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Nos anos 20 do século XII, surgiu no Magrebe a figura de Muhammad b. Tumart, que se intitulou imam infalível e mahdi anunciado. Diz Ibn Khaldun que nasceu numa família que brilhava pela piedade. Ávido de conhecimento, terá passado os primeiros anos de vida na leitura do Corão.225 A princípio, seguia a tradição malikita, que acabou por criticar. Já o messianismo de Ibn Qasi tinha matriz sufi, geneticamente contra o malikismo.

Depois de visitas ao Oriente em busca da ciência, Ibn Tumart dedicou-se ao ensino. Foi legista consultor a título gratuito e demonstrava zelo na reforma dos costumes entretanto corrompidos,226 função associada a um mahdi, anunciado por Deus

223 Lucae Tudensis, Chronicon Mundi, Ed. Emma Falque, pp. 310-1. 224 Al-Idrisi, Ed. António Ubieto Arteta, p. 189.

225

Ibn Khaldun, Trad. Le Baron de Slane, Vol. II, p. 163.

226

Al-Baidak elenca exemplos elucidativos, destinados à propaganda de Ibn Tumart. No princípio da carreira, ao entrar na cidade de Tlemcen, o mahdi deparou com uma recém-casada, conduzida a casa do marido sentada numa sela. O cortejo de música que a acompanhava pareceu-lhe blasfemo, pelo que destruiu os instrumentos, obrigou a noiva a descer da sela e “pôs fim ao espectáculo imoral” (Trad. E. Lévi Provençal, p. 93). Noutra ocasião, confrontado com uma multidão que se preparava para crucificar um indivíduo vivo, terá ficado chocado e dispersado a população com o argumento de que só os

para recuperar o Islão. Pregava e escrevia tanto em árabe como berbere. A princípio, não foi bem aceite. Mas um rigorismo religioso, uma política astuciosa e uma impiedade para com os opositores permitiram-lhe lançar as sementes de um movimento que só ascenderia ao poder com Abd al-Mumin. Para usar uma metáfora judaico-cristã, Ibn Tumart saiu do Egipto, mas nunca chegou a ver a Terra Prometida.

O primeiro grande acto de visibilidade política viveu-o quando, na presença de Ali b. Yusuf, manteve uma controvérsia com os doutores de leis almorávidas. Apresentou-se como homem ao serviço de Deus, provedor do Bem e castigador do Mal. Não obteve, evidentemente, os resultados que esperava dos seus interlocutores, mas, segundo al-Baidak, “reduziu-os ao silêncio”.227

Começou a formar-se no seu espírito a ideia de que, enquanto os almorávidas reinassem, nunca iria produzir-se a reforma religiosa que procurava. Propunha o fim das escolas de jurisprudência malikitas, com as suas diferentes interpretações dos textos islâmicos fundamentais e, em substituição, uma abordagem directa do Corão e sunna. Atribuiu-se, assim, a missão de eliminar a dinastia, que acusou de antropomorfismo e alistar cristãos nos seus exércitos.

Após a polémica com os malikitas, o emir Ali b. Yusuf deixou-o partir para junto dos hargha, tribo de onde era originário. Entretanto, arrependeu-se e pretendeu prendê-lo. Mas o messias foi protegido pelos apoiantes. Quando conseguiu reunir meia centena de apoiantes, formou uma elite, o “grupo dos 50”, e, dentro deste, outra mais restrita, “o grupo dos 10”.

Ibn Tumart não é uma personagem indiferente às fontes cristãs, como é o caso da Historia de Rebus Hispanie, que o descreve da seguinte forma: “Nos dias do

imperador Afonso, surgiu entre os árabes um homem a quem deram o nome de Ibn Tumart, douto em astronomia e coisas naturais. A sua curiosidade levou-o a profetizar que Abd al-Mumin seria rei dos árabes. E, então, Ibn Tumart tomou os livros do Profeta, que se chamam Alcorão, e expôs e ensinou que o califa de Bagdade, que é o papa dos árabes e descende da semente de Maomé, ensinava o contrário do Alcorão e também ensinou contra os almorávidas e incentivou a rebelião em África”.228

mortos podiam receber tal castigo. Se queriam crucificar aquele homem, deveriam matá-lo primeiro (Trad. E. Lévi Provençal, p. 96).

227 Al-Baidak, Trad. E. Lévi-Provençal, p. 109.

A fonte acrescenta vários pormenores incorrectos do ponto de vista histórico. De qualquer modo, o destaque é atribuído a Ibn Tumart, o homem das ciências, que se move na esfera do espiritual, e não a Abd al-Mumin, o rei, reduzido ao mundo temporal. A Primeira Crónica Geral de Espanha, por sua vez, replica o discurso de Rodrigo Jiménez de Rada.229

Também a Crónica Latina dos Reis de Castela alude ao aparecimento de Ibn Tumart entre os muçulmanos de Marrocos. A visão que é dada do fundador do movimento almóada revela-se extremamente positiva. Pelo contrário, a crítica ao poder almorávida surge demolidora. “Pregava sobretudo contra a soberba e a opressão dos

moabitas, que oprimiam cruelmente as gentes, faziam, muitas vezes, cobranças de impostos exageradas, eram pródigos no vício e, com a sua libertinagem, contaminavam os que trabalhavam (…). Escutaram-no gentes inumeráveis, que livremente o seguiram, querendo expulsar o duríssimo jugo da sua servidão”.230 Uma vez mais, Abd al-Mumin aparece como figura secundária: “Entre os que seguiam o dito Ibn Tumart, estava um

homem simples, mas com espírito de guerreiro, de nome Abd al-Mumin, cujo serviço em árduos negócios frequentemente usava”.231 Interessante é ainda a noção de que os almóadas “retiram o seu nome de terem um só Deus”.232

Às fontes cristãs, podemos contrapor as palavras de um muçulmano, Ibn Khaldun. Na Muqaddimah, critica: “As pessoas comuns, a massa estúpida, acredita

que o mahdi vai aparecer numa região remota, sem controlo da lei nem do Estado”.233

Para lá, afluem seguidores seduzidos por causas enganadoras, acrescenta. A afirmação vale tanto para Ibn Tumart, refugiado numa zona de difícil acesso ao Estado, como para Ibn Qasi, instalado numa região em que o controlo almorávida se pulverizou. O próprio Ibn al-Arif o avisou de que só os ignorantes poderiam acreditar num projecto assente na condição de mahdi.

Em 1124, Ibn Tumart entendeu estabelecer-se na cidade de Tinmalal com a sua horda. O local não era desabitado, mas o pormenor não foi impedimento. Resolveu a resistência da população a fio de espada e dividiu os respectivos bens pelos seus fiéis.234

229

Primera Crónica General de España, Vol. II, Ed. Ramón Menéndez Pidal, pp. 658-9.

230

Cronica Latina de los Reyes de Castilla, Ed. Maria de los Desamparados Cabanes Pecourt, pp. 22-3.

231 Idem. 232 Idem.

233 Ibn Khaldun, Muqaddimah, Trad. Franz Rosenthal, pp. 258-9.

A escolha de Tinmalal não foi produto do acaso. A cidade, cravada nas montanhas do Atlas, era virtualmente inexpugnável, como informa o anónimo Kitab al-Istibsar

fi A'jaib al-Amsar. Inspirado na obra do geógrafo al-Bakri, terá sido redigido ao tempo

do califa Yaqub al-Mansur. Só era possível aceder à fortificação por um caminho de madeira, que podia ser removido em caso de ataque. Sem este trilho, quem se aventurava pela montanha poderia facilmente perder a orientação e encontrar a morte nos profundos abismos.235 O ninho de águias viria a ser a morada dos túmulos de Ibn Tumart e Abd al-Mumin.

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