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4 Transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental: influências múltiplas para o desenvolvimento humano

“Como eu vou saber da terra, se eu nunca me sujar? Como eu vou saber das gentes, sem aprender a gostar? Quero ver com os meus olhos, quero a vida até o fundo, Quero ter barro nos pés, eu quero aprender o mundo!”

(PEDRO BANDEIRA)

A transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental não se mostra uma novidade, uma vez que ela já ocorre há algum tempo, contudo, analisar esse momento tão singular na vida escolar das crianças, influenciado por uma alteração na política educacional que acarreta a ampliação do Ensino Fundamental para nove anos, obrigando a entrada das crianças de 06 anos nesse nível de ensino, pode ser considerado um novo momento de estudo para tal transição.

Neves, Gouveia e Castanheira (2011) destacaram que tal transição mostra-se um momento crítico, uma vez que diversas mudanças em termos de concepções de infância e das funções escolares ocorrem. Salientam que no Ensino Fundamental há um maior controle corporal e a permanência por muitas horas na realização de atividades de letramento e alfabetização, diferenciando- se da Educação Infantil, e que tais mudanças podem afetar o desenvolvimento infantil.

As situações de transição são foco de interesse dos estudos desenvolvidos por Bronfenbrenner (1996, p. 22) que define que a transição ecológica ocorre “sempre que a posição da pessoa no meio ecológico é alterada em resultado de uma mudança de papel, ambiente ou ambos”, assim, toda transição ecológica “constitui, com efeito, um experimento natural conveniente, com um planejamento integrante antes-depois, em que cada sujeito pode servir como seu próprio controle”.

As transições ecológicas, segundo Bronfenbrenner (2011, p. 89), são importantes fatores que afetam o desenvolvimento humano, uma vez que quase sempre envolvem mudanças de papeis, alterando também as “expectativas por condutas associadas a determinadas posições na sociedade.

Os papeis têm uma força mágica de alterar a maneira pela qual as pessoas são tratadas, como agem, o que fazem e inclusive o que pensam e sentem”

No presente estudo, tanto os ambientes (instituições de Educação Infantil e Ensino Fundamental) como os papeis (uma concepção de criança para uma de aluno), são alterados e, conjuntamente, as expectativas e ações que são direcionadas às crianças.

Na sociedade contemporânea é “natural” associar a imagem de criança com a de aluno, considerando que ”ser aluno” se constitui no ofício infantil, contudo, essa categoria é uma construção social. De acordo com Gimeno- Sácristan (2005), é comum os seres humanos naturalizarem e considerarem como correto alguns papeis, comportamentos, situações e ações que acontecem rotineiramente, esquecendo-se de que estes são produtos sociais. Assim, é “tão natural ser aluno e vê-lo em nossa experiência cotidiana, que não questionamos o que significa ter essa condição social que é contingente e transitória” (GIMENO-SACRISTÁN, 2005, p. 13). Torna-se “normal” as crianças de determinadas idades frequentarem instituições escolares. Como afirma o autor, a escolaridade em nossa sociedade transformou-se em um fato tão natural que seria estranho imaginar o mundo de outra forma.

A institucionalização das relações pedagógicas advém do processo sócio-histórico da “construção do sentimento de infância” (ARIÈS, 1978), a qual remonta do século XVI às classes mais abastadas da sociedade europeia. A concepção da criança pura e inocente cria a necessidade de segregá-la do mundo adulto contaminado pelas “maldades e vícios”, assim, a família primeiramente e, mais tarde, as instituições escolares passam a se caracterizar como os dispositivos destinados a socializarem as crianças e salvaguardá-las das mazelas.

De acordo com Sarmento (2011, p. 588), a escola obriga as crianças a assumirem “o estatuto de ser social, objecto de um processo intencional de transmissão de valores e saberes comuns, politicamente definidos, e destinatário objectivo de políticas públicas”. É a escola, segundo o autor, a responsável pela “desprivatização” das crianças, desvinculando-as do espaço doméstico, no qual recebiam cuidados exclusivamente de seus responsáveis. Conjuntamente com a instituição da escola, a infância passa a ser considerada uma categoria social composta pelos cidadãos futuros, os quais estão em

preparo ainda. Pode-se afirmar que, junto com a escola, há a “invenção do aluno” (GIMENO-SÁCRISTAN, 2005).

Portanto, ser aluno é uma das várias formas possíveis de se viver a infância, sendo mais ou menos comum dependendo da sociedade que se está analisando. Como afirma Gimeno-Sácristan (2005, p. 105), não se pode considerar a escolarização como uma condição universal, “posto que todas as crianças não estão escolarizadas, nem têm uma escolaridade semelhante do ponto de vista qualitativo. Todos os alunos pequenos são crianças, mas nem todas as crianças são alunos”. Apesar de não ser natural, há que se destacar que o processo de universalização do ensino e da escolarização massiva ocorrido nas sociedades ocidentais nos últimos séculos influenciou as práticas pedagógicas e as tradições que envolvem as instituições escolares, afetando, assim, as expectativas relacionadas ao papel de aluno, tornando a infância uma etapa da vida fundamentalmente destinada ao “preparo” para o futuro, o que deve ocorrer por meio da educação em instituições especializadas, sendo esta função dos adultos.

Gimeno-Sácristán (2005) vai destacar que as categorias infância, alunos e crianças são criações dos adultos, os quais vão direcionar, em certa parte, as práticas de estar e trabalhar com elas. Por meio dessas concepções atribuídas pelos adultos, criam-se atribuições e características que se considera que sejam normais de todos os alunos possuírem. Não há um questionamento se são características realmente universais, se sempre foram dessa forma e quais as reais consequências para o desenvolvimento infantil.

Essa concepção cristalizada faz com que se compreenda que “o modo de ser aluno é a maneira natural de ser criança; representamos os dois conceitos como se os dois conceitos fossem equivalentes”. (GIMENO- SÁCRISTAN, 2005, p. 15)

O significado que o termo aluno tem em nossa sociedade advém do conhecimento acumulado ao longo dos tempos, referente à forma de compreender as crianças que estão sendo escolarizadas. Destaca-se que em nossa sociedade é provável que a grande maioria das pessoas tenha experienciado o papel de aluno, mesmo que por pouco tempo, o que possibilita que se criem generalizações sobre o que é “ser aluno”. Como afirma Gimeno- Sácristán (2005, p. 20), “ninguém nos ensina a ser aluno ou nos teoriza o que é

ser aluno. Não é preciso. Sabemos de antemão graças às vivências que tivemos como tal”

É importante, contudo, compreender que o conceito aluno é uma categoria construída socialmente, “radicada em realidades culturais discursivo- práticas a partir das quais dotamos de significado essas categorias” (GIMENO- SÁCRISTAN, 2005, p. 104). A escola, as crianças e os alunos são frutos da acumulação de ideias, expectativas e valores que vão se desenvolvendo e criando um padrão, uma característica persistente que se deve apresentar quando se assume este papel. Os modelos educacionais propostos e desenvolvidos nas escolas são, portanto, um resultado final de como se concebe a infância e as formas de educá-las.

Compreende-se assim que os conceitos de aluno, criança e infância são desenvolvidos por pessoas, num dado tempo histórico, numa cultural e sociedade específica, portanto, mutáveis. É importante se destacar que as crianças e jovens não são os mesmos do passado, pois vivem em sociedades diferentes, questões essas que devem ser enfatizadas quando se pensa num momento tão crítico como a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental.

Apesar de se compreender que tais categorias são mutáveis, há que se destacar a força que as expectativas, valores e regras que foram fixadas pelos adultos exercem ao que se deve esperar do aluno, da criança e das ações que se desenvolvem para a sua educação e cuidado. Segundo Gimeno-Sácristan (2005), as instituições escolares vão adotar formas de organizar suas práticas, seus tempos e espaço com o objetivo de proteger as crianças, segundo as concepções dos adultos.

A escola tradicional adoptou um modelo formal envolvido numa concepção academiscista e disciplinadora e assumiu por pressuposto uma representação da infância como categoria geracional caracterizada por um estatuto pré-social, uma forma de pensamento “moldável” e uma presumida heteronomia, inibidora do exercício de direitos participativos próprios. A representação da infância que aqui se contém supõe o exercício legítimo do poder disciplinar pelo adulto que a “educa”. O saber é inerentemente um poder disciplinar inquestionado. (GIMENO-SÁCRISTAN, 2005, p. 29)

Contudo, a Sociologia da Infância nas últimas duas décadas tem apontado para a necessidade de se repensar as infâncias, as crianças e escolas, adotando um olhar que compreende a criança como um ser ativo, situado no tempo e no espaço, ator, autor, produto e produtor da cultura. Portanto, como afirma Borba (2006), é imprescindível que ao estudar as instituições escolares deva se atentar para todos os sujeitos que compõem esse ambiente, focando também as crianças em sua alteridade, de forma direta e participativa, ouvindo suas concepções e vivências, ou seja, compreendendo sua subjetividade.

Compreender essa transição de ambientes e de papeis, adotando a perspectiva Bioecológica, possibilita uma investigação que não se centra somente nas questões objetivas, portanto, observáveis, mas também nas expectativas, vivências e experiências de todos os sujeitos que participam desse processo. Como afirma Bronfenbrenner (2011, p. 44),

as características cientificamente relevantes de qualquer contexto para o desenvolvimento humano incluem não apenas suas condições objetivas, mas também a maneira pela quais essas são experienciadas subjetivamente pelas pessoas que vivem nesse ambiente.

É importante salientar que, para a perspectiva Bioecológica, não se considera as questões objetivas ou subjetivas mais ou menos influentes no desenvolvimento humano, mas sim, que essas forças são interdependentes e influenciam-se mutuamente. (BRONFENBRENNER, 2011)

Funde-se a isso a preocupação em buscar compreender as questões subjetivas advindas das crianças, as quais são consideradas pela perspectiva Bioecológica e pela Sociologia da Infância como produtos e produtoras de culturas. Como afirma Borba (2006), as crianças são sujeitos que sentem, pensam, refletem, criam e recriam, portanto, é necessário pesquisar junto a elas para se compreender um pouco de suas concepções, vivências, expectativas e culturas.

Sendo assim, compreender as transições, acompanhando as continuidades e descontinuidades advindas da passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, focando as concepções, vivências e expectativas (subjetivas) dos sujeitos participantes aliadas às questões objetivas, mostra-se

relevante, pois possibilita o conhecimento das questões que podem afetar a trajetória de desenvolvimento infantil.

Cabe destacar que as instituições de Educação Infantil e Ensino Fundamental apresentam, segundo Rocha (1999), funções e formas de se organizar culturalmente diferentes. Enquanto a brincadeira, o lúdico, a utilização dos espaços externos são priorizados nas instituições de Educação Infantil, o domínio da leitura e da escrita, em ambientes de maior controle do tempo, espaço e dos corpos infantis, mostram-se função primordial das escolas de Ensino Fundamental.

As funções e expectativas destinadas a cada um dos níveis de ensino podem ser alteradas, uma vez que são construídas cultural e historicamente, contudo, como afirma Gimeno-Sácristan (2005, p. 143), a forma que as instituições são organizadas, as sequências de tarefas, a regulação do tempo, o papel dos professores e as tarefas que cabem a cada um dos sujeitos desses ambientes adquirem tal autonomia “que chegamos a perder a consciência do poder que têm de nos dirigir. Mais do que governá-los, eles é que nos governam”.

Ao se pensar em continuidades entre os ambientes, está se propondo que haja uma reflexão sobre as práticas, organizações, tempos-espaços e concepções sobre infâncias, crianças e alunos, com o intuito de diminuir possíveis rupturas, as quais, segundo Bronfenbrenner (1996), não são positivas ao desenvolvimento humano. Ressalta-se que as atividades molares que, segundo o autor, representam a manifestação mais imediata do desenvolvimento da pessoa e do ambiente, devem ser comportamentos continuados e persistentes ao longo do tempo, sendo necessário que o individuo se envolva em atividades cada vez mais complexas para que se desenvolva. Sendo assim, quando se defende a continuidade, está se afirmando que alterações bruscas devem ser evitadas, e que seja garantindo, no entanto, que haja aumento na complexidade das atividades as quais o indivíduo em desenvolvimento participa.

Acompanhar a transição, observando continuidades e descontinuidades desse processo, mostra sua relevância também quando discutimos o desenvolvimento ao longo do tempo. Segundo Bronfenbrenner (2011, p. 117), o modelo de cronossistema “permite identificar o impacto dos eventos e

experiências anteriores, isolada ou sequencialmente, no desenvolvimento subsequente”. A forma mais simples que se pode destacar são as transições normativas (como no caso a passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental) e não-normativas (doença ou mortes, por exemplo). O autor vai salientar que uma das estratégias para se compreender tais transições seriam as pesquisas longitudinais em curto prazo, em que os dados são obtidos em um mesmo grupo de indivíduos, antes e depois de uma situação de transição, normalmente de caráter normativo, exatamente a proposta do presente estudo.

A entrada das crianças no Ensino Fundamental por si só já se configura em um importante momento de mudanças. Entretanto, quando essa transição acontece em um momento de implementação de uma nova política educacional como a ampliação para nove anos desse nível de ensino, torna-se mais relevante e urgente o conhecimento desse processo. De acordo com Bronfenbrenner (2011, p. 91),

O conhecimento e a análise das políticas públicas são essenciais para o progresso da ciência desenvolvimental porque chamam a atenção do investigador para aspectos do ambiente imediatos e remotos, que são críticos para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social da pessoa. Este conhecimento e análise também podem revelar suposições ideológicas subjacentes, e às vezes profundamente limitantes, na formulação de problemas e delineamentos de pesquisa, portanto, no alcance dos possíveis achados. Uma integração funcional entre a ciência e as políticas públicas naturalmente não significa que as duas devam ser confundidas. Ao examinar o impacto das questões de políticas públicas na pesquisa básica sobre o desenvolvimento humano, é essencial distinguir as interpretações fundamentadas na evidência empírica daquelas enraizadas em uma preferência ideológica. (BRONFENBRENNER, 2011, p. 91)

Desta forma, compreende-se que as políticas públicas compõem o macrossistema e que, portanto, determinam as propriedades que compõem o micro, meso e exossistema, influenciando a vida cotidiana das pessoas, pois de certa forma governam o curso e o desenvolvimento dos indivíduos. Compreender essas influências de um ambiente não imediato permite analisar como elas afetam os processos e resultados desenvolvimentais desencadeados nos contextos mais próximos.