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Somos seres emocionais e todas as nossas percepções, sensações e experiências são carregadas por emoção codificada na imagem. O olhar é uma interpretação mediada pelos nossos conceitos, pelos nossos valores. É como um muro que se apresenta todos os dias com a mesma face, mas que pode mudar se assim desejarmos.

Durante o processo de pesquisa, a questão do corpo deficiente também ser um corpo eficiente, e vice-versa, foi um ponto que me levou a investir demasiada atenção. As constantes reflexões foram caracterizadas pelo desafio comum, que é o de contrabalançar o entrincheirado dualismo típico da sociedade ocidental. Esse assunto geralmente aborda discussões com amplas perspectivas, destacando o conhecimento empírico desenvolvido através do tempo, como vimos no item anterior, e refletindo sobre os desafios que se aproximam. O posicionamento aqui escolhido foi construído a partir da ênfase na conscientização e em um olhar apresentado do ponto de vista experimental da minha própria vivência com dançarinos com deficiência física. Não será uma revisão da literatura, que reúne autores de diferentes pontos de vista, mas a expressão da minha voz a partir de uma perspectiva em primeira pessoa.

Sempre tive um grande apetite por dançar e a grande parte de minha experiência no aprendizado de dança foi a partir da técnica clássica. Durante oito anos enveredei por essa linguagem. A priori, essa técnica cultivou em mim um corpo potente, performático e virtuoso,

34 embora calado. Durante alguns anos, em diferentes esferas da vida, me senti potencialmente confortável para chegar a um objetivo a partir de um caminho já estipulado como, por exemplo, movimentos, passos e/ou atividades que sejam organizadas sistematicamente por etapas. Porém, me sentia extremamente desconfortável em participar de dinâmicas em que se prezavam a criatividade, a construção de células de movimento e a conexão de sensações com expressões corporais.

O motivo de gostar tanto de dança e ter cursado a graduação em Educação Física foi devido ao fato dos meus pais não terem condições financeiras para custear os meus estudos fora da minha cidade natal. Isso me proporcionou uma graduação cuja maior parcela do curso enfatiza as potencialidades físicas do corpo pelo viés da fisiologia, da neurologia e da anatomia. Portanto, foi necessário para os meus delírios científicos e como um profissional do movimento, buscar um conhecimento complementar sobre a subjetividade do corpo, o qual minha graduação não me proporcionou.

No entanto, eu questiono se é devido ao fato de ter vivenciado uma educação do corpo de caráter conservadora, que me reprimiu para a criatividade e para um conhecimento subjetivo do corpo que eu me classificaria como uma pessoa deficiente dessas questões? Isso quer dizer que, de certa forma, posso me considerar uma pessoa deficiente para criatividade e para vivências poéticas?

Se considerarmos o conceito de deficiência pela falta, tenho a liberdade de me incluir aos exemplos usados por Bavcar para apresentar algumas deficiências contemporâneas como, por exemplo, o primeiro arquétipo bíblico, Adão, que

tornou-se, então, mortal: teria podido ser designado como deficiente existencial ou como inválido da eternidade paradisíaca. Mas também teríamos podido medir-lhe a deficiência recorrendo a percentagens, à semelhança das estatísticas contemporâneas. Também evocaremos decerto os deficientes bem concretos que eram os filhos mal nascidos dos espartanos, que eram rebentados contra os rochedos, e todos os que, de um ou de outro modo, foram vítimas das guerras ou do progresso tecnológico da Revolução Industrial. Bem entendido, seria muito difícil aplicar o termo a uma vítima do trânsito: deficiente do progresso tecnológico, com a menção da percentagem de sua deficiência (BAVCAR, 2003, p. 176).

Nesse sentido podemos dizer, então, que em Vidas Secas, Fabiano, sua esposa Vitória, os dois filhos, caracterizados por Graciliano Ramos (1892-1953) como “menino mais novo” e “o menino mais velho”, e, também, a cachorra Baleia que fogem da seca do interior de Alagoas são, bem entendidos, como deficientes nutricionais ou deficientes d‟água? Esses

35 exemplos me mostram características semelhantes às justificativas dadas pela história para classificar as pessoas com algum tipo de deficiência, que é determinada pela falta impressa de uma capacidade. No entanto, neste caso, não posso deixar de recorrer aos arquétipos dos corpos com deficiência mencionado no texto Deficiências (s/d)4 de Mario Quintana (1906- 1994) que nos explica que:

“Deficiente” é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive;

“Louco” é quem não procura ser feliz com o que possui;

“Cego” é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores;

“Surdo” é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, a um apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no final do mês;

“Mudo” é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia;

“Diabético” é quem não consegue ser doce;

“Anão” é quem não sabe deixar o amor crescer. E, finalmente, a pior das deficiências é ser miserável, pois: “Miserável” são todos que não conseguem falar com Deus.

Ao refletir sobre essas questões, chego à conclusão de que somos todos deficientes, porque sempre há algo que nos falta ou que não conseguimos fazer. É nesse sentido que, no contexto da dança, o corpo deficiente e o corpo eficiente, constituem um só corpo. Esse corpo se expressa em um palco de relações transformadoras: objetivo e subjetivo; calado e criativo. Em cada momento da vida, a manifestação de um desses corpos se faz mais presente. Não que sejamos ora um ou outro corpo, mas a maneira que vivenciamos o nosso corpo na dança transita entre as questões eficientes e deficientes de nós mesmos. Acredito que a manifestação social do termo deficiente seja uma ficção, causada pela imagem refletida do espelho da história tradicional, que não disponibiliza ferramentas suficientes para lidar com as diferenças de um corpo que se relaciona dinamicamente com aparentes opostos.

O uso do jogo de sentidos com os parênteses no termo (d)eficiente físico, usado no título deste trabalho é, também, uma abertura à transformação do termo. O que permite que o

4 QUINTANA, Mário. Deficiências. (s/d). Disponível em:

36 leitor visualize as possibilidades que existem, para se posicionar enquanto observador. Buscamos desconstruir uma lente que produz a visão estática do corpo com deficiência baseada na patologização, que se apresenta somente com uma faceta que visa o corpo como um objeto mecânico, deficitário de funções e por isso incapaz; e construir uma lente que abrange o corpo como um ser potencial, vívido e transformador da sua realidade. Visão, essa última, que se mostra diversificada e renovadora, pelo motivo de ser orgânica. Portanto, tudo o que é orgânico é corporal, é grandioso e incomensurável pelo simples fato de ser baseado na experiência.

Partindo do princípio da transformação, discorreremos a seguir sobre uma reflexão sobre alguns conceitos pertinentes a esta pesquisa. Conceitos como belo/grotesco; técnica/criação e corpo/mente, aparentemente opostos, que se mostram reciprocamente desafiantes e transformadores dentro do Anel de Moebius. Este conflito de polaridades é abordado por este trabalho através do arcabouço teórico–prático dos Fundamentos Corporais Bartenieff, buscando transgredir ideologias corporais. O resultado deste estudo estrutura-se exatamente a partir da multiplicidade, integrando elementos variados, até supostamente antagônicos, indo ao encontro de uma “poesia nova”. De acordo com ↑itor Hugo, a “poesia nova” opõe-se ao que considera como forma esclerosada do passado:

Contrário a todo formalismo literário, insurge-se contra a regra da separação de gêneros, pois „a arbitrária distinção dos gêneros depressa se desmorona diante da razão e do gosto‟ e prega uma poética da totalidade. Ao gênio cabe a tarefa de criar uma obra total, sem excluir qualquer que seja o elemento do real; representar o homem na sua total complexidade, iluminando-lhe „ao mesmo tempo, o interior e o exterior‟ (HUGO, 2007, p. 9).