• Nenhum resultado encontrado

3.3 DIMENSÃO TECNOLÓGICA: A ESCRITA E O LIVRO

3.3.1 Um breve panorama da tecnologia escrita na literatura

A escrita é uma das tecnologias de uso mais significativo relacionadas à literatura. Seu emprego durante diversos períodos da história da humanidade teve relação com demandas da civilização humana em geral. Dentre seus usos principais, estão aqueles relacionados com o texto literário, que serão explorados a partir do conceito de tecnologia fornecido por Feenberg (2010). De modo a iniciar a discussão a respeito da escrita como tecnologia essencial para a compreensão da literatura, Lévy (1993) demonstra que:

a escrita em geral, os diversos sistemas de representação e notação inventados pelo homem ao longo dos séculos têm por função semiotizar, reduzir a uns poucos símbolos ou a alguns poucos traços os grandes novelos confusos de linguagem, sensação e memória que formam o nosso real (LÉVY, 1993, p. 70)

De acordo com Cavallo e Chartier (2002), os gregos trouxeram como colaboração à prática da escrita a utilização da escrita como método de conservação da palavra: “a Grécia antiga teve nítida consciência de que a escrita fora ‘inventada’ para fixar os textos e trazê-los assim novamente à memória, na prática, para conservá-los” (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 10).

Em concordância, Lévy (1993) apresenta os processos de fixação da palavra como um dos primeiros usos da escrita, até então somente oralizada: “a escrita, por exemplo, serviu por um lado para sistematizar, para gradear ou enquadrar a palavra efêmera” (LÉVY, 1993, p. 71).

A escrita, ao ser aplicada à literatura, permitiu que textos há muitos séculos escritos pudessem ser preservados sem sofrer deturpações em seus conteúdos originais. Por conta das possibilidades de alteração que são permitidas pela palavra oralizada, a adoção de um sistema escrito de registro trouxe algumas vantagens: “com a escrita, abordamos aqueles que ainda são nossos modos de conhecimento e estilos de temporalidade majoritários. O eterno retorno da oralidade foi substituído pelas longas perspectivas da história” (LÉVY, 1993, p. 87).

De certo modo, isso colaborou para que a literatura registrada pela tecnologia escrita pudesse chegar até a contemporaneidade com as exatas palavras escritas pelo autor, ainda que a interpretação possa se alterar por estar também ao encargo do leitor.

Diferentemente do que acontece de forma predominante na contemporaneidade com a disseminação da literatura em sua forma escrita, a literatura tem suas raízes em uma extensa tradição oral que precede a utilização de sistemas de escrita para esses propósitos de registro de textos comumente passados pelas gerações de uma sociedade por meio da palavra falada. A respeito das relações entre a palavra escrita, seus usos frente a uma tradição baseada na palavra oralizada e a questão da interpretação, Lévy (1993, p. 89-90) afirma que:

de geração em geração, a distância entre o mundo do autor e do leitor não para de crescer, é novamente preciso reduzir a distância, diminuir a tensão semântica através de um trabalho de interpretação ininterrupto. A oralidade

ajustava os cantos e as palavras para conformá-los às circunstâncias, a

civilização da escrita apresenta novas interpretações aos textos, empurrando diante de si uma massa de escritos cada vez mais imponente.

Desse modo, a colaboração da escrita para a preservação dos textos literários representa um uso da escrita como tecnologia que se mostra primordial para que a literatura, tal como se conhece hoje, pudesse percorrer os caminhos por ela trilhados desde a antiguidade. A eficácia da tecnologia escrita aplicada à literatura estava, pois, relacionada à necessidade de uma mudança na relação da sociedade com o texto. De acordo com Lévy (1993, p. 89): “a transmissão oral era sempre, simultaneamente, uma tradução, uma adaptação ou uma traição”, e por isso, a fixação do texto literário com um sistema de escrita poderia colaborar com a preservação do texto sem que houvesse influência direta por parte do enunciador.

O que ocorre com a literatura a partir do advento da escrita é a possibilidade mais evidente de se conseguir desprender o texto literário do momento de sua enunciação, prática relacionada à tradição oral de transmissão de literatura (LÉVY, 1993). Lévy (1993) aponta que sociedades antigas, fundadas na palavra oral, submetiam sua produção literária aos modos de quem a contava, de forma que o texto sofria adaptações diante do seu público ou era alterado com base no contexto no qual seu processo de enunciação estava inserido.

a escrita permite uma situação prática de comunicação radicalmente nova. Pela primeira vez os discursos podem ser separados das circunstâncias particulares em que foram produzidos. Os hipertextos do autor e do leitor podem portanto ser tão diferentes quanto possíveis. A comunicação puramente escrita elimina a mediação humana no contexto que adapta ou traduz as mensagens vindas de uma outro tempo ou lugar (LÉVY, 1993, p. 89)

Segundo Cavallo e Chartier (2002), foi no período helenístico que a transmissão oral da literatura passou a coexistir com a representação escrita e então se associar ao livro. Assim, a leitura em voz alta era ainda realizada, mas o texto escrito garantia a materialização do texto tal como pensado pelo autor, ainda que esse fosse comumente adaptado às necessidades do interlocutor que o lia. Desse modo, “toda a literatura de época depende agora da escrita e do livro: a esses instrumentos são confiados a composição, a circulação e a conservação das obras” (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 13).

A escrita é, no caso da literatura, um equivalente a um registro para a posterioridade, que carrega nas palavras do próprio autor as palavras que não mais podem ser alteradas ao serem passadas de geração a geração, podendo ser apenas interpretadas de formas distintas. A transferência para o formato escrito era, de certo modo, uma garantia da permanência do texto do modo como foi pensado e planejado pelo autor. Assim, a utilização de selos para atestar a autenticidade dos textos escritos eram também empregados como maneiras de preservar a autoria e garantir a auteticidade da obra (CAVALLO; CHARTIER, 2002). Desse modo, o registro escrito dessas histórias também assegurava ao autor uma menor chance de deturpação do texto original. Com a conservação realizada a partir do texto escrito, as primeiras práticas de leitura do texto literário começaram a acontecer.

Assim, a escrita pode finalmente se firmar como uma tecnologia que atendesse as demandas específicas de algumas sociedades, consolidando-se como uma das principais formas de representação e conservação dos pensamentos de certos povos e gerações (POE, 2011). Relacionando a escrita à literatura, considera- se que a união entre ambas serviu como modo de registro importante da narrativa e revolucionou os posteriores métodos de leitura e concepção da obra literária.