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CAPÍTULO 4 – JURISDIÇÃO NA GARANTIA DA LIBERDADE FISCAL

4.2 Tributação e moralidade

Para ser justa, a atividade administrativa fiscal deve ainda contar com meios definidos em lei para a atuação de seus agentes, não se justificando o uso de meios quaisquer que apenas permitam arrecadar a maior quantidade possível de tributos. Portanto, a atividade arrecadatória do Estado deve tomar por premissa alguns princípios elementares do Direito, como o da igualdade de tratamento dos contribuintes e o da legalidade estrita.

Segundo observa Klaus Tipke133:

la Constitución no otorga al legislador poderes en blanco para establecer a su capricho el contenido de las leyes. El poder de la mayoría parlamentaria elegida democráticamente está sometido a los derechos fundamentales. La Constitución identifica la democracia con el Estado de Derecho. Es tarea del Tribunal Constitucional impedir que la legislación tenga un contenido que abandone de modo injustificable el ámbito del Derecho, en concreto de los principios de Justicia. El Tribunal Constitucional es también el guardián de la moralidad fiscal. El vigilante de dicha moral.134

Ainda, o princípio da moralidade conta com um sentido de mão dupla: serve tanto a guiar o comportamento do administrador quanto o agir do administrado nas atividades realizadas nas relações-de-administração que eles estabelecem entre si.

Nessa medida, Regina Helena Costa135 destaca a competência que atualmente cabe ao Poder Judiciário na garantia de eficácia do princípio da moralidade. Tal postulado apresenta-se como critério de apreciação judicial, pois, segundo refere:

133 TIPKE, Klaus. Moral Tributaria del Estado y de los Contribuyentes. Marcial Pons, 2002. pp. 99-

100.

134 Tradução livre do autor: “a Constituição não outorga ao legislador poderes em branco para

estabelecer a seu capricho o conteúdo das leis. O poder da maioria parlamentar eleita democraticamente está submetido aos direitos fundamentais. A Constituição identifica a democracia com o Estado de Direito. É tarefa do Tribunal Constitucional impedir que a legislação tenha um conteúdo que abandone de modo injustificável o âmbito do Direito, ou menos ainda dos princípios de Justiça. O Tribunal Constitucional é também o guardião da moralidade tributária. O vigia dessa moral.”

135 COSTA, Regina Helena. O Princípio da Moralidade Administrativa na Tributação. In Estudos

de Direito Público em Homenagem ao Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, Org. Marcelo Figueiredo e Valmir Pontes Filho. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 703.

instrumento a habilitar o magistrado a identificar ofensas à ordem jurídica, quer quando a própria lei atenta contra os preceitos éticos que a sociedade adota, quer quando o administrador realiza conduta descompassada com o padrão de comportamento funcional que dele se espera.

Assim, segundo a mesma autora136, o atuar administrativo-tributário deve-se

dar sempre em prol de uma ética fiscal, compreendida como o conjunto de princípios e de regras que efetivamente “devem ser observados pelo legislador e pelo administrador tributários e que lhes impõem, mais do que a estrita obediência às leis, o prestígio aos valores de probidade, lealdade, boa-fé, decência e justiça, enfim”.

Dessa maneira, o princípio da moralidade tributária desautoriza que tanto o contribuinte quanto o Fisco ajam de forma desleal, ilegítima ou sub-reptícia em seus comportamentos fiscais. A relação de tributação deve ser informada pela mútua confiança de seus atores. No que toca o atuar do Estado, não lhe é permitido valer- se de ardis, de generalizações, nem de presunções de fraude para tributar indevidamente o contribuinte, tomando-lhe ilegitimamente suas economias ou lucros empresariais, a pretexto de zelar pela indisponibilidade da arrecadação pública ensejada pela cobrança de tributos.

Ainda sobre esse princípio, discorre Marçal Justen Filho137:

o princípio da moralidade é limite intransponível para o Estado, mesmo em face dos fenômenos de elisão e evasão fiscal. É que o Estado produz normas e atos visando a apropriar-se, através do instrumento tributário, de determinada quantidade de riqueza privada. De outra parte, os particulares avaliam a legislação e determinam o próprio comportamento futuro de molde a reduzir o impacto do fenômeno tributário. A eficácia dos intentos dos particulares de evitar ou amortecer o fenômeno fiscal representa uma espécie de frustração para o Estado – que acaba arrecadando menos do que era previsto. O particular não hesita em alterar seus procedimentos para evitar ou reduzir a carga fiscal.

136 Ibidem, p. 704.

137 JUSTEN FILHO, Marçal. O princípio da moralidade pública e o direito tributário. In Revista

Em última análise, a atuação estatal conformada ao princípio da moralidade rende deferência ao sobreprincípio da segurança jurídica. A partir de tal atuação estatal moral, os contribuintes podem programar suas ações que repercutam no campo do Direito Tributário, valendo-se do princípio da estrita legalidade, porque assim contarão com uma previsão segura das normas jurídicas passíveis de incidência e do comportamento estatal esperado.

Ao ensejo do tema da exigência da atuação moral da Administração tributária e também do Legislador, registra Vicenzo Busa138:

Perché possa correttamente funzionare um sistema così strutturato richiede certezza delle regole, tutela della buona fede del contribuente, efficacia e legalità dell’azione amministrativa; in una parola, creditibità delle istituzioni.

Gli strumenti e le iniziative che possono spingere in questa direzione sono innumerevoli e chiamano in causa il ruolo del Legislatore e dell’Amministrazione finanziaria.

Il Legislatore tributario deve creare certezza nel diritto; deve saper resistere alla tentazione di usare la leva fiscale ad ogni difficoltà finanziaria, con il rischio – presente nel sistema italiano – di una produzione normativa fatta di regole polverizzatte, asistematiche e difficili da applicare. Non meno importante e delicato è il ruolo dell’Amministrazione finanziaria chiamata a gestire norme con un elevato e, per alcuni aspetti, ineliminabile tasso di tecnicismo, flessibilità e complessità, senza scadere nel formalismo giuridico né nella discrezionalità o nell’arbitrio.139

O princípio da moralidade, portanto, deve ser aplicado em ambos os sentidos da relação-de-administração tributária havida entre Estado e contribuinte. Tal relação oficial e essencial tanto à própria manutenção do Estado quanto à manutenção da vida em sociedade deve ser informada por boa-fé, de modo de que

138 BUSA, Vicenzo. Gli Istituti deflativi del contenzioso nell’esperienza italiana. in Direito

Tributário Internacional Aplicado, vol. V. Coordenação Heleno Taveira Torres. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 526.

139 Tradução livre do autor: “Para que possa corretamente funcionar um sistema assim estruturado,

exige-se certeza das regras, tutela da boa-fé do contribuinte, eficácia e legalidade da ação administrativa; em uma palavra, credibilidade das instituições. Os instrumentos e as iniciativas que podem conduzir nessa direção são inúmeros e chamam à responsabilidade o papel do Legislador e da Administração financeira. O Legislador tributário deve criar certeza no direito; deve saber resistir à tentação de usar a via fiscal a cada dificuldade tributária, com o risco – presente no sistema italiano – de uma produção normativa feita de regras pulverizadas, assistemáticas e difíceis de aplicar. Não menos importante e delicado é o papel da Administração financeira chamada a gerir normas com um elevado e, sob alguns aspectos, insuprimível grau de tecnicismo, flexibilidade e complexidade, sem cair no formalismo jurídico nem na discricionariedade ou no arbítrio.”

o financiamento do Estado não se prejudique por comportamento dos contribuintes, nem os contribuintes percam a credibilidade no Estado e na sua atuação.

Nesse contexto da aplicação do princípio da moralidade à atividade tributante do Estado, colhe elevado desvalor a edição de normas tributárias que violem a Constituição ou também os pactos internacionais celebrados pela República. Trata-se, a providência tributária em questão, de atividade estatal ilegítima, que ademais de invadir imoralmente o patrimônio dos contribuintes, causa nódoa indelével no caro sentimento de credibilidade que esses contribuintes devem depositar sobre a atividade estatal tributária. A relação de tributação, que já é naturalmente tensa por vincular limitação relevante da liberdade do contribuinte, conforme acima referido, torna-se cronicamente problemática, diante da desconfiança que o contribuinte passa a deter do Poder Público tributante que não observa os lindes de legitimação de sua atuação. Nesse passo, a atuação do Poder Judiciário, como garante da moralidade da tributação e, por consequência, da segurança jurídica, deve ser destacada.

É relevante destacar, ainda, que normalmente o Poder Judiciário é afetado, como Poder do Estado, pelos atos oficiais, que acabam por tisnar o princípio da moralidade, levados a termo pelas atividades típicas ou atípicas dos outros dois Poderes. Sobre isso, escreveu Robson Maia Lins140:

Em verdade, o Poder Judiciário está sendo indiretamente responsabilizado pelas mazelas sociais, políticas e econômicas, entre elas a ineficácia na realização da dívida ativa. Aí, coloca-se o contribuinte numa ‘arapuca’ tributária, proibindo-o de compensar créditos tributários próprios e de terceiros com débitos tributários, e até de recorrer à Justiça para suspender eventual cobrança ilegal ou inconstitucional. E o que é pior, coagindo-o a transacionar com a faca no pescoço.

Sobre o tema da moralidade da atuação do Poder Público, referiu Marco Aurélio Mello141, ao tecer crítica ao que chamou de abuso da utilização, pelo

140 LINS, Robson Maia. O Judiciário, os contribuintes e as armadilhas tributárias. Revista Jurídica

Consulex, v.12, n. 264, p. 14, jan. 2008.

141 MELLO, Marco Aurélio. Op. Cit. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/palestra-direito-incertezas-

Supremo Tribunal Federal, do instituto da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade:

A prática estimula a edição de normas inconstitucionais, e esse estímulo ocorre no tocante àqueles que acreditam na morosidade da Justiça e no famoso ‘jeitinho’. Cria algo que, do ponto de vista da ‘moralidade constitucional’, é inaceitável: a figura da ‘inconstitucionalidade útil’. Governantes e legisladores não temem criar ‘leis inconstitucionais’ porque, em certa medida, delas retirarão utilidade. Acaba havendo o estímulo desses malsinados atos e o Supremo, contradizendo a missão maior – a de guardião da legitimidade constitucional. O abuso da modulação transforma o Supremo em Congresso Nacional, vindo a reescrever a Carta da República.

Essa relação de confiança entre contribuinte e fisco, acima tratada, deve repercutir-se também na relação tributária modulada pela incidência de normas tributárias contempladas em tratados internacionais de que o Estado seja signatário. É a partir da incidência das normas albergadas nessas fontes que o contribuinte se programará ao cumprimento de suas obrigações tributárias, as quais poderão ser programadas por atividade de planejamento tributário internacional, conforme mais adiante se verá.