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O contato com o campo teve início no segundo semestre de 2016, quando fui ao município conversar com a coordenadora de saúde mental sobre a pesquisa. Não havia um projeto elaborado, apenas propostas, inquietações e o desejo de desenvolver uma pesquisa que produzisse contribuições para a rede. Também não era o primeiro contato com a RAPS de São Lourenço do Sul, pois eu já havia participado de pesquisas anteriores naquele local, porém com o foco na saúde mental da criança e adolescente.

De acordo com a coordenadora, apesar de o município ter tradição de participação em pesquisas científicas na área da saúde mental, por suas especificidades de cuidado em liberdade, esta seria a primeira pesquisa voltada para a rede na atenção ao público usuário de drogas. Naquela ocasião, a coordenadora também ressaltou a importância de pesquisas científicas para o município para ajudar os profissionais da área de saúde a refletir sobre suas práticas e melhorá-las.

Após aquele encontro com a referida coordenadora muitas ideias fluíram e amadureceram mediante leituras sobre o tema e a tomada de conhecimento de outras pesquisas realizadas na RAPS, o que auxiliou a construir o projeto. Nas pesquisas anteriores das quais participei, nesse município, chamava-me a atenção a articulação intersetorial da RAPS de São Lourenço do Sul, no que diz respeito ao cuidado em saúde mental, a partir do espaço do fórum intersetorial, do qual participavam diversos setores para discussão das políticas públicas de saúde mental e o planejamento de ações intersetoriais. Assim, a visão dos diferentes setores sobre a RAPS também se mostrava relevante para compreender e qualificar as ações, pois são setores intimamente articulados com esse cuidado. A ideia inicial era me inserir nesse fórum e desenvolver a avaliação de empoderamento com esse grupo de interesse.

Construído o projeto, um segundo contato foi realizado com o município, visando apresentar a proposta à atual coordenação de saúde mental, que recentemente havia assumido a gestão. Vale ressaltar, que o ano de 2017, no qual a pesquisa foi realizada, era o primeiro ano da atual gestão municipal e, consequentemente, um ano de mudança de gestores, profissionais e prioridades, ou seja, mudanças que movimentaram a rede. Essa questão foi ressaltada pelos coordenadores da RAPS:

[...] Em reunião com os gestores, foi levantada uma preocupação importante do grupo: apesar de ser de quatro em quatro anos, esse é um ano atípico, a cada quatro

anos quando muda a gestão, infelizmente a gente só tem impacto depois, por que que a gente não trabalha com orçamento nosso, a gente trabalha com o orçamento que foi planejado previamente e com dividas que também vem acumuladas [...]. Então o que que esse ano atípico apesar de ser a cada quatro anos se trocasse aqui agora foi 12 anos depois (DC).

Essa peculiaridade, certamente influencia a percepção e a dinâmica do trabalho em rede, as quais foram consideradas elemento para análise nesta avaliação. Entretanto, na abordagem avaliativa que se pretende com a avaliação de empoderamento, a missão da avaliação, a situação atual e o planejamento das ações são projetados para o futuro, ou seja, “que patamar os profissionais desejam alcançar a partir da situação em que se encontram?”, sendo, portanto, um momento oportuno e profícuo para delinear propostas futuras no início de um processo de gestão.

Construir um processo avaliativo com essas características é um desafio, pois, conforme afirma um dos trabalhadores da RAPS de São Lourenço,“a pesquisa avaliativa ainda soa muito como supervisão” (DC). Diante dessa afirmação, aproveito para falar um pouco sobre a minha pesquisa, mediante excertos do Diário de Campo:

[...] a pesquisa avaliativa, ao longo do tempo ela mudou muito, mas ela tinha essa característica de julgamento, de apontar. Ao longo do tempo ela foi mudando, mas ainda carrega essa ideia. Hoje ela vem com uma proposta diferente que é a de pensar junto essas questões, apresentar e ver o que que pode ser pensado, ser feito, ou ser melhorado, ou repensado e o quanto é difícil mudar essa característica da pesquisa, eu tô aprendendo ainda a fazer dessa forma [...] (DC).

A intenção era demonstrar a proposta da pesquisa avaliativa atrelando-a à qualificação do cuidado na atenção aos usuários de drogas e não somente ao julgamento de valor do objeto avaliado, ou a um processo descritivo dos serviços, dos programas e das práticas. O desafio da pesquisa era se constituir enquanto um dispositivo para reflexão, crítica e tomada de decisão, impulsionando transformações nos processos de trabalho para a qualificação das práticas de cuidado em rede ao usuário de drogas.

Apesar de existirem consensos de que o julgamento é um importante e inevitável vetor do processo avaliativo (FURTADO, 2001), cabe problematizar e incorporar à avaliação outras contribuições, considerando dois aspectos identificados como centrais: o primeiro é a superação de uma visão positivista da avaliação, que parte do princípio da neutralidade do pesquisador em campo, para uma prática avaliativa na qual se acredita que não é possível avaliar algo de forma neutra e objetiva sem afetar os fenômenos de estudo e o contexto avaliado. Conforme afirma Passos (2008, p.216),

é o caso de um processo avaliativo no qual quem avalia e aquele/aquilo que é avaliado se distinguem, mas não se separam. [...] assim sendo, a avaliação não se faz por aplicação de valores sobre uma determinada realidade, mas por construção coletiva de valores comuns, com os quais a realidade, ela própria se modifica (PASSOS, 2008, p.216).

O segundo aspecto é o empoderamento dos grupos de interesse pelo qual a pesquisa avaliativa deve garantir maior apropriação do processo, incluindo os participantes nas decisões que os afetam, identificando e expressando as questões de interesse, as necessidades, os recursos e os meios necessários para a modificação e qualificação das práticas (FETERMAN, 2015).

Com base nesses elementos da pesquisa avaliativa, faço um esforço para apresentar este estudo, entendendo que o ato de fazer pesquisa avaliativa não é linear, exige adaptações à realidade, uso de estratégias específicas, de modo que seus contornos e singularidades também sejam fundamentais no processo de construção do conhecimento.

Assim, no segundo encontro com os gestores estavam presentes o coordenador da saúde mental, a coordenadora do CAPS AD, e o coordenador de ensino, pesquisa e extensão do município de São Lourenço do Sul, que acolheram a proposta e colocaram as “portas da RAPS abertas para a pesquisa”. No encontro com os atuais gestores foram pactuados os fluxos a serem percorridos durante a pesquisa, as técnicas a serem utilizadas — observação participante, análise documental, entrevistas semiestruturadas e fórum aberto. Considerando-se que o processo seria dinâmico, havia a preocupação pela utilização de técnicas que levassem em consideração o caminho percorrido, a compreensão do contexto a partir das implicações com o processo, e a possibilidade de usar o processo avaliativo para gerar reflexões e propostas de mudanças nas práticas.

Propus-me a fazer um contato inicial com o campo para me aproximar dos profissionais da rede, conhecer a dinâmica do trabalho e organizar o processo avaliativo, considerando as possibilidades locais naquele momento e as mudanças que haviam ocorrido na RAPS com a troca de gestores. Esse contato foi importante para adequar alguns aspectos da pesquisa ao contexto e às necessidades locais. Um deles foi o objeto da pesquisa, que se voltou para a RAPS, e não para a rede intersetorial, devido ao protagonismo da RAPS no cuidado ao usuário de drogas no município e a necessidade de fortalecer a compreensão dessas articulações e qualificar o cuidado nesse âmbito.

Outra mudança no projeto foi em relação à utilização de espaços da gestão para a produção de dados da pesquisa. Inicialmente, a proposta era utilizar o espaço do fórum

intersetorial. Entretanto, as reuniões do fórum aberto não estavam acontecendo. O espaço utilizado pelos gestores para planejar as ações era o colegiado gestor que contava com a participação dos profissionais da saúde mental e com encontro a cada 15 dias. Tive a possibilidade para participar desse espaço em dois momentos: um deles foi para falar sobre a presente pesquisa, e o outro foi para a realização do fórum aberto junto aos gestores.

Portanto, as tratativas com a gestão foram fundamentais para organizar o processo avaliativo, articulado às possibilidades e necessidades locais, além disso, apropriar os participantes sobre a pesquisa e sensibilizá-los para o envolvimento com a proposta da avaliação. Após pactuado o processo da pesquisa, dei início à observação de campo, indo ao encontro dos serviços e atores que costuram, no dia a dia, a rede de São Lourenço do Sul.