• Nenhum resultado encontrado

1- Um espaço de vivências disciplinares e cotidianas

1.5. Um período de conservadorismo na educação feminina

Diante dessas análises foucaultianas, compreendemos ser importante discutir como estava a educação brasileira no recorte temporal proposto. Percebemos que foi um período no qual se iniciava a Ditadura Militar e que possibilitou transformações no sistema educacional, influenciando de forma determinante na realidade social das ex- alunas.

Pelegrini (2011) analisa como ocorreu o processo político que ocasionou o golpe militar de 1964, no qual foi durante o período de governo do então presidente João Goulart, que apresentava os planos para reformas de base no Governo Federal e os seus opositores interpretaram como sendo propostas de ideário comunista e que ele poderia implantar esse sistema no país. Como os militares tinham uma linha de pensamento voltado para o governo norte-americano, eles combatiam o comunismo e as

31

organizações de esquerda. Os militares têm essa forte característica e princípios de defender a ordem do país e que para isto, poderia intervir no setor político brasileiro.

A autora discute que aliado aos princípios dos militares estava à direita e os conservadores moderados, que deram apoio ao que chamavam de “revolução” contra a luta de classe proposto pelo marxismo, contra os sindicatos e o avanço do comunismo. Nesse contexto, foi deflagrado o golpe de 1964. Após a concretização do golpe, ocorreram intervenções nas instituições através dos Atos Institucionais, no qual “tinham como justificativa a urgência do exercício do Poder Constituinte, posicionamento que segundo os responsáveis pelos governos militares fazia parte de todas as revoluções” (PELEGRINI, 2011, p. 31).

Segundo Pelegrini (2011), diante do Regime Militar em 1964 foram realizadas políticas educacionais em todos os níveis de ensino no Brasil. Devido esse contexto político, houve a criação de dispositivos que visavam legitimar tal realidade política. Esses dispositivos ocorreram através dos Atos Institucionais e das duas reformas educacionais que modelaram a forma como as escolas funcionariam.

Com esse cenário político estabelecido, a escola passou a desempenhar a função de formar cidadãos, discipliná-los e corrigir quaisquer erros ou desvios que sejam tidas como desordem na sociedade da época. Pelegrini (2011) analisa que esta função da escola está relacionada à cultura escolar, que também diz respeito às normas e práticas voltadas para questões que estão inseridas em determinadas épocas, sejam elas de esfera social, religiosa ou política.

Nesse contexto, o debate proposto por Pelegrini (2001) acerca da disciplina de Educação Moral e Cívica se faz necessário, devido ter sido desenvolvida no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora em que foi confirmado pela ex-diretora em seu depoimento, a qual visava à restauração da ordem, uma maior manifestação do patriotismo, o desenvolvimento do comportamento dos sujeitos voltados para o crescimento social e econômico do país. Esta disciplina esteve relacionada aos aspectos políticos, econômicos e socioculturais do período, pois contribuiu para constituição de um saber relacionado com o projeto de sociedade que o Regime Militar queria. Por isso, tal disciplina teve todo o aparato da legislação que lhe dava legitimidade para ser instaurada em toda esfera educacional do país.

Nesse sentido, houve a necessidade de intensificar a disciplinarização, tendo como alvo principal a população e a justificativa de segurança nacional como forma de dar subsídio para realização desses mecanismos. Houve diante desse cenário várias

32

medidas de repressão, pois a busca pela manutenção da vigilância sobre os alunos e a punição aos que desobedeciam era uma característica marcante do contexto da década de 1960 a 1980. Segundo Pelegrini (2011, p. 17), “a partir da disciplinarização dos corpos em um sistema minucioso de coerções materiais, buscou-se extrair a maior eficiência nos gestos e comportamentos”.

A disciplina de Educação Moral e Cívica foi um dos mecanismos de poder dos quais o governo militar se utilizou, tendo como objetivo diminuir as resistências as suas imposições governamentais e as formas de subversão que poderiam ocorrer no período. Implementou-se a necessidade de formação de sujeitos dóceis, obedientes e produtivos, no qual eles deveriam ser cidadãos que trabalhavam para o bem da nação.

Então, o conceito de doutrina se “difundiu no corpo social a partir do reconhecimento das mesmas verdades e da aceitação que os indivíduos tinham dela. Refere-se a um instrumento de manifestação e de pertença prévia” (PELEGRINI, 2011, p. 18). O conceito de verdade também estava inserido, por ser produzida em cada sociedade e que se mantém pelos seus discursos que legitimam a doutrinação, como por exemplo, o discurso de proteger a segurança nacional.

A autora supracitada analisou livros de Educação Moral e Cívica e a partir deles nos aponta que não havia a explicitação do autoritarismo dos governos militares, “pois a realidade da organização política nacional era apresentada nestes documentos e livros didáticos como democrática e constitucional” (PELEGRINI, 2011, p. 32).

Pelegrini (2011, p. 34) destaca que a promulgação do Decreto-Lei 869/1969 que instituiu a disciplina de Educação Moral e Cívica, tinha como objetivo disciplinar o estudante devido aos perigos de disseminação subversiva nos espaços escolares e universitários. Esta disciplina possibilitaria coibir a subversão e tornava a população mais patriota e nacionalista. Segundo a autora, “o ideário educacional suscitado pelas reformas educativas serviu aos governos militares como elemento reforçador da ideologia do desenvolvimento”.

A escola também passou por transformações, sendo reestruturada para que acontecesse a divulgação de ideias que favoreciam o Regime Militar, possibilitando sua sustentação e tornando-se mais um mecanismo de poder do governo militar. A utilização da EMC5 no currículo escolar teve como intuito a preservação da ordem. Em diversos momentos da história brasileira, o discurso de colocar ordem no país como

5

33

forma de criticar os governos anteriores, tornou-se algo a ser seguido e com esta disciplina seria concretizado tal objetivo em todas as escolas do país.

Destacando o período do nosso recorte temporal (1958-1980) a disciplina EMC esteve voltada para perspectiva da Segurança Nacional, que buscava prevenir os jovens brasileiros da influência subversiva comunista. Para isso, os jovens seriam educados nos caminhos que o governo almejava atingir. Segundo Pelegrini (2011), o decreto nº 58.023 de 1966 publicado pelo presidente Castello Branco traz as seguintes atribuições da EMC:

Formar nos educandos e no povo em geral o sentimento de apreço à Pátria, de respeito às instituições, de fortalecimento da família, de obediência à Lei, de fidelidade no trabalho e de integração na comunidade, de tal forma que todos se tornem, em clima de liberdade e responsabilidade, de cooperação e solidariedade humanas, cidadãos sinceros, convictos e fiéis no cumprimento de seus deveres (BRASIL, 1966, apud, PELEGRINI, 2011, p. 47).

Essa proposta deveria e foi aplicada em todos os graus de ensino e ao longo do governo militar foi tornando mais marcante. Nesse sentido, a disciplina tornou-se um mecanismo de poder do governo vigente diante da sociedade, produzindo sujeitos que aprenderiam a obedecer às normas e regras de uma sociedade autoritária.

Pelegrini cita o autor Andre Chervel (1990) ao discutir sobre as finalidades das disciplinas escolares, apontando para isso uma ordem sócio-política. Ou seja, tem “finalidades [que] marcam os objetivos da sociedade dentro de um contexto histórico específico” (2011, p. 49). Nesse sentido, as mudanças ocorridas na disciplina EMC se deram devido “às finalidades atribuídas à escola pela sociedade” (p. 51).

A disciplina conseguiu atingir essas finalidades, pois foram baseadas nos discursos dos militares de proteção nacional e de difusão de uma sociedade moralizadora, no qual a escola formava cidadãos disciplinados e adequados ao sistema político vigente. Ou seja, os cidadãos não criticariam o governo e se manteriam presentes apoiando o regime. Segundo Pelegrini:

Deve-se observar que a disciplina de Educação Moral e Cívica atendeu a finalidades de diferentes ordens, com grande ênfase aos interesses sócio-políticos definidos pelos governos militares, que resultaram na utilização da disciplina como mecanismo de controle e adestramento do corpo estudantil (2011, p. 51).

34

A autora discute que a disciplina apresenta características da presença religiosa, pois nos seus textos, conteúdos e materiais têm indícios religiosos que são defendidos pela Igreja Católica. O que deixa isso em mais evidência são os organizadores da disciplina serem ligados à Igreja Católica, ocupando cargos relacionados e entendendo que a moral está fundamentada na religião. Uma característica importante diz respeito aos que são designados para ministrar a disciplina de Educação Moral e Cívica, sendo preferencialmente para padres, freiras e militares.

A disciplina EMC estava presente e relacionada a outras disciplinas curriculares, com o intuito de formar os estudantes baseados nos princípios doutrinários do sistema político vigente. A área de Ciências Humanas foi mais presente nessa relação, por ser considerada uma área que poderia despertar nos estudantes questionamentos ao governo e levar a desordem e as atitudes subversivas.

É importante salientar que todas as medidas, os decretos, as leis e as diretrizes estavam sendo desenvolvidas no Regime Militar como se fossem atitudes de um sistema político democrático e não autoritário e repressivo. No entanto, eram consideradas uma infração todas as manifestações feitas contra o governo, críticas ou quaisquer formas de mobilização política. O movimento estudantil nesse contexto sofreu com perseguições, mortes e outras arbitrariedades por realizar resistência, críticas e lutas contra o governo vigente. Segundo Pelegrini (2011), o que ocorria era aceitação de manifestações que legitimasse o governo militar, do contrário, sofreriam com graves consequências.

Os docentes que ministravam essa disciplina eram formados em cursos de Estudos Sociais, cujo modelo da licenciatura era curto, sendo também muitas vezes desempenhado por pessoas que não eram docentes, mas que estavam ligadas com os princípios doutrinadores do governo. Segundo Pelegrini (2011), essas licenciaturas curtas mostravam que o governo estava mais voltado para o aspecto econômico, do que para uma formação solidificada e consistente. Quanto mais rápido terminar o curso, mais rápido esses educadores estariam inseridos no mercado de trabalho e consequentemente produziriam os ideais ideológicos que beneficiam o sistema político militar. Estes docentes estavam pouco preparados para sua função e acabavam por reproduzir o que estava nos livros didáticos e a enfatizar os aspectos do governo como, por exemplo, o civismo, o moralismo, a religiosidade cristã, entre outros. Segundo Pelegrini, a disciplina EMC tinha como “principal característica utilizar o poder disciplinar como forma de mecanismo de controle dos estudantes” (2011, p. 62).

35

Porém Pelegrini (2011) analisa que houve formas de resistência contra a EMC, e professores da própria disciplina a substituíram por História do Brasil e faziam, de forma sutil, críticas ao regime autoritário. Segundo a autora, “confirma-se, portanto, que apesar da grande pressão e repressão imposta pelo regime militar, o controle e a dominação não foram realizados de forma absoluta” (PELEGRINI, 2011, p. 64).

36