• Nenhum resultado encontrado

Parte II Relatório de Investigação

Capítulo 2. Revisão de literatura

2.2. Um modelo de aprendizagem de conceitos matemáticos segundo Sfard

Numa perspectiva ontológica-psicológica, Anna Sfard (1991) defende que os conceitos matemáticos, tais como número ou função, podem ser concebidos de duas maneiras diferentes. Uma concepção operacional – segundo a qual as noções matemáticas são concebidas como um resultado de certos processos ou são identificadas com os próprios processos – e uma concepção estrutural – onde as noções matemáticas são tratadas como se se referissem a entidades como objetos.

Ver uma entidade matemática como um objeto é ser capaz de a referir como uma coisa real e de reconhecer a ideia sem entrar em detalhes. Interpretar a noção como um processo implica vê-la não como uma entidade atual, mas como uma potencial entidade, que existirá na sequência de uma série de ações.

Enquanto a concepção estrutural é estática, instantânea e integrativa, mais abstrata, a concepção operacional é dinâmica, sequencial e detalhada.

Do ponto de vista estrutural, a função pode ser vista como o conjunto de pares ordenados (Bourbaki 1934; citado por Sfard, 1991); do ponto de vista operacional, a função será o processo computacional ou método bem definido para ir de um sistema para outro (Skemp, 1931; citado por Sfard, 1991). Essas duas abordagens, embora incompatíveis, são na verdade complementares, indispensáveis para compreender profundamente a matemática, consistindo a aprendizagem numa interação entre as duas. Com base na teoria cognitiva e em exemplos históricos, conjectura-se que o primeiro passo para a aquisição de novos conceitos matemáticos é, na maioria das vezes, a concepção operacional. Um processo é transformado num objeto abstrato autónomo num nível mais elevado, para poder funcionar como uma unidade básica em construções matemáticas mais avançadas. Sendo assim, a abordagem estrutural é uma fase mais avançada do desenvolvimento conceptual.

A transição de uma abordagem para outra está, segundo Sfard (1987; citada por Domingos, 1994), dependente do desenvolvimento histórico e também da aprendizagem individual.

A aprendizagem não se processa de igual modo em todos os indivíduos, sendo a transição das operações computacionais para objetos abstratos um processo longo e difícil, realizado em três etapas (Sfard, 1991):

- Interiorização

O aluno executa processos com objetos matemáticos elementares, que eventualmente darão origem a um novo conceito. Vai-se tornando cada vez mais hábil. O processo é interiorizado, quando puder ser realizado através de representações mentais

e quando, para poder ser considerado, analisado e comparado, não precisar de ser efetuado no momento.

No caso do conceito de função, é aprendida a noção de variável e o aluno é capaz de achar os valores da variável dependente utilizando uma fórmula.

- Condensação

As longas sequências de operações são comprimidas dando origem a unidades mais fáceis de trabalhar, o aluno torna-se capaz de pensar sobre um dado processo como um todo, sem serem indicadas as operações, é um processo de input/output. É nesta altura que nasce o novo conceito. Ao combinar o processo com outros processos, torna-se mais fácil fazer comparações e generalizações. A condensação dura enquanto a nova entidade matemática permanecer fortemente ligada a um processo. Nesta fase, há evolução quando o aluno for capaz de alternar facilmente entre diferentes representações dum conceito.

No caso do conceito de função, traduz-se pela facilidade com que o aluno for capaz de trabalhar com as funções como um todo, sem necessidade de olhar para os seus valores específicos. Poderá investigar, desenhar os seus gráficos, combinar pares de funções, encontrar o inverso.

- Reificação (concretização)

Uma vez que temos limitações, não somos capazes de lidar com processos super complexos sem os partir em peças mais pequenas. Ultrapassamos esta dificuldade convertendo processos em objetos abstratos. A reificação acontece quando se consegue identificar uma entidade matemática que é completamente nova como um objeto com significado próprio, autónomo e completo. O conceito reificado pode servir de base à formação de novos conceitos de nível superior. Esta última fase acontece de uma forma instantânea.

O conceito de função é reificado quando o aluno compreender na íntegra as diversas representações que a função pode assumir e passar facilmente de uma representação para outra, quando for capaz de resolver equações onde as incógnitas são funções, quando conseguir falar sobre as propriedades gerais dos diferentes processos realizados com funções e quando reconhecer que a computabilidade (cálculos algébricos) não é uma característica necessária dos conjuntos de pares ordenados que definem funções.

A Matemática e as outras ciências têm muitas analogias, pois ambas falam de universos com objetos, objetos com certas características e sujeitos a certos processos. Porém, os objetos matemáticos são abstratos, totalmente inacessíveis aos nossos sentidos, só visíveis pela mente. A criação matemática dificilmente pode ser atingida sem “ver” objetos abstratos. A grande dificuldade que os alunos ainda sentem face à Matemática, a sua inacessibilidade, pode estar relacionada com este facto.

O processo de reificação é difícil de atingir, mas uma vez conseguido, facilita a produção matemática. Por sua vez, a competência na execução dos processos inerentes ao pensamento operacional é uma base para a compreensão dos conceitos. A demora na reificação e os inerentes períodos de dúvidas sobre o significado do conceito podem levar à convicção de que nunca se conseguirá aprender, com consequências permanentes do ponto de vista educacional. Aqueles que não estão preparados para lutar pelo significado (reificação) rapidamente desistem de tentar aprender matemática.

É possível fazer uma abordagem puramente operacional (Sfard, 1992; citada por Domingos, 1994), mas para que a aprendizagem cumpra os seus objetivos, são importantes as duas abordagens.

Para Sfard (1989, 1992; citada por Domingos, 1994), os novos conceitos não devem ser introduzidos segundo uma concepção estrutural e esta não deve ir para além daquilo que os alunos conseguem fazer. Será pouco proveitoso introduzir novas noções matemáticas por meio das suas descrições estruturais. A abordagem operacional deverá preceder a estrutural uma vez que esta última, sendo muito mais abstrata, não tem muitas hipóteses de motivar, senão quando for indispensável para passar a um nível superior da teoria.

Sfard (1989, 1992; citada por Domingos, 1994) considera também que a visão das funções como objetos só é necessária quando se pretende o tratamento em simultâneo de várias funções, e aí, cada uma é tratada como um todo. No cálculo básico, os alunos podem utilizar apenas uma concepção operacional do conceito de função.

Diferentes representações de função podem ser interpretadas de forma mais estrutural ou operacional. Por exemplo, a representação de uma função usando um programa de computador corresponde a uma concepção mais operacional, uma vez que se trata de um processo computacional. Já a sua representação gráfica, em que a linha traduz uma série de elementos integrados como um todo, induz a uma concepção estrutural. Por sua vez, a expressão algébrica pode ser vista operacionalmente, como a descrição de procedimentos de cálculo, ou estruturalmente, como a relação estática entre duas magnitudes.

As duas concepções também se revelam nas representações mentais que as pessoas fazem ao processar o conhecimento. De certa forma, as representações verbais parecem mais adequadas a uma concepção operacional, enquanto as representações visuais parecem adaptar-se mais a uma concepção estrutural.

Na literatura matemática, psicológica, filosófica são mencionadas diversas dicotomias do universo matemático. Porém, a maioria não presta atenção à questão dos pressupostos filosóficos subjacentes à atividade do pensamento matemático. Simultaneamente, separam as componentes dessa dicotomia, enquanto Sfard (1991)

defende a sua complementaridade. Como exemplo dessa dicotomia, Piaget distingue também dois tipos de pensamento matemático: figurativo e operativo.

A partir dum trabalho realizado com alunos de escolas de Jerusalém em que o ensino da função é abordado de forma estrutural, Sfard (1989; citada por Domingos, 1994) chegou às seguintes conclusões:

- A concepção estrutural de função é rara nos alunos.

Estes apresentam alguma dificuldade em considerar uma coleção de pares ordenados como uma entidade única. Algumas entidades abstratas como o domínio, contradomínio, objetos e imagens são, por vezes, vagos e a confusão geral é a reação mais comum a problemas que requerem identificação das diferentes componentes de uma dada função.

- A definição de função não é interpretada para além do que está incluído nela, mas antes no que lhe falta.

Embora a definição não utilize a noção de operação, a maioria dos intervenientes associaram as funções a processos computacionais. A concepção de função, nos alunos, acaba por ser determinada operacionalmente e não estruturalmente.

Os alunos revelaram dificuldades na identificação de funções idênticas com expressões analíticas diferentes e na interpretação da função constante, pois faltava-lhes a variável independente para poder determinar a dependente.

- Há a tendência dos alunos em associar as funções com fórmulas algébricas. Sfard considera que esta tendência tanto pode indicar uma concepção operacional como uma concepção estrutural, isto é, o aluno pode entender a fórmula como uma descrição de um algoritmo computacional ou como uma relação estática entre pares ordenados.

Com base no estudo feito com outro grupo de alunos das escolas de Jerusalém sobre o conceito de função a partir de uma abordagem operacional, Sfard (1989; citada por Domingos, 1994) chegou às seguintes conclusões:

- Nas primeiras tentativas de transição para a abordagem estrutural, houve alguma resistência e falta de compreensão, mas as dificuldades foram diminuindo com o tempo, nunca desaparecendo totalmente.

- Uma representação onde não houvesse algo de computável era considerada como não sendo função.

- Apenas um pequeno grupo de alunos considerou o termo função como sinónimo de fórmula ou equação.