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Um Evangelho animado pelo Espírito

2.1 O EVANGELHO DE JOÃO: APRESENTAÇÃO

2.1.3 Um Evangelho animado pelo Espírito

Conforme Léon-Dufour, “[...] segundo João, o dom do Espírito é necessário ao homem para que ele entenda a Palavra de Deus e compreenda que esse dom é fruto da Cruz”.168 Portanto, ser um evangelho espiritual não significa estar alheio nem dissociado da vida material, mas significa que para um pleno entendimento das palavras de Jesus é necessário força do alto. João, entre os capítulos 14 a 16 – no discurso de despedida de Jesus, depois da Ceia – menciona por cinco vezes esta força do alto, ou o Espírito. É principalmente em 14,26 que se deixa claro a ação de discernimento do Espírito Santo em nós a respeito das palavras de Jesus:

1) Se me amais, observais meus mandamentos, e rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça para sempre.169(14,15-16)

2) Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinara tudo e vos recordará tudo o que vos disse. (14,26)

3) Quando vier o Paráclito, que vos enviarei de junto do Pai, o Espírito da Verdade, que vem do Pai, dará testemunho de mim. (15,26)

4) No entanto, eu vos digo a verdade: é de vosso interesse que eu parta, pois, se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas se eu for, enviá-lo-ei a vós. (16,7)

5) Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos guiará na verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras. (16,13)

Quando comparamos o Jesus apresentado pelos evangelistas Mateus, Marcos e Lucas com o Jesus de João, temos a impressão de que o Jesus dos sinóticos não é o mesmo Jesus joanino. Parece que não se fala da mesma pessoa, pois o Jesus apresentado pela comunidade

168 LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João I. São Paulo: Loyola, 1996, p. 21

169 A nota d) da Bíblia de Jerusalém para este versículo diz: Primeiro dos cinco textos relativos ao Espírito

(Paráclito, Espírito de verdade, Espírito Santo) nos discursos depois da Ceia. Enviado pelo Pai (ou por Cristo) depois da partida de Jesus (16,7; 7,39; At 2,33), ele permanecerá para sempre junto dos discípulos (14,15-17), a fim de recordar e de completar o ensinamento de Cristo (14,25-26), conduzindo os discípulos no caminho da verdade (8,32+); explicando-lhes o sentido dos acontecimentos futuros (16,12-15; cf 2,22; 12- 16; 13,7; 20,9). Ele glorificará Cristo (16,14), no sentido que testemunhará (15,26-27; 1Jo 5,6-7), que sua missão vinha de Deus, e que o mundo desviado por seu príncipe, o “pai da mentira” (8,44), errou por não crer nele (16,7-11). Em 1Jo 2,1-2, de acordo com as tradições judaicas, o Cristo-Paráclito (=Advogado) nos defendia no tribunal do Pai contra as acusações de Satanás, o Acusador (Zc 3,1+;AP 12,10), graças ao seu sacrifício expiatório (Ap 12,9-11). No discurso depois da Ceia, o Espírito-Paráclito exerce mais a “paraclese”, as exortações de que se fala nos atos e nas cartas de Paulo (At 9,31; 13,5). Bíblia de Jerusalém, São Paulo: Paulus, 3ª impressão, 2004, p. 1880.

de João aparenta estar alheio às realidades terrenas em detrimento do envolvimento do Jesus dos sinóticos com as coisas de seu tempo, embora somente João afirme que o Verbo que era Deus se fez carne, e mais que isso: habitou entre nós. Como entender que um Deus que se dá ao trabalho de se fazer carne não se importaria com a sua própria carne e a de seus filhos?

Para Bruno Maggioni, o Cristo joanino não é um Cristo alheio ao seu povo e às realidades que o cercam, se assim fosse não seria real:

Quando se passa dos evangelhos sinóticos para Jo, fica-se impressionado com a diferença na pessoa de Cristo que aqui vem ao nosso encontro: pessoa descrita não somente nos gestos e palavras, mas no profundo mistério humano e divino que eles implicam. É um evangelho meditado, aprofundado e contudo sóbrio, continuamente reconduzido ao essencial. É certamente fruto de longa contemplação. Isto é verdade, mas exige atenção, pois pode esconder um risco: o de querer ver aqui uma apresentação de Jesus bem rica e profunda, porém abstraída dos fatos; representação tranqüila, estranha aos problemas que agitavam o tempo de Jesus e de Jo. O contrário é verdade: O Cristo de Jo está profundamente envolvido na história; é vivo, polêmico; sua palavra vai até o fundo e faz sangrar.170

Maggioni é claro quando afirma que o Cristo Joanino é vivo e atuante em sua história e seu tempo e que sua palavra penetra com profundidade até o mais profundo de nosso ser. Da mesma forma também nos exorta a respeito da palavra de Jesus, conforme a carta aos Hebreus: “Porque a palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4,12).

O Evangelho de João é sem dúvida místico, no entanto é na sociedade que se desenvolve e vive a mística. Não somos do mundo, mas o mundo nos envolve com seus valores anti-cristãos e desejos que se opõem à vontade do Espírito. Diante desta pressão do mundo, a mística é fato que nos liberta porque nos faz penetrar no misterioso átrio Divino:

O Evangelho de João é místico, mas não mistificado, nem mistificante. Acena à realidade de Deus, que não “pertence” a “este mundo”, mas nele se inscreve. Os discípulos não são do mundo, mas estão nele (17,14-15). É no mundo que se vive a vida unida a Jesus, perseguido e excluído pelo mundo. Ora, “este mundo” penetra até dentro da comunidade cristã, na forma de desamor, ambição, apostasia, traição. Por isso, João se opõe violentamente à “cobiça do mundo” (cf 1Jo 2,16).171

170 MAGGIONI, Bruno. O Evangelho de João, In FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos (II).

São Paulo: Loyola, 1992, p. 251.

Jesus quando ora por seus discípulos pede para que Deus os livre do mal e não do mundo (Jo 17,15). Assim, a constatação da ação de Cristo, que é ação do Verbo de Deus, e que por sua vez é divino e espiritual, se dá concretamente na realidade do mundo. Os discípulos de Jesus também agem no mundo, no mesmo mundo experimentado em sua carne.

Um evangelho profundamente espiritual e teológico, sim! Mas, certamente não alienado ou alienante, não exclusivamente místico, nem excludente de sua dimensão material real. É um Evangelho que tem sua força na ação do Espírito Santo, onde João, encontrando na natureza divina de Jesus o dynamis que animou sua natureza humana, permeou de um valor espiritual toda sua ação histórico-social.