interroga”. (1987, Pág. 96)

No simbólico, a transferência aparece como o amor que se dirige ao saber. No imaginário, a transferência está colocada como repetição em que os significantes da demanda são endereçados ao outro do amor como resistência. E, por último, ela se apresenta no Real a partir do objeto a, no qual confere a transferência seu aspecto de real do sexo.

É importante afirmar mais uma vez que Lacan irá apontar para um a mais além da transferência freudiana. A transferência aponta diretamente para o funcionamento de um mecanismo inconsciente e o aparecimento deste aponta para a “ativação” dos processos inconscientes. Assim, no decorrer das entrevistas preliminares, o que está presente inicialmente é a transferência imaginaria, esta primeira ligação que se estabelece entre analisante e analista e na qual aponta para a demanda de amor. Aqui, ser curado, ser amado, ter as respostas é o que sustenta estes encontros; para que num segundo momento, através das retificações subjetivas, o analisante possa construir questionamentos sobre sua posição e assim se endereçar ao Outro. É claro que essa divisão que se estabelece é apenas teórica e que, na pratica analítica, esses movimentos irão ocorrendo concomitantemente.

Assim, o analista ao convidar o outro a falar se depara inicialmente com uma demanda, uma demanda intransitiva, demanda de amor, e, a partir dela, iremos nos deparar com os significantes do sujeito, já que a partir da demanda iremos apontar para o desejo.

Por intermédio da demanda, todo o passado se entreabre, até recônditos da primeira infância. Demandar: o sujeito nunca fez outra coisa, só pôde viver por isso, e nós entramos na seqüência. (Lacan, 1958, Pág. 623)

No trabalho junto aos pais, me questiono se podemos tomar a transferência, como a transferência imaginaria e, a partir dela, sustentar e viabilizar o trabalho junto a criança. Assim, a intervenção do analista visaria manter minimamente esta ligação inicial dos pais com o analista e, junto com isto, instaurar um lugar de endereçamento das questões que possam surgir com a análise da criança. Pois sabemos que o movimento da criança produz efeitos nas posições dos pais e será sobre esse eixo que o trabalho do analista deve operar.

É importante lembrar que, neste momento, estamos escutando os pais e seu filho, portanto existe uma demanda dos pais ao analista que diz respeito ao “conserto”, à cura do filho, uma demanda atrelada a um ideal. Há de se definir, neste trabalho inicial, que demanda é essa que os pais fazem ao filho, como ela se apresenta em cada caso e estar avisado de que o que está em jogo é o desejo, pois é sobre este que o trabalho analítico se debruça.

Conclusão:

Agora é possível retornar a cena inicial na qual surgiram as questões deste trabalho, isto é, o encontro do analista com os pais que trazem um pedido de análise, de cura para o filho. Como o analista deve estar orientado neste trabalho com os pais? Para esta resposta, foi necessário percorrer um fio teórico, no qual parti do que há no laço entre pais e filhos até chegar ao manejo do analista nas entrevistas com os pais.

O que fazer com a fala inicial dos pais e como articulá-la ao tratamento desta criança? Essa foi a primeira pergunta. Para responder isso, foi preciso estabelecer o objeto de trabalho do analista, isto é, o Sujeito, e assim diferenciá-lo da criança e do infantil. Ao partir do Sujeito, me deparei com toda a estrutura do inconsciente e seu funcionamento. E, assim foi possível estabelecer o eixo central de toda a engrenagem inconsciente, isto é, a falta; em termos freudianos, a castração. Será a partir da falta que a estrutura do inconsciente irá se estabelecer e se organizar, no caso das neuroses.

Desta forma, o que aparece no laço entre pais e filhos e, principalmente, o que se transmite, no caso de uma neurose é a falta. Assim, o que se revela é como cada um dessa constelação familiar irá lidar ou melhor velar, a falta a seu modo. Portanto, o analista deve estar advertido exatamente para este jogo de velamento e desvelamento. Desta maneira, partimos de uma unidade familiar imaginária para a pergunta sobre cada unidade, sujeito, desta família.

Portanto, o analista, ao promover esta mínima separação, irá começar a estabelecer o campo de uma análise. É interessante notar que, muitas vezes, a partir desta “separação” inicial, encontramos efeitos terapêuticos significativos, pois cada um pode começar a se movimentar de outra forma; há uma distância mínima que se estabelece. A pergunta sobre o que cada um tem a ver com o sofrimento do qual se

queixa norteia este tempo. Aqui, é possível estabelecermos um paralelo entre o trabalho de escuta com os pais de uma criança em análise e o trabalho do analista nas entrevistas preliminares.

As entrevistas preliminares são constituídas através do estabelecimento do laço transferencial, pela fixação de um diagnóstico e pelo trabalho com a queixa inicial. O trabalho com a queixa é efetuado através da intervenção analítica chamada retificação subjetiva. Através da retificação subjetiva, ocorre a transformação de uma queixa em uma pergunta na qual o sujeito possa se incluir e, a partir daí, iniciar um processo analítico propriamente dito.

Penso que o trabalho com os pais também está pautado neste três pontos norteadores. Em relação a transferência, é fundamental que ela se estabeleça, pois só a partir deste laço é possível que os pais possam autorizar o analista a trabalhar com o filho e, muitas vezes, será a partir deste laço que o tratamento poderá ser sustentado.

Junto aos pais, compreendo as intervenções do analista através das Retificações Subjetivas, pois essas apontam para a posição e a implicação de cada um no trabalho junto ao analista. Acho importante ressaltar que estamos no âmbito terapêutico e não analítico, já que não tomamos os pais em análise e sim operamos através de uma escuta analítica. Isto não significa que, diante deste trabalho junto aos pais, não apareçam questões destes. Porém, acho importante que o analista possa estar atento, advertido, para que este trabalho com os pais possa, se for necessário,estar orientado a um espaço individual para cada sujeito

No trabalho com crianças, muitas vezes encontramos no encaminhamento um pedido de um diagnóstico. Acho fundamental que o analista não se prenda a esta demanda e que, ao adiá-la, possa fazer a escuta inicial tanto dos pais como da criança em questão, para, num tempo posterior, poder estabelecer o diagnóstico do paciente.

Portanto, ao circunscrevermos o trabalho com os pais, a partir da retificação subjetiva, é possível promover de mudança de posição dos pais com relação a queixa que trazem do filho. A partir daí, é possível que eles possam se perguntar sobre o que a criança pode estar respondendo em relação a fantasmática familiar. Pois o discurso dos pais produz efeitos sobre a criança e será a partir desse discurso que a criança irá construir sua resposta singular a este lugar que lhe foi atribuído.Assim, ao trabalharmos com essa demanda inicial dos pais em relação a criança, podemos fazer com que a criança possa ocupar para os pais outros lugares além do até então demandado.

A escuta dos pais no tratamento analítico da criança é fundamental, pois será a partir dessa mínima separação que o analista poderá efetuar um melhor trabalho com a criança. Assim, penso que é a partir deste paradoxo, de incluir para separar, que o trabalho com os pais está pautado.

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