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A MARCA AUTOBIOGRÁFICA

2.1. UBÍQUO BRASIL

A maturação de Melodrama dos Melodramas, posteriormente editado com o nome de Fígados de Tigre, correu paralelamente, tal como Aleijões Sociais, às correspondências para o Diário da Bahia. Isto nada teria de especial, se se não desse a circunstância de, a

prppósito da representação da peça, o autor haver feito das colunas do jornal uma «alma gémea» a quem confidenciou mágoas de brios beliscados.

A 30 de Dezembro de 1856, o correspondente em Lisboa expedia uma «carta», que o Diário da Bahia publicou no dia 17 de Janeiro de 1857, informando, entre muitas outras coisas, que o poeta Gomes de Amorim acabara de escrever mais uma peça para o Teatro D. Maria II. A paródia subiu à cena no dia 31, mas ninguém a compreendeu. Com tristeza, o correspondente dizia, no Diário da Bahia de 10 de Março de 1857:

«Não foi entendida do público e ainda menos dos actores. O un.co que soube dar o verdadeiro carácter ao seu papel e representá-lo com propriedade e inteligência fo, o Tasso; todos os mais não perceberam que era uma paródia ou antes tiveram a estúpida e ridícula presunção de não se quererem parodiar a si, e por isso não agradaram. A peça é um género novo em Portugal, e o publico está ainda muito verde para inovações desta ordem [...] e diz o Mendes Leal que o maior defeito da peça é ter muito espírito, e ser escrita para gente lida e sabida em coisas de teatro». Da paródia para o absurdo e o grotesco da sátira: o autor textual chamava a si a crítica, saindo dos bastidores, a fim de lamentar a retextualização da peça e denunciar as nulas competências do receptor do texto teatral. Parte do problema estava, realmente, no que o correspondente escreveu e que Denise Jardon trata em Du Comique dam le Texte

Littéraire. «Presque toutes les formes du comique n'existent que parce qu'elles sont

elliptiques, allusives ou connotatives: ce qui est dit est rarement ce que l'on doit comprendre. À vous d'être assez intelligent et assez au fait sur le plan culturel pour entrer dans ce jeu de cache-cache intellectuel» 17. Essa espécie de elitismo, susceptível de unir o codificador e o decodificador, advém do facto de o texto dramático ser "constituído por actos linguísticos de múltiplas instâncias de enunciação, e ao de estar «saturado de elementos deícticos, isto é, unidades linguísticas que funcionam semântica e pragmaticamente pela sua referência ao enunciador, aos seus interlocutores, à situação comunicativa intratextual, às coordenadas temporais e espaciais da acção» 18.

Mais do que simples intuição, Francisco Gomes de Amorim teria bons conhecimentos teóricos da arte teatral, por certo adquiridos na leitura (há obras sobre teatro arroladas no catálogo da sua biblioteca), e, sobretudo, no estreito convívio com o seu patrono e mestre, Almeida Garrett, e com os actores Epifânio e Tasso. Isso ajuda a

perceber por que motivos Luís Augusto Rebelo da Silva, mais rotinado nas lides literárias, solicitou a sua ajuda, por carta de 3 de Junho de 1856 19.

Se nem os actores nem o público compreenderam Fígados de Tigre, a principal razão estava em que a peça era um drama à clé autobiográfico, como viria a provar a sua publicação, em 1869, com nada menos de 54 notas e esclarecimentos. Com efeito, Fígados

de Tigre pode ser lido como um repensar a vida e um prestar contas de oito anos de

actividade literária (vejam o que já fiz, o que penso, o que espero ainda fazer). Mas principalmente uma despedida de solteiro, realizada na "casa dantesca" 20, em tempo de epidemia de cólera. Fígados de Tigre é uma paródia polifónica com intertextualização heterossemiótica (pintura, dança e música de óperas, do lundu, da valsa, do tango da zarzuela, do fado, da polca), como conviria a um pandemónico retiro espiritual, na hora de «mudar de vida, de sossegar sobretudo dos imensos e desordenados incidentes da minha existência de solteiro». Na edição de 29 de Julho de 1857, o correspondente do Diário da

Bahia informava ter havido uma série de casamentos que fizeram a admiração de muita

gente. Casara a maior parte da literatura portuguesa. Era uma mania geral de casamentos, como nunca se vira!

«Deus fade bem esta plêiade de maridos que se aborreceram de cantar o azul do céu e das águas, as boninas e os rouxinóis, e que se vão lançar com tanta avidez na prosa chata e vilã do matrimónio» .

Passados dois meses - no Diário da Bahia de 8 de Outubro -, Francisco Gomes de Amorim incluía-se no rol dos "maníacos":

«Casou o Sant'Ana de Vasconcelos, com uma filha do Sr. Vilar Perdizes; o Lobo de Ávila, com uma filha do Sr. Visconde da Orta; o filho do Sr. Marquês de Penalva, com uma filha do Sr. Conde de Terena; e o Gomes de Amorim, com uma irmã do Sr. Sebastião da Silva Barbosa, estabelecido nesta cidade da Baía» 21

Pedro, uma das personagens de Fígados de Tigre, diz tudo em poucas palavras: «E proibido, Elisa.... quero dizer: Tomásia - que eu já não sou poeta, visto que vou casar-me, passo a ser pateta» 22. Numa situação de voyeurisme, sem dizer palavra, está o autor empírico, com o riso do gato ausente de Alice, a lembrar-se dos seus bugios.

Discretamente, na didascália da cena VIII do primeiro acto, é o «Homem de casaca azul e botões amarelos» 23 com que chegara do Brasil, e que de todo ainda não despira, espectador/expectador do êxito de um brasileiro mão-furada, chegado pelo mar onze anos antes. «Il fut un temps où celui qui arrivait par mer apportait avec lui son histoire et sa propre identité. En l'absence de tout témoin, il pouvait être n'importe qui, et personne» 24