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CAPÍTULO 4 – JURISDIÇÃO NA GARANTIA DA LIBERDADE FISCAL

4.3 Tributação, liberdade e igualdade

A atuação do fisco, para ser moral, deve respeitar direitos fundamentais como o direito à liberdade fiscal dos contribuintes e à igualdade na tributação desses contribuintes.

Quanto à igualdade, em sua acepção material, aristotélica, deve o fisco observar essencialmente o princípio da capacidade contributiva dos contribuintes, ao deles exigir o recolhimento de impostos. Com tal observância, distribui os ônus da tributação na proporção da manifestação de riqueza dos contribuintes, realizando com isso justiça fiscal.

A respeito da relação entre a tributação e o direito à liberdade, observa Ricardo Lobo Torres que “O poder de tributar nasce no espaço aberto pelos direitos humanos e por eles é totalmente limitado. O Estado exerce o seu poder tributário

sob a permanente limitação dos direitos fundamentais e de suas garantias constitucionais” 142.

Tratando dos direitos, das garantias e do poder de tributar, esse mesmo autor143 evidencia que a positivação dessa relação entre tributação e liberdade

ocorreu durante o Estado fiscal. Nesse período surgiram as declarações liberais de direitos como, na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e, na Inglaterra, a Bill of Rights. No Brasil, a Constituição imperial de 1824 estabeleceu direitos e garantias contra a tributação, extinguindo muitas imunidades e privilégios descabidos à nobreza. Em época mais próxima, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948), a Carta da Organização dos Estados Americanos (1948), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (PSJCR, 1969), trataram dessa relação, embora seja “nos Tratados de Dupla Tributação assinados pelo Brasil que se encontram as normas básicas sobre a não discriminação e outros direitos humanos” 144.

A relação entre tributação e o direito de liberdade, portanto, é direta e bivalente. Efetivamente a tributação reduz o âmbito da liberdade do contribuinte, por meio da imposição de obrigações compulsórias. Ao mesmo tempo, todavia, ela também garante a esse contribuinte o exercício da plena liberdade, na medida em que ela, a tributação, é o principal instrumento de financiamento para que o Estado viabilize e garanta o exercício de direitos.

Assim envolvida nessa relação bivalente e de mão dupla, é importante que a tributação não sirva desproporcionalmente à limitação da liberdade de ação do contribuinte.

A atividade empresarial, sobretudo, não deve ser inviabilizada pela atuação tributária representada por imposição indevida. Os princípios da propriedade, da livre

142 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, vol. III. “Os

Direitos Humanos e a Tributação – Imunidades e Isonomia”. 3.ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 14.

143 Ibidem. Loc. Cit. 144 Ibidem, p. 19.

iniciativa e da autonomia privada devem ser observados pelo Estado tributante como valores a serem estimulados.

Nesse contexto, pode o contribuinte, portanto, legitimamente adotar comportamentos tendentes à obtenção de economia de tributos, sobretudo em uma quadra de elevada concorrência empresarial em âmbito global, conforme anteriormente visto.

A respeito do exercício da autonomia e da autodeterminação privada no campo do direito tributário, sobretudo quanto a que esse exercício não pode servir para a alteração das opções oferecidas a todos os contribuintes, anota Diego Galbinski145:

No domínio do direito tributário, a projeção dos valores da autonomia e da autodeterminação que nucleiam o princípio da dignidade da pessoa humana entre outras coisas serve de obstáculo para que a interpretação e a aplicação dos tipos tributários a partir do princípio da capacidade contributiva sejam utilizadas a priori para alterar as oportunidades ou opções que os particulares têm à sua disposição no espaço vazio de tributação. Se este espaço favorece mais as preferências de um particular do que as de outro com a mesma renda ou riqueza em relação à opção econômica que ele decide praticar, esta vantagem não pode ser perturbada na maior extensão possível por meio da interpretação e aplicação dos tipos tributários. Não há dúvida que a projeção dos valores da autonomia e autodeterminação no domínio do direito tributário não se opõe à instituição de nova obrigação fiscal, sob o argumento de que ela limitaria a prática de relações econômicas neutras na maior medida possível do ponto de vista dos efeitos tributários. Todavia, a autonomia e autodeterminação como valores projetados no domínio do direito tributário exigem que a interpretação e aplicação dos tipos tributários a partir do princípio da capacidade contributiva não pode causar a alteração das oportunidades ou opções que os particulares têm de praticar estas relações principalmente no espaço vazio da tributação.

Por conseguinte, no legítimo exercício de sua autonomia privada, os contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas, podem programar-se para se comportar de modo a evitar, dentro de sua esfera de opções lícitas, a ocorrência de

145 GALBINSKI, Diego. O critério de reconhecimento da liberdade fiscal no ordenamento jurídico

brasileiro: o conceito jurídico-material aberto dos direitos, liberdades e garantias fundamentais. In Diálogos constitucionais de direito público e privado, n.° 2. Organizadores Liane Tabarelli Zavascki, Marcia Andrea Bühring e Marco Félix Jobim. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 107.

determinados fatos tributariamente relevantes. Assim, podem esquivar-se da incidência tributária ou reduzir o efeito financeiro dessa incidência, mediante planejamento regular.

Tal postura de planejamento tributário é mesmo essencial à consecução do objeto social das empresas com grau mínimo de lucratividade, em mercados, nacional e internacional, de elevada competitividade. Entendimento contrário submeteria a atuação dos contribuintes às amarras da tributação estatal, retirando- lhes o mínimo de liberdade de programação empresarial e, assim, inviabilizando sua atuação. Em uma economia de livre mercado, essa liberdade é crucial ao próprio desenvolvimento da macroeconomia, cujos lindes não podem restar excessivamente limitados por atos de império estatal que retirem dos agentes econômicos o mínimo de autonomia na adoção de medidas lícitas de planejamento tributário e de redução de custos de produção.

Valiosa é a lição de José Casalta Nabais146 sobre o tema da liberdade de gestão fiscal:

Nesta conformidade tanto os indivíduos como as empresas podem, designadamente, verter a sua acção económica em actos jurídicos e actos não jurídicos de acordo com a sua autonomia privada, guiando-se mesmo por critérios de elisão ou evitação dos impostos (tax avoidance) ou de aforro fiscal, desde que, por uma tal via, não se violem as leis fiscais, nem se abuse da (liberdade de) configuração jurídica dos factos tributários, provocando evasão fiscal ou fuga dos impostos através de puras manobras ou disfarces jurídicos da realidade económica (tax evasion).

Uma ideia que, como já referimos, não assenta apenas no princípio do Estado fiscal, mas também nas concretizações deste princípio nas liberdades de iniciativa económica e de empresa, contempladas nos arts. 61°, 80°, al. C), e 86° da Constituição Portuguesa. Liberdades que se materializam, nomeadamente: 1. na escolha da forma e organização da empresa – empresa individual/empresa societária, estabelecimento estável/sociedade afiliada, sociedade simples/grupo de sociedades/agrupamento complemetar de empresas/agrupamento europeu de interesse económico, etc.; 2. na escolha do financiamento (autofinanciamento através da não distribuição de resultados, heterofinanciamento, recurso a suprimentos, etc.); 3. na escolha do local da sede da empresa,

146 NABAIS, José Casalta. A liberdade de gestão fiscal das empresas. Revista Fórum de Direito

Tributário – RFDT, Belo Horizonte, n. 29, ano 5 setembro/outubro 2007. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=47983. Acesso em 13 jun. 2014.

afiliadas e estabelecimentos estáveis; 4. na política de gestão dos défices; 5. na política de reintegrações e amortizações; etc.

Por quanto vimos de dizer, a liberdade de gestão fiscal constitui um princípio constitucional do maior significado em sede da tributação das empresas. Muito embora se trate de uma liberdade que, como todos os direitos e liberdades, mesmo fundamentais, não pode deixar de ter limites. Daí que as manifestações em que a mesma se materializa, como referimos, estejam limitadas na medida em que constituam abusos da configuração jurídica dos factos tributários, provocando evasão fiscal ou fuga aos impostos através de puras manobras ou disfarces jurídicos da realidade económica.

Evidentemente que a apregoada liberdade fiscal do contribuinte à economia de tributos (elisão fiscal) encontra certos intransponíveis limites. Um desses óbices é justamente o referido princípio da moralidade tributária a que também o contribuinte está sujeito. Outros limites são a validade e a licitude dos comportamentos eleitos pelo contribuinte como medidas à exclusão ou redução da carga tributária.

Sobre esses limites da livre atuação do contribuinte na busca da elisão fiscal, doutrina Alberto Xavier147:

Propomo-nos demonstrar que o direito positivo brasileiro apenas consagra duas ordens de limites à liberdade fiscal dos cidadãos: a validade e a licitude dos atos jurídicos pelos quais essa liberdade se exerce. Donde resulta a conseqüência de que no caso de tal liberdade se haver exercido por intermédio da prática de atos válidos e lícitos, não é possível ao Estado formular qualquer pretensão tributária ao abrigo de uma eventual terceira ordem de limitações, expressa numa cláusula geral interpretativa.

E conclui o mesmo autor148:

a) A liberdade de atuação dos particulares em geral é princípio geral do nosso sistema jurídico e corolário do princípio da legalidade. b) A liberdade fiscal é princípio geral do nosso sistema tributário e corolário do princípio da tipicidade da tributação.

c) O exercício da liberdade fiscal comporta apenas como limites a validade e a licitude dos atos por que se exprime, não existindo outros decorrentes de especiais regras de interpretação e aplicação das leis tributárias.

147 XAVIER, Alberto. Liberdade fiscal, simulação e fraude no direito tributário brasileiro. In

Revista de Direito Tributário, ns. 11/12, janeiro/junho de 1980. p. 294.

Releva anotar que são justamente esses limites que separam os comportamentos lícitos (elisão fiscal) dos ilícitos tributários (evasão e elusão fiscais).

Outro ponto relevante ao tema da relação da tributação com o direito à liberdade guarda pertinência ao exercício da cidadania fiscal. A cidadania fiscal é típica expressão do direito à liberdade de planejamento tributário exercido dentro de parâmetros democráticos e normativos.

Ricardo Lobo Torres149 trata do tema da cidadania fiscal ao observar que “a questão da cidadania envolve a moral e o direito”. Discorre ainda que:

A liberdade fiscal, com seus corolários representados pelos princípios referentes às imunidades e às proibições de desigualdade, integra, juntamente com a justiça tributária e os princípios que lhe são vinculados, a noção de cidadania fiscal.

A cidadania em sua expressão moderna tem, entre os seus desdobramentos, a de ser cidadania fiscal. O dever/direito de pagar impostos se coloca no vértice da multiplicidade de enfoques que a ideia de cidadania exibe. Cidadão e contribuinte são conceitos coextensivos desde o início do liberalismo.

Também relativamente ao exercício da cidadania, mais precisamente sobre a redefinição de seu conceito no Brasil diante do movimento de internacionalização do Direito, tema tratado no capítulo anterior deste estudo, pondera Flávia Piovesan150 sobre o que se pode denominar de cidadania internacional:

O conceito de cidadania se vê, assim, alargado e ampliado, na medida em que passa a incluir não apenas direitos previstos no plano nacional, mas também direitos internacionalmente enunciados. A sistemática internacional de accountability vem ainda integrar este conceito renovado de cidadania, tendo em vista que, ao lado das garantias nacionais, são adicionadas garantias de natureza internacional. Consequentemente, o desconhecimento dos direitos e garantias internacionais importa no desconhecimento de parte substancial dos direitos da cidadania, por significar a privação do exercício de direitos acionáveis e defensáveis na arena internacional.

149 TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit., pp. 33-34.

Com amparo nesses fundamentos, passa-se ao último capítulo, em que se trata das linhas gerais do planejamento tributário internacional e da relevância da atuação do Poder Judiciário brasileiro na garantia do exercício do direito à liberdade tributária para esse fim.