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Em 2008, realizei um trabalho de campo nos estádios Beira-Rio, do Internacional, e Olímpico, do Grêmio. O Beira-Rio já passara por alguns processos de ‘modernização’, que incluiu a construção de camarotes e a extinção da ‘coreia44’, em uma ação de elitização bastante denunciada durante a construção e reforma dos estádios/arenas para a Copa do Mundo de 2014. O estádio Olímpico era, então, o estádio do Grêmio. No momento em que escrevia esta tese, o local, que foi substituído

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Espaço de difícil visualização que os torcedores acompanhavam as partidas em pé. O local também era destacado pelo valor bastante baixo do preço com que suas entradas eram comercializadas.

pela Arena, estava abandonado enquanto o clube ainda tentava resolver uma série de imbróglios com seu parceiro de construção da nova casa, a empreiteira OAS.

Em minha dissertação de mestrado (BANDEIRA, 2009), tentei mostrar como diferentes narrativas sobre futebol e masculinidade atravessavam as construções dos torcedores de futebol. Minha preocupação esteve centrada naqueles torcedores que acompanhavam as partidas nos estádios. A produção de torcedores de futebol e de suas masculinidades acontece de forma simultânea e ordenada. Em determinados momentos é difícil saber se os conteúdos que estão postos em cena se referem às práticas do torcer ou a uma produção de identidade masculina. Tenho algumas dúvidas se o currículo que observei no Olímpico e no Beira-Rio seria melhor caracterizado como um currículo de masculinidade ou um currículo de torcedores de futebol.

Poderíamos pensar em um gênero ‘torcedor de futebol’? Provavelmente, não seria muito produtivo propor uma classificação ou separação definitiva entre conteúdos do torcer e conteúdos de masculinidade, apesar de conseguir visualizar que alguns dos textos presentes nos estádios dialogavam em determinados momentos mais com a construção de um determinado ethos torcedor de futebol do que com a masculinidade daqueles sujeitos. O futebol é um esporte em que as masculinidades acabam aparecendo de forma tão privilegiada que em diferentes oportunidades corre-se o risco de tomar toda a produção do torcedor como uma produção de masculinidade. Ao se fazer torcedor de futebol, os sujeitos também se fazem masculinos. Aprender como atuar em um estádio também traz ensinamentos sobre as masculinidades inteligíveis em um contexto de bastante significação na cultura brasileira.

Na dissertação, tentei responder qual seria o currículo de masculinidade do torcedor de futebol de estádio, com seus percursos e trajetórias, seus ‘conteúdos programáticos’ e os textos que faziam parte desse processo. As apostas didáticas eram múltiplas e variadas. Localizei distintas estratégias nos cânticos repetidos que cumpriam a função de reiterar o pertencimento e as disputas tradicionais contra o rival histórico e o adversário de ocasião. Essa reiteração poderia ser pensada como uma estratégia e/ou como uma necessidade, o que permitiria, inclusive, a presença de espaços para as falhas ou equívocos nessas construções. Além desse material, também observei artigos e comentários de jornalistas e as manifestações dos clubes tanto em notas publicitárias quanto em manifestações via alto-falantes nos dias das partidas. Naquele momento, apontei para quatro eixos ou conteúdos deste currículo de masculinidade dos torcedores

de estádio: 1) Raça, garra e luta; 2) Violência e socialização; 3) Um amor de macho; 4) Masculinidades subalternas.

Em Raça, garra e luta, foi possível marcar que para os jogadores alcançarem sucesso nos clubes grandes de Porto Alegre era necessário algo além de suas virtudes técnicas. Os jogadores precisavam associar-se às representações de futebol gaúcho que incluíam uma vinculação com uma masculinidade específica, que valorizava aspectos viris. No período que estive em campo, o jogador Roger Flores, meia-armador que atuou no Grêmio, era reconhecidamente um bom jogador. Entretanto, ele fora advertido em diferentes situações de que seria necessário mostrar muito empenho para conquistar a torcida do Grêmio. O jogador pareceu ter entendido essa necessidade. Em todas as partidas observadas, Roger tentava recuperar a bola com um carrinho, lance arriscado e por vezes temerário, mas que se associa à grande força de vontade para a retomada da bola. Mesmo sem ter efetividade nos lances, essa demonstração de disponibilidade foi reconhecida pelos torcedores, que sempre aplaudiam essas tentativas.

Consegui observar que tal qual os jogadores, os torcedores também poderiam/deveriam demonstrar algum empenho para acompanhar as partidas, especialmente nas torcidas organizadas/uniformizadas. Tanto na Geral, do Grêmio, quanto na Popular, do Internacional, os torcedores acompanhavam os jogos em pé, atrás do gol em local, em que era difícil assistir as partidas. Dentro dessas torcidas existia uma constante cobrança a todos que ali estivessem para uma participação ‘efetiva’ na hora dos cânticos, que deveriam ser entoados durante toda a partida. Nos demais

pedaços do estádio, essas disputas também aconteciam. Os torcedores que deixavam o

estádio antes do término da partida ouviam gritos isolados de “já vai secador” com frequência. Diferentes cânticos das torcidas apresentavam uma disposição dos torcedores e exigiam essa mesma disposição do time na busca pela vitória.

Raça, garra e luta são qualidades/ações desejadas para os jogadores e reiteradamente solicitadas pelas torcidas. Um chute forte para a lateral do campo pode ser comemorado, mesmo que sua importância para o resultado da partida possa ser questionada. Nos jornais analisados naquele momento, um jogador chegou a ser exaltado por ser “ex-meigo”. Essas características esperadas para os atletas exaltam a necessária demonstração de virilidade, de entrega e esforço. Em alguma medida, é possível inferir que essas qualidades podem atravessar, também, as construções sobre os torcedores, especialmente os organizados/diferenciados que mais participam da partida com suas ações torcedoras do que assistem às mesmas. Algumas faixas no Olímpico e

no Beira-Rio eram bastante ilustrativas: “Peleando até a morte”, “A vida por esse

campeonato”, “Treino é jogo e jogo é guerra”, “Verás que um colorado teu não foge à luta”.

Encarar um adversário também parecia ser positivo na representação dos jogadores. O volante Eduardo Costa, do Grêmio, o goleiro Renan, do Internacional, bem como tantos outros, foram comemorados por suas torcidas quando se mostraram disponíveis para um enfrentamento físico com algum adversário. Parecia que, para essa masculinidade valorizada nos estádios, não existiriam muitas possibilidades de renunciar a um ‘convite’ para um enfrentamento físico.

Em Violência como forma de socialização?, questionei se, para além dos enfrentamentos físicos em que uma recusa poderia parecer difícil, xingamentos ou cânticos poderiam ser entendidos como expressões de violência. Tentei visualizar em direção a quem ou contra quem esses cânticos eram dirigidos. Por fim, tentei problematizar se os termos gay, homossexual ou ‘puto’ poderiam ser entendidos como ofensivos de forma direta. Já naquele momento, apontava uma diferença entre termos entendidos como ofensivos nos estádios. Questionei, então, se tal qual o termo macaco aparecia positivado pela torcida do Internacional, os diferentes termos como homossexual, gay, bicha e veado teriam espaço de positivação nos estádios de futebol.

Parecia-me, e ainda me parece, que as representações de masculinidades presentes nos estádios tendem a ser heteronormativas, machistas e heterossexistas. O uso frequente e, quase sempre, associado ao xingamento e às lógicas heteronormativas, pareciam impossibilitar que tal inversão de significado fosse realizado. Nos estádios de futebol, ‘putos’ são sempre os outros: torcida adversária, jogadores adversários, árbitros e os nossos jogadores quando não cumprem com o esperado. Em 2009, tomei os cânticos e gritos nos estádios de futebol como homofóbicos, me adiantando a uma discussão proposta pela FIFA com maior rigor a partir de 2015. Analiticamente, talvez fosse mais produtivo, neste momento, tomá-los como heterossexistas para poder colocar a associação dessas práticas fora do quadro de violência, ou melhor, em tensão com essa expectativa de violência bastante mais marcada no termo homofobia. Me parece que esse deslocamento me permitiria ilustrar, para além do ingrediente moral, um ingrediente estético na prática torcedora. Tomando o termo homofobia, acredito que existiria pouco espaço para pensar a manifestação dos torcedores para além da produção e veiculação de discursos de ódio. A discussão sobre se esses termos poderiam ser assim qualificados apareceu dita pelos torcedores durante minha estada em campo durante a

realização da investigação do doutorado, mas ela não se restringe a esses personagens. Diferentes autores, que têm dado privilégio a investigações sobre as manifestações culturais através do futebol, não reconhecem, necessariamente, violência em manifestações que subjugam a identidade homossexual. Além disso, o peso histórico do conceito de homofobia, já imediatamente vinculado a uma violência, também diminui a possibilidade de diálogo.

O conceito de heterossexismo, conforme utilizado por Roger Raupp Rios, talvez me ajude nesse diálogo. Segundo o autor, essa ideia rompe, inclusive, com o conceito de “fobia” preso no termo homofobia e acaba “designando um sistema em que a heterossexualidade é institucionalizada como norma social, política, econômica e jurídica, não importa se de modo explícito ou implícito” (2009, p. 62). Esse conceito, talvez, se aproxime mais do machismo que do racismo nas práticas que aparecem nos estádios. Sem vincular as atitudes, diretamente, a um crime ou a uma violência, ninguém consegue negar a existência do machismo nesses espaços. Se parece possível pensar ou questionar a possibilidade de o espaço lúdico do estádio de futebol comportar atitudes homofóbicas, me parece ser muito mais improvável negar seu componente heterossexista.

Esses gritos heterossexistas serviam (e servem) para hierarquizar a nossa torcida em relação à torcida deles, nos estádios de futebol. Os adversários são menos porque são ‘putos’. É sempre bom lembrar que não são todas as práticas homoeróticas que produzem um ‘puto’. As práticas que colocavam a masculinidade em risco eram as associadas com a passividade, sempre remetida aos adversários. Afetos na nossa torcida ou os termos de violência sexual contra o rival, em uma relação entre um conjunto de homens, não colocavam nossa masculinidade em risco.

Os cânticos heterossexistas ou homofóbicos nunca foram lidos como violentos pelos mediadores especializados e, nem mesmo, por alguns estudiosos do futebol. Naturalizados, neste contexto, eles aparecem como parte constituinte deste cenário. Os diferentes xingamentos nos estádios de futebol poderiam ser entendidos como uma possibilidade estética de socialização nesse espaço? De certo modo, poderíamos pensar na existência de um contrato tácito entre os envolvidos que autorizaria uma série de impropérios, incluindo discursos de ódio, restritos ao momento das partidas. O que me parece importante questionar é por que essa ‘tolerância’ aparece apenas quando as manifestações são verbais? Diferentes modos de violência aparecem como relevantes para distintas representações de masculinidades, como esperado, inclusive, dos

jogadores de futebol. Se cânticos que diminuem os outros poderiam ser aceitos como parte do espetáculo pela ampla maioria dos protagonistas do espetáculo esportivo, por que o rechaço ao enfrentamento físico entre torcedores era tão evidente? Dito de outro modo, se é possível aceitar gritos ‘contra’ homossexuais, negros, mulheres e todos os não gaúchos nos estádios porto-alegrenses, em função desse ‘acordo tácito’ entre os envolvidos, por que o enfrentamento físico continua sendo narrado como irracional e interditado se, poderíamos supor, existem indivíduos que aceitam essa possibilidade para resolver diferenças pontuais nesse espaço? Para encontrarmos justificativas para essa diferença, me parece que temos que olhar quais as legitimidades que essas manifestações desfrutam em outros contextos da cultura e não apenas no espaço dos estádios de futebol.

Por fim, essa socialização exigia um processo de diferenciação. O que ‘garantiria’ nossa masculinidade ou a masculinidade de nossa torcida, seria justamente a diferença em relação à outra torcida, à torcida deles. Era marcando a debilidade da masculinidade deles que reforçávamos nosso lugar privilegiado nessa hierarquia.

Em Um amor de macho, apontei como curiosamente nesse contexto de homofobia, que agora leio como heterossexista, e de violência potencial apareciam grandes manifestações de afetos e sentimentos masculinos. As declarações de amor dadas ao clube obedeciam vários critérios do amor romântico como a intensidade, a devoção e a eternidade. Nos estádios de futebol também apareciam, e ainda aparecem, maiores contatos físicos entre os torcedores, que vão desde saltos de um lado a outro abraçados, até a explosão do gol em que se abraçavam ‘desconhecidos’ na hora da euforia. Os jogadores, sempre alvo de rigoroso controle de suas virilidades, também tinham permissividade para demonstrações afetivas com seus companheiros.

Ao mesmo tempo, porém, seria apressado acreditar que existiria uma quebra de barreiras nas demonstrações de afetos dentro do estádio. Os abraços não pareciam tão permitidos existindo o recorte mesmo de acesso ao estádio em um setor específico. Em diferentes partidas, consegui visualizar torcedores que comemoravam os gols absolutamente sozinhos no meio da torcida. Outro interdito é que esses excessos e demonstrações afetivas são restritos aos gols e às partidas de grande excitação.

Todos esses afetos são visualizados dentro da ‘nossa torcida’. Reiteradamente gritamos por nossa masculinidade. E era entre nós, com essa masculinidade, muito brevemente, garantida que aconteciam esses carinhos e abraços. Nós que ‘possuímos’ essa representação de masculinidade positivada nos estádios de futebol.

Finalizei a sistematização de um currículo de masculinidade dos torcedores de futebol com as Masculinidades subalternas. Mesmo vinculado à perspectiva pós- estruturalista, acabei utilizando a definição de Michael Kimmel (1998) sobre a produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas, bastante marcadas pelo conceito gramsciano de hegemonia. Laclau reforça que existe uma ambiguidade inerente aos diferentes processos hegemônicos,

(...) os símbolos de um grupo específico assumem a certa altura uma função de representação universal certamente concede àquele grupo uma força hegemônica; mas, por outro lado, o fato de que tal função de representação universal foi adquirida ao preço do enfraquecimento do particularismo diferencial da identidade original, leva necessariamente à conclusão de que essa hegemonia vai ser precária e contestada (1997, p. 18).

Talvez, a pergunta mais recorrente durante toda a investigação do mestrado, não a questão de pesquisa, mas o que me instigou a realizar a investigação foi acerca de quais seriam as representações de masculinidades presentes nos estádios de futebol e de que maneira elas se hierarquizavam. No contexto dos estádios Olímpico e Beira-Rio, consegui visualizar duas representações de masculinidade mais evidentes: a ‘nossa’ e a ‘deles’. Talvez, se a pergunta fosse sobre as representações sobre torcida de estádio, essas duas marcações permaneceriam possíveis, o que reforça meu entendimento de que essas produções, a de torcedores e a de masculinidades, estão intimamente imbricadas.

Essas representações não são uniformes, coerentes ou definitivas, mas é perceptível que elas se diferenciavam uma da outra. Sobre a nossa masculinidade pouco se dizia. Ela se afirmava na masculinidade deles, dos outros. Ações que nossa torcida praticava sobre a torcida deles poderiam ser entendidas como úteis para a hierarquização das masculinidades. Algumas dessas ações estavam presentes em diferentes cânticos e gritos como botar o adversário para ‘correr’, cantar mais ou beber bastante. De qualquer maneira, a principal construção de nossa masculinidade estava na forma como nos referíamos às masculinidades deles. Era porque eles eram “putos” e “cagões” que éramos mais masculinos.

Os xingamentos apareciam como uma estética dominante no contexto masculino dos estádios de futebol. Duas delas foram mais facilmente escutadas devido a suas constantes reiterações. Os torcedores, no Beira-Rio, xingavam e tomavam os rivais por série B45, assim como os colorados eram ofensivamente marcados como macacos46 no

45 Até seu descenso de categoria em 2016, os torcedores do Internacional, um dos poucos grandes clubes

que nunca havia sido rebaixado no torneio nacional, usavam essa terminologia para diferenciar-se dos torcedores do Grêmio, clube que foi despromovido em duas ocasiões, nos campeonatos brasileiros de 1991 e 2004.

Olímpico como forma de insulto. Em ambos os estádios, gremistas e colorados xingavam-se uns aos outros, também, de “bicha”, “veado” ou “puto”.

Nos estádios, dois tipos de ofensas eram mais reiteradas. Uma delas era ofender os sujeitos por torcerem pelo adversário. Ser colorado no Olímpico era xingamento da mesma forma que ser gremista no Beira-Rio. Além de colorado (ou macaco) e gremista (ou série B), os torcedores adversários também são xingados de “putos”. Ser “puto” nesse contexto, para além da relação com a homossexualidade, poderia significar que eles não amavam tanto como nós, não bebiam tanto como nós, não eram tão fiéis, não davam a vida por uma conquista e fugiam de confrontos físicos.

Por fim, marquei que esse funcionamento e essas representações estavam potencializados pelo ambiente do estádio e pela presença da multidão. Esses xingamentos pareciam diminuir de intensidade, ou mesmo cessarem, em outras circunstâncias que não as partidas ou entre indivíduos solitários. Nesse contexto de intensa produção binária no torcer, as masculinidades positivadas e negativadas nos dois estádios eram as mesmas. “Em um confronto entre as masculinidades de gremistas e colorados o resultado, provavelmente, seria um empate. Se o jogo fosse entre masculinidades, gremistas e colorados estariam lado a lado” (BANDEIRA, 2009, p. 114-115).

1.4 Uma tentativa de delimitação: diferentes atravessamentos colocando em questão