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Um dentre tantos “roteiros” possíveis: apresentação da estrutura da tese

A presente tese é composta por quatro capítulos. O primeiro deles, intitulado

Backpackers: (des)construindo uma categoria, cumpre duas funções: uma de contextualização, que se refere a uma espécie de “história social” das viagens, considerando alguns momentos históricos e suas respectivas práticas de deslocamento e; uma de problematização da categoria backpacker. Como poderá ser notado, em meados dos anos 1990, esse termo foi cunhado no sentido de ocupar-se da popularização das viagens “independentes” de longa duração. Tal categoria estruturou-se sobre uma série de características regulares presentes nesse estilo de viajar e, de uma maneira ampla, informou os estudos acadêmicos emergentes sobre o tema. Contudo, releituras são propostas devido, sobretudo, à variabilidade do fenômeno em questão, sendo essa principal preocupação do capítulo: não tomar o conceito de backpacker ou mochileiro, seu equivalente no Brasil, como algo cego à heterogeneidade de motivações, formas de movimento, ritualidades ou representações associados a essas viagens.

O segundo capítulo, que tem como título Contexto e Motivações, busca “reconstituir”, primeiramente, o lugar de origem dos três “sujeitos viajantes” que são protagonistas e principais interlocutores desta pesquisa. O objetivo é perceber como esses sujeitos, no bojo de seus próprios contextos sociais, relacionam-se com a temática da mobilidade, tomando o ato de viajar não como algo estranho a suas biografias, mas como elemento próximo, constituinte – inclusive – de suas histórias familiares. A discussão que se desenvolve a partir disso é concernente à afirmação de Creswell (2006, 2009) de que, na contemporaneidade, embora seja apresentada como um direito, a mobilidade é acessada de

forma diferenciada. A segunda parte do capítulo, por seu turno, objetiva compreender as motivações dos sujeitos para empreenderem suas jornadas alargadas. Vivências de rotina, procura por excitações, esforços por aquisição de conhecimento, são algumas das temáticas apresentadas e discutidas a partir das narrativas dos três interlocutores.

O terceiro capítulo, como o título bem adianta (Direções e Ritmos), versa sobre a elaboração de itinerários por parte dos “sujeitos viajantes”, bem como acerca dos ritmos em que tais deslocamentos são efetuados. Discute-se, de maneira mais concreta, um certo tensionamento dos discursos oficiais (governos e agências de desenvolvimento do turismo) que instituem e legitimam lugares turísticos por parte de uma prática de viagem que visa a consumir de modo “independente” o lugar visitado. É dentro dessa perspectiva de afastamento daquilo que é reconhecido como turístico – e, consequentemente, acessado de forma ampla pelo denominado “turismo convencional” ou “institucionalizado” - que outras “direções” surgem a partir da “criação” ou “inventividade” desses viajantes. Interpelando a prática turística convencional, a “bolha ambiental” evocada por alguns críticos, também maneiras distintas de se deslocar – utilizando os transportes públicos ou mesmo as caronas – emergem como elementos estruturantes do estilo de viagem em análise, sinalizando uma experiência rítmica mais cadenciada, vagarosa e, por isso, mais propícia ao estabelecimento de contatos próximos com as culturas das localidades visitadas.

O quarto e último capítulo diz respeito, inicialmente, aos eventos de fricção presentes em uma viagem. Em uma primeira acepção, o termo fricção pode ser tomado como as paragens necessárias no curso de um deslocamento: a utilização de sistemas de hospedagem ou alojamento. Assim, os albergues ou hostels tornam-se “palco” de reflexão no referido capítulo, uma vez que estruturam-se como os lugares privilegiados de acomodação dos sujeitos das viagens “independentes” de longa duração. Uma outra noção de fricção, também discutida nesse espaço, refere-se aquilo que determina o fim de uma longa jornada. Assim, os eventos apontados pelos interlocutores dessa pesquisa como os finalizadores de suas viagens configuram importante matéria de reflexão no sentido do entendimento de sua prática, assim como apreciações acerca de suas experiências de retorno às comunidades de origem. O modo como se autodenominam é o último tópico desta tese, relacionando-se ao que foi discutido, sob uma ótica mais teórica, no primeiro capítulo. A ideia, considerando os discursos dos próprios viajantes, é a de que backpacker é uma categoria atualmente bastante utilizada pelo mercado turístico, mas que pouco envolve reconhecimento ou uso êmico.

Feita essa sucinta apresentação, gostaria de finalizar essa introdução informando ao leitor que todos os capítulos dessa tese são precedidos por excertos retrabalhados de meu

diário de campo, extratos refletidos de meus cadernos. O objetivo de tais fragmentos é oferecer uma espécie de descrição vívida não apenas de determinadas cenas componentes dessa experiência de pesquisa, mas igualmente de dividir dúvidas e angústias que se interpuseram no curso desse processo investigativo. Assim, para além de uma simples ilustração de eventos ou mesmo de um desejo de publicação de “intimidades não censuradas” (WEBER, 2009), o que se apresenta é mais uma tentativa de representar a pesquisa em seu fluxo, em suas próprias “desarrumações” e “desconcertos” de diversas naturezas. Dito isso, só me resta reafirmar o convite para que o leitor ingresse nessa viagem, feita por múltiplas vozes, interpostas e cruzadas em uma pluralidade de lugares. Como bem sugere a música tema do filme Easy Rider, apontado por um dos viajantes que conheci como um dos elementos motivadores de sua longa jornada: é hora de ligar o motor e dirigir-se para a estrada em busca de aventura32.

32 Na letra original, composta em 1968 pela banda Steppenwolf: Get your motor running, head out on the

2 BACKPACKERS: (DES) CONSTRUINDO UMA CATEGORIA

“I know, I know for sure That the life is beautiful around the world I know, I know it´s you You say ‘Hello’, and I say ‘I do’.” (Around the world, Red Hot Chili Peppers)

Nick, Sarah e eu, descansávamos no terraço após uma bem-sucedida aventura na cozinha do albergue. Era uma noite de abril, sem nuvens, e um vento agradável soprava, contribuindo para experimentarmos um verdadeiro elogio à preguiça. Sarah – uma alemã esguia, de vinte e poucos anos, que de tão loira parecia ter cabelos brancos –, logo tomou conta de duas cadeiras, fazendo uma espécie de maca para deitar de barriga para cima com o pretexto de observar melhor o céu; Nick – um inglês ruivo, já nos seus quarenta anos, detentor de um enorme cavanhaque que parecia tentar compensar sua calvície – sentou-se no chão, encostando-se na junção da piscina com o bar, tragando um cigarro artesanal; enquanto eu tomei assento em um castigado banco “manco”, mais perto do parapeito, no sentido de observar o movimento da rua, o vai e vem dos pedestres, das pessoas, já conhecidas ou ainda desconhecidas, que entravam e saiam do nosso lugar de hospedagem.

Entre uma tragada e outra, Nick sacou do bolso da bermuda uma pequena gaita vermelha, emitindo sons ainda sem muita coordenação, porém agradáveis, mesmo assim. “Ainda estou esquentando”, disse ele em tom jocoso. Sarah, por um breve momento, pôs em suspenso sua preguiça para tentar buscar, numa surrada bolsa de pano, um caderninho de notas e uma caneta. “Aqui se encerra a minha jornada, mais do que nunca eu quero deixar registrado meus momentos!”, falou ela, como se nos devesse alguma explicação. Eu continuava no balanço do meu banquinho “manco”, dividindo minha atenção entre meus companheiros e o que se passava lá embaixo: luzes, buzinas, gritos, campainhas, isso tudo me afetava tanto quanto os bocejos de Sarah ou o cheiro forte do cigarro de Nick.

Nós havíamos nos conhecido no dormitório misto, composto por oito camas, que iríamos dividir. Após um rápido cumprimento, um silêncio de pouca duração se estabeleceu: sendo Nick o mais “despachado” entre nós, nenhum ambiente ficaria indiferente a sua presença. Oferecendo-nos balas de hortelã, o ruivo logo nos contou o motivo de estar no Rio de Janeiro; ele pedira uma licença não-remunerada de seu trabalho, como bancário, para poder “desfrutar”, como ele mesmo ressaltou, sua “solteirice tardia”: Nick tinha acabado de se

separar e, estimulado por amigos, achou que um tempo longe, vivendo outras experiências, poderia lhe ser importante. A América do Sul era o terceiro continente que o inglês visitava em uma viagem que duraria, de acordo com suas expectativas, pelo menos 08 meses.

Sentada na borda de sua cama, tentando “desempacotar” sua enorme mochila vermelha, Sarah aparentava certa surpresa diante das colocações de Nick. No entanto, a alemã, entre uma tentativa e outra de desamassar suas roupas, também se pronunciava quanto às suas razões para estar em trânsito. O compartimento superior de sua mochila, repleto de broches – na verdade, bandeiras de países visitados – já anunciava que sua jornada não tinha sido curta. Ela estava na estrada por quase um ano, especialmente trafegando por países de língua castelhana; sua idéia era reunir em uma única experiência a celebração de um momento de independência – pós-universidade, antes de adentrar ao mercado de trabalho – e a aquisição da fluência em uma nova língua.

A seta agora apontava para mim, mas antes que pudesse apresentar meus motivos, que diferiam muito dos de meus companheiros, um grupo de israelitas chegou ao quarto, eram os outros cinco hóspedes que faltavam para completar a “tripulação” do dormitório. Quase os agradeci pela interrupção, penso que, naquele momento, não saberia dizer o que realmente me levava a estar ali. Como formavam um grupo que já se conhecia, a interação foi de pequena intensidade, reduzida a alguns acenos e cumprimentos de cabeça; a fome chegava para nós, e a idéia do jantar, acima mencionado, foi proposta por Sarah, fazendo-nos deixar nossos “aposentos” rumo à cozinha coletiva localizada no térreo do velho prédio cinza de quatro andares.

Macarrão tinha sido a pedida, “um alimento útil para quem está viajando por muito tempo”, justificou Sarah, complementada – quase que de imediato – por Nick: “é muito útil mesmo, é bom, dá energia e, acima de tudo, é barato!”. O “panelão” de massa com molho de tomate, portanto, era o responsável por nossa letargia no terraço, uma espécie de “ode à moleza”, somente dissipada quando Nick – sempre ele – socou de volta a gaita no bolso da bermuda, levantando-se bruscamente, ao passo em que dizia: “Vamos! Eu tenho medo de perder o que existe por aí!”.