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2 O TRANSHUMANISMO & A SUA MORAL TRANSCENDENTE

2.1 Transhumanismo / Pós-Humanismo (Segundo Nick Bostrom)

“Acho que às vezes podemos ficar sagrados demais e, portanto, engaiolados.”

(Charles Bukowski, Escrever Para Não Enlouquecer)

“A vida é um monte de ruínas. Não existe evolução coisa nenhuma.”

(Roberto Piva, Entrevista „O Banquete do Poeta‟, Encontros)

De acordo com o filósofo futurista sueco Nick Bostrom, da universidade de Oxford, o transhumanismo é um movimento sem definição precisa que vem se desenvolvendo ao longo das últimas décadas. Em seu artigo intitulado Valores Transhumanistas o autor afirma que o transhumanismo “promove uma abordagem interdisciplinar para a compreensão e avaliação das oportunidades para a melhoria da condição humana e do organismo humano proporcionadas pelo avanço da tecnologia.” (BOSTROM, 2005b, p. 1). Para tanto, é dada a atenção simultaneamente às tecnologias de ponta já em funcionamento adiantado como a engenharia genética e a tecnologia digital quanto às tecnologias projetadas para o futuro, como a nanotecnologia e a inteligência artificial.

As possibilidades de aprimoramento propostas vão desde o aperfeiçoamento das capacidades físicas, intelectuais e emocionais dos seres humanos até a extensão máxima da saúde humana, a erradicação de doenças, a eliminação do sofrimento. Visando alterar substancialmente a condição humana, o transhumanismo não se limita, no entanto, ao uso de dispositivos tecnológicos e medicamentos, inclui também técnicas econômicas e sociais, talentos, design institucional, desenvolvimento psicológico e cultural. São exemplos disso palestras realizadas pelo próprio Bostrom discorrendo sobre os benefícios da criação de uma superinteligência artificial; mas também o esforço de outros transhumanistas como Kurzweil, que fundou em 2009 a Singularity University, dentro do campus da Nasa, na Califórnia, visando promover cursos e pesquisas com a meta de “ensinar o futuro” e “formar os novos líderes mundiais do pensamento”; ou ainda os investimentos financeiros de Rothblatt, que diz estar disponibilizando parte de sua riqueza em pesquisas e divulgação (produção de filmes), para tornar real a criação de seres digitais inteligentes, ciberconscientes.23

23 Para ver uma das falas realizadas por Bostrom sobre inteligência artificial e seu futuro (superinteligência), cf.

BOSTROM, 2015. Disponível em:

https://www.ted.com/talks/nick_bostrom_what_happens_when_our_computers_get_smarter_than_we_are?langu age=pt-br#t-499235. Sobre a fundação da Singularity University, realizada por Kurzweil em parceria com o

Os transhumanistas – o próprio Bostrom, o qual regula essa seção, e os já aludidos Kurzweil, Grossman, Pearce, Grey, Stelarc, More e Rothblatt – entendem aquilo que denominam “natureza humana” como um trabalho inacabado que é possível remodelar conforme várias maneiras desejáveis. Compreendem que a humanidade não precisa ser o ponto final de uma suposta linha evolucionária. Com isso, esperam que pelo uso responsável da tecnociência e de outras modalidades racionais possamos nos tornar pós-humanos, ou seja, seres humanos com suas capacidades maximizadas, estendidas muito além daquelas que possuem os humanos no presente. Porém, grandes riscos podem advir das diversas formas de busca da extensão e aprimoramento da arquitetura humana: conforme o sociólogo da ciência e tecnologia português Hermínio Martins (2012, p. 366-367), uma perigosa forma de eugenismo pode estar se gestando em certas modalidades de aperfeiçoamento das capacidades humanas via as novas tecnologias genéticas e reprodutivas atuais. Tais alternativas de modificação aprimoradora não seguem programas estatais ou campanhas de persuasão em massa como outrora ocorreu na Alemanha nazista ou até em países democráticos como os Estados Unidos (leis de esterilização de presos e pacientes psiquiátricos, até pelo menos a década de 70), mas funcionam pela persuasão dos pais que passam a escolher seus descendentes tendo em vista a maximização de seu dote ou capital genético.

É pela sedução e até pelo temor de ter um filho não adequável aos desafios competitivos do capitalismo cognitivo (mais preparado intelectualmente, emocionalmente e evitando riscos de doenças e comportamentos indesejados) que a nova eugenia pode se dar como uma genetização do humano cada vez maior24, com a consequente aceleração no ritmo de escalas de evolução, na passagem do biológico para uma seleção científica-tecnológica fundada no economicismo e na modelação aperfeiçoadora do comportamento moral, da estética e da saúde ascética de cada um. Dessa maneira, aqueles embriões que forem tomados como inaptos num prévio diagnóstico genético correm o sério risco de não poderem se desenvolver e nascer, assim entrando numa possível lista de “feticídio seletivo” por seus defeitos ou supostos defeitos e inadequações congênitas, já que é uma vida em condições

também futurista e empreendedor (um dos mecenas da contemporaneidade) Peter Diamandis, cf. KURZWEIL, 2011b. Disponível em: http://experience.hsm.com.br/posts/era-do-crescimento-exponencial. Sobre os

investimentos de Rothblatt, cf. ROTHBLATT, 2014. Disponível em:

http://www.technologyreview.com.br/read_article.aspx?id=46302. E também o prefácio de Kurzweil ao livro da pesquisadora e produtora, cf. ROTHBLATT, 2016.

24 Uma espécie de ontologia centrada no interior da informação genética, algo como se o segredo da vida

estivesse ali escondido e pronto para ser desvendado. Com Deleuze, é possível pensar que tal leitura é de cunho

transcendente, haja vista que o autor pensa o plano de transcendência, entre outras coisas, como uma “evolução nas profundezas supostas da Natureza. [...] Tal plano pode ser estrutural ou genético”. (DELEUZE, 2002, p.

otimizadas (com garantias estendidas) a que passa a importar para a ideologia transhumanista, evitando todo tipo de suposto transtorno, de algo que escape a seu ideário moral de transcendência do humano como forma orgânica limitada.

Evidentemente que os perigos representados pelo transhumanismo não se bastam em sua dimensão geneticista. O próprio Bostrom alerta para os perigos de uma superinteligência artificial caso ela se torne autônoma frente a seus criadores humanos. Uma inteligência superpoderosa pode vir a não mais respeitar os comandos humanos e passar a dominá-los sem via de retorno. O autor sugere então que, como somos adversários inteligentes, podemos antecipar os riscos que representam a superinteligência futura, porém, previne, caso não o façamos com os devidos cuidados ela o fará em relação a nós com recursos muito mais avançados e de modo muito mais preciso.25 Então, o que deve preocupar, sobretudo, em relação à “ideologia” transhumanista é menos esse ou aquele ponto específico de sua atuação, essa ou aquela forma de melhoramento e maximização do humano. O cuidado e a resistência deve se ater mais ao núcleo mesmo de sua doutrina, qual seja: a obsessão pelo tipo de perfeição em adquirir poderes extremos ilimitados, a tara do humano pela colonização de toda a natureza e de sua própria natureza enquanto “espécie”.26

Se tal pretensão não se revela necessariamente como uma novidade, ela apresenta pela primeira vez na história (é o que defendem os transhumanistas) da suposta evolução as condições científicas e tecnológicas necessárias não só à colonização do mundo biológico, mas a sua completa superação e independência, a sua total transcendência por meios inventados pelo próprio humano, uma espécie de metafísica intermediada por instrumentos e saberes físicos. A imortalidade ativada por seres até então considerados mortais, o infinito e ilimitado produzido por entes até aqui considerados históricos e condicionados por limites biológicos, técnicos, cognitivos, etc. Eis aí o grande perigo, conceitual e prático, a atualização de um antigo ideal de transcendência (agora com o garbo científico), de pureza no sentido de escapar ao mundo das composições, das afecções que produzem nossa existência no contato com a multiplicidade das forças da natureza, o que Deleuze e Guattari chamarão de devir, relação entre singularidades constituídas como zonas de vizinhança, em que formas puras, espécies e gêneros não grudam e não se pretendem superiores umas às outras, pois já se

25

Cf. BOSTROM, 2015. Disponível em:

https://www.ted.com/talks/nick_bostrom_what_happens_when_our_computers_get_smarter_than_we_are?langu age=pt-br#t-704218. E também, cf. BOSTROM, 2012.

26 A nanotecnologia, segundo indica Ed Regis, também representa um perigo eminente, especialmente na

produção de armamentos sofisticados, invisíveis, não detectáveis por qualquer radar, do tamanho de bactérias, embora mais mortais. Armas para uso militar de Estados e que podem também ser desenvolvidas por indivíduos privados com capacidade de manipulação de tal tecnologia. Cf. REGIS, 1997.

produzem como um bloco de alianças heterogêneas.27 O limite aqui é a capacidade de afetar e ser afetado, de produzir maior ou menor grau de potência sem garantias, no jogo dos encontros entre as múltiplas forças do mundo, selecionando singularmente o que dá vida intensiva (o que convém e o que não convém numa relação) e não um poder super extensivo de sobrevivência como querem os transhumanistas, eles que parecem estar dispostos a empreendimentos arriscados ainda não perceptíveis em suas possíveis consequências mais danosas.28

Assim, segundo Bostrom, a perspectiva transhumanista contrasta com pontos de vista considerados conservadores frente às novas tecnologias. O transhumanismo segue uma visão delineada por uma constante evolução29 no sentido de acolher e fomentar ativamente as políticas tecnológicas. Ora, o objetivo aqui é:

27 Para acompanhar a ideia de devir e de alianças heterogêneas, cf. DELEUZE; GUATTARI, 1997a.

28Sobre a distinção de critérios de avaliação em relação às espécies e gêneros (abstrações fictícias: “o” homem, “o” animal) e as noções comuns (poder de ser afetado: “um” homem, “um” cão), cf. DELEUZE, 2002.

29 O futurista, inventor e empreendedor Raymond Kurzweil acredita e defende veementemente que a evolução

que o Universo segue desde seu nascimento (Teoria do Big Bang) ocorre num ritmo exponencial, com os primeiros eventos desde a grande explosão se dando cada vez mais lentamente. O desenvolvimento dos organismos também segue tal padrão: primeiramente num ritmo mais rápido e posteriormente os eventos-chave vão ocorrendo tanto mais lentamente. Num terceiro momento o ritmo exponencial começa a acelerar, com a evolução cada vez mais rápida das formas de vida na Terra. A seguir, a evolução tanto mais rápida do homem e a evolução cada vez mais veloz das tecnologias criadas pelo homem. Enfim, o crescimento exponencial da computação e das novas tecnologias de ponta. Cf. KURZWEIL, 2007. Kurzweil defende que a evolução na Terra funciona como uma espécie de programador master, com a projeção de milhões de espécies, e diz que cada uma delas foi programada como um software, escrito e registrado como dados digitais na estrutura química da molécula de ácido desoxirribonecléico ou DNA. Para o futurista (devido a seu ideário de perfeição) a tal programação – mesmo sendo rica e tendo evoluído até o homem e sua capacidade intelectiva superior – ainda é falha e deve ser corrigida pelo avanço tanto mais rápido das tecnologias, em que as máquinas alcançarão num futuro próximo um nível de inteligência superior ao de seus criadores humanos, o que proporcionará uma ilimitada e infinita evolução aperfeiçoadora do humano e das máquinas espirituais, a era pós-humana ou como ele nomeia: a era da Singularidade, rumo à imortalidade via tecnociência. Cf. KURZWEIL, 2007. O biólogo e paleontólogo norte-americano Stephen Jay Gould já questionara, em seu artigo A Evolução da Vida , a noção de uma teoria geral de evolução da vida, pelo menos dizia que era necessário ir além dos princípios da teoria evolutiva, e fazer um exame paleontológico dos padrões contingentes da história, com uma visada completamente distinta dos modelos convencionais deterministas da ciência ocidental. Tal visão se diferencia especialmente ao minar as tradições sociais e expectativas psicológicas da cultura do ocidente com sua ilusão de

uma história que culminaria com os “humanos como a expressão mais elevada da vida e os supostos guardiões da Terra.” Gould enfatiza que as ciências podem até compreender certos fenômenos da Natureza, mas alerta que toda ciência tem um embasamento social e que os cientistas em geral acabam por registrar “certezas”

dominantes, mesmo quando dizem se valer da máxima objetividade (talvez essa seja uma maneira equivocada de fazer ciência, ou de produzir qualquer forma de pensamento: objetividade, ou mesmo subjetividade). Ele cita o exemplo do próprio Charles Darwin, que teria expressado mais uma preferência social vitoriana do que um registro da Natureza, ao escrever no final do penúltimo parágrafo da Origem das Espécies sobre a perfeição

como finalidade natural: “Portanto, podemos olhar com confiança para um futuro seguro de longa duração. E

como a seleção natural trabalha apenas pelo e para o bem de cada ser, todas as características corpóreas e

mentais progredirão em direção à perfeição.” (DARWIN, 2014, p. 444). Para a leitura do texto de Stephen Jay

Gould, Cf. GOULD, Disponível em:

http://www.uel.br/pessoal/rogerio/evolucao/textos/sciam_evolucao_vida.pdf. Como sugestão de leitura sobre a crítica do progresso, cf. DUPAS, 2007. Já Deleuze e Guattari enfrentaram de maneira bem singular o problema do humanismo (antropocentrismo), e aqui proponho também do trans/pós-humanismo (estes como atualização do humanismo e sua arrogância de ser supremo da Natureza). Pensam eles as relações a partir do conceito de

[...] criar a oportunidade de viver uma vida muito mais longa e saudável, para melhorar a nossa memória e outras faculdades intelectuais, para refinar as nossas experiências emocionais e aumentar a nossa sensação subjetiva de bem-estar, e para alcançar um grau maior de controle sobre nossas próprias vidas de uma maneira geral. Essa afirmação do potencial humano é oferecida como uma alternativa às

costumeiras injunções contra o “brincar de Deus”, mexer com a natureza, alterar

nossa essência humana, ou exibir uma húbris digna de punição. (BOSTROM, 2005b, p. 2).

Bostrom anota (2005b, p. 2) que o transhumanismo é um humanismo radicalizado, isto é, possui raízes no pensamento humanista secular, porém o aprofunda ao ir além de seus métodos de melhoria da “natureza humana” (educação e refinamento cultural), com a utilização da medicina e tecnologia de ponta com vistas à superação dos limites biológicos do humano. Tais limites são percebidos como o correlato da pequena parte do que é possível aos organismos humanos, sendo nossa natureza biológica tão restritiva quanto o modo de ser de outros animais. Assim, da mesma maneira que faltaria a um chimpanzé os recursos cognitivos para entender o que é um ser humano, a nós humanos pode faltar a capacidade de compreender como seria um humano melhorado de modo extremo (um pós-humano).30

Ora, para os pensadores franceses Deleuze e Guattari a própria concepção do humano como meta ou topo da evolução natural de espécies biológicas já se mostra problemática, já que para os autores tal imagem progressiva em direção antropocêntrica – em que o “eu”, a consciência, o sujeito moderno se coloca como unidade decisiva – nada mais é do que a realocação do juízo de Deus, a redução da multiplicidade concernente ao plano de imanência à imagem do Uno transcendente configurado na figura do humano e de seus valores de pretensão de superioridade em relação às outras forças da natureza, de seu temor em relação à vida intensiva e seus limites inerentes (certo grau de potência, doenças, velhice, morte). O

devir, que nada tem a ver com evolução de um ente menos perfeito a um mais perfeito até um topo infinito de aperfeiçoamento na hierarquia biotecnológica. Para os autores não há nenhuma evolução por dependência e filiação, o que existe são relações de aliança, simbioses que põem em jogo entes de escalas e reinos completamente diferentes. São blocos de devir que tomam seres distintos, mas que não reproduzem daí uma descendência, não se vai de um ser menos diferenciado a um mais diferenciado, em que deixa de haver uma evolução filiativa hereditária para se processar uma relação de contágio entre heterogêneos, sempre contemporânea, uma espécie de involução não regressiva. O devir como involução, involução criadora dirão Deleuze e Guattari. Involuir então será formar um bloco que percorrerá sua própria linha “entre” determinados termos postos em jogo. Portanto, involuir não será nem caracterizar (espécies, gêneros...), mas proliferação, variação; nem filiação, mas transversalidade entre heterogêneos; nem árvore classificatória, genealógica, mas rizoma, multiplicidade sem começo ou fim. Involução como devir, não imitação ou identificação, nem

reprodução, nem progressão ou regressão, nem correspondência, mas associação “entre” forças, povoamento,

matilha. Cf. DELEUZE; GUATTARI, 1997a. Sobre evolução a-paralela, cf. também DELEUZE; GUATTARI,

1995b. Mais sobre tal problema no capítulo desde trabalho, intitulado “A Máquina-de-Guerra Conceitual de

Deleuze e Guattari Como Experimento de Resistência ao Ideário Transhumanista”.

30

O termo transhumano, conforme assinala Bostrom designa os seres em transição, aqueles que são moderadamente aprimorados, cujas possibilidades estariam entre os humanos não aperfeiçoados e o desenvolvido radical pós-humano. Cf. BOSTROM, 2005b.

ideal trans-pós-humano aparece aqui tão somente como ampliação dessa formação pretensamente unitária e ajuizadora da vida com sua concepção de imperfeição da natureza em sua evolução “linear” num caminho sucessivo de melhoramentos hierárquicos.

Eis aí uma noção que tem seu começo na ideia do mais simples, da unidade mínima contraída que se fragmenta após a grande explosão do Big Bang, passando por uma série de eventos até o nascimento da Terra, com a origem das “formas” de vida tidas como as mais simples até a culminância da vida humana consciente, e agora super inteligente em transição ao pós-humano, toda uma trajetória de origem e finalidade, do direcionamento de uma unidade fundamental a uma unidade superior sem fim ou limite, mas que se constitui como horizonte-cume, das raízes ao topo da árvore genealógica, sendo que os galhos mais altos e robustos são representados contemporaneamente e para o futuro com uma imagem tecnológica de superação dos traços da natureza, do humano para uma arquitetura expandida por uma tecnociência com ares divinos de aperfeiçoamento ilimitado.

Essa postura de redução ao Uno que segue uma suposta progressão que tem certo início e desfecho tranquilizador – configurando uma imagem de árvore-raiz ao mundo, com a ideia de filiação e evolução de formas específicas, genéricas – é rejeitada por Deleuze e Guattari, visto que representa um modelo estatal de pensamento e de vida, modelo de poder centralizador e sedentário, com ênfase numa memória carregada e na divisão sujeito e objeto. Os autores franceses opõem a essa imagem arbórea a concepção de rizoma, que não toma a forma do múltiplo como derivado do Uno ou que a este se acresceria, mas se faz por conexão de um ponto a outro qualquer, sem remeter seus traços necessariamente a outros traços de mesma natureza. São regimes muito distintos os que se compõem no rizoma, já que não seguem uma evolução do tipo filiativa, mas se ligam tão somente por alianças que se dão sempre pelo meio, sem começo nem fim, entre as coisas, no plano de imanência das multiplicidades nômades, dirão os filósofos:

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente

aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como tecido a conjunção “e... e... e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo

ser. Para onde você vai? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir de zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metódico, pedagógico, iniciático, simbólico...). (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 37).31

31 A um suposto dualismo criado entre as imagens da árvore e do rizoma, Deleuze e Guattari respondem: “Servimo-nos de um dualismo de modelos para atingir um processo que se recusa todo modelo”. (DELEUZE;

GUATTARI, 1995a, p. 32). Mesmo num modelo tipicamente arbóreo o rizoma transborda, enquanto que no rizoma encontram-se nós de arborescência. Cf. DELEUZE; GUATTARI, 1995a.

Dessa maneira, a questão suscitada por Bostrom de uma limitação do humano (falta de alcance) em entender o que será o pós-humano como superação e melhoramento extremo antropológico é tomada, segundo a leitura aqui defendida, com Deleuze e Guattari, como problema a ser desembaraçado. Não se trata de chegar ao pós-humano como transição através do humano, assim como não é interessante pensar o humano como ponto culminante em relação às outras “espécies”, e ainda, estas como tendo traçado um longo caminho que retroativamente nos levaria a alguma origem fundadora. Trata-se, seguindo a linha de pensamento dos autores franceses de quebrar tal ontologia, de se livrar do fundamento, de “anular fim e começo”. Ir pelo meio, não como média, mas como aquisição de velocidade, de trocas simultâneas (homem-bicho, homem-máquina, orgânico-inorgânico, animal-técnica, vegetal-animal, mineral-homem) entre-dois, entre as coisas, zona de adjacência, atravessamentos:

Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para a outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 37).

Mas a ideia de falta e de limite é cara aos transhumanistas em geral. Com Bostrom