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UM PROJETO E UM IMPASSE – RESIDÊNCIA ELZA BERQUÓ

Em meados de 1960, Vilanova Artigas é convidado a fazer um projeto de residência para uma amiga, a professora universitária Elza Berquó. Este projeto, cuja análise será realizada adiante, é nosso ponto de partida para a investigação que será empreendida nesta pesquisa, devido à importância e à riqueza das questões que se podem encontrar nela, relacionadas àquele momento político, bem como com os posteriores desdobramentos na produção arquitetônica do arquiteto.

Comecemos pelas questões de ordem política, que consideramos um ponto forte do projeto. Na ocasião do convite desta residência, Artigas estava, por conta da Ditadura Militar, sob inquérito policial-militar e aguardando o momento em que seria chamado para depor. Conforme o próprio Artigas:

“Elza me procurou para que eu fizesse uma casa para ela. Respondi-lhe dizendo: ‘você está louca! Estou sendo julgado pelo tribunal de segurança. A primeira seção vai ser depois de amanhã. Vou ser condenado. O que é que você quer, que eu faça um projeto de uma casa para você na cadeia?’ Mas você conhece a Elza, a robustez catastrófica... e fiz o desenho dessa casa meio como ‘arquiteto-presidiário’.”1

Na seqüência de seu relato sobre o ocorrido com este episódio da casa, Artigas emendou:

“Eu fiz com a intenção deliberada de pensar num nível pop, se vocês me permitem uma confissão, de tão bravo que eu estava com o golpe de 64. Nesse momento eu estava pendurado no cabide, estava com raiva de todo esse processo que acabei fazendo. A Elza nunca soube disso, mas eu fiz essa casa para ela com vontade de esculhambar com o diabo da situação política que nós vínhamos vivendo. E morto de medo, porque a gente se mete nessas coisas e depois diz: - ‘Meu Deus, por que eu fui fazer isso? ”2

1In VILANOVA ARTIGAS. A Função social do arquiteto. São Paulo, Fundação Vilano Artigas/Nobel, 1984. 2In ARTIGAS, J.B.V. Aula em Porto Alegre. 1981, apud CORRÊA, Maria Luiza. Da Idéia ao Desenho. São

Por fim, é importante ainda resgatar a explicação de Artigas sobre o sentido do caráter provocativo e o efeito irônico que o projeto carregava, bem como os mecanismos para se produzir tal efeito:

“É meu projeto de residência meio ‘pop’, meio irônico e eu gosto muito de vê- la sobre qualquer forma. São pedaços de troncos de árvores que apóiam toda a estrutura de concreto da cobertura. Mas o que é o avanço técnico! Danei a descobrir que era possível colocar laje de concreto sobre uma coluna de madeira e experimentei, pela primeira vez, na casa de praia de meu irmão Giocondo. Com o surgimento de um material chamado neoprene foi possível fazer com que a carga do telhado se distribuísse pela área da coluna e, dali, para as fundações. Mas fiz essa estrutura de concreto apoiada sobre troncos para dizer, nessa ocasião, que essa técnica toda de concreto armado, que fez essa magnífica arquitetura que nós conhecemos, não passava de uma tolice irremediável em face das condições políticas que vivíamos naquele momento” 3.

Nestes relatos algumas questões-chave aparecem. A Ditadura representava, para Artigas, um problema cuja abrangência não se restringe à perseguição polícia contra ele. De fato, o Governo Militar no combate aos seus opositores, estava cassando muitas lideranças logo nos primeiros anos após o Golpe de 1964. Artigas era filiado ao PCB, desde 1945, e estava, naquele momento, aguardando julgamento por parte dos militares. Mas, sobretudo, o projeto político que setores sociais, grande parte da esquerda e o Partido Comunista tinha para o país não encontrava eco no novo poder assumido. Mais do que isso, a Ditadura Militar representava para a esquerda um retrocesso econômico e político que comprometeria algumas supostas conquistas realizadas desde o segundo pós-guerra, atreladas à idéia de progresso e de modernização, que poderiam libertar a nação da sua condição de oprimida pelo imperialismo4. Esta interpretação, cuja importância está vinculada à articulação

construída entre a arquitetura e o desenvolvimento nacional, será discutida mais adiante. Passando agora às questões arquitetônicas, mais especificamente, o que transparece neste projeto é uma intenção de Artigas em articular um repertório formal arquitetônico com o objetivo de dialogar com este difícil momento político. Vejamos então, algumas características deste projeto:

O acesso à residência (figuras 1, 2 e 3) se dá de forma indireta, por meio da Garagem que fica no pavimento inferior, a partir da qual se alcança uma escada que leva à porta da frente, aproveitando o desnível do terreno. Por meio deste artifício de acesso indireto e não aparente à entrada principal, a fachada é problematizada, retirando-a do foco da entrada da edificação.

As paredes da residência não tocam a laje de cobertura (figura 19), um bom artifício para o problema das juntas de dilatação da estrutura e da laje, mas também uma possível

3 In FERRAZ, Marcelo Carvalho (coord.), Vilanova Artigas. São Paulo: InstitutoLina Bo e P. M Bardi /

Fundação Vilanova Artigas, 1997.

4 Ver em BUZZAR, M. A. João Batista Vilanova Artigas: Elementos para contribuição de um caminho

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intenção plástica que visa a dar uma expressão mais clara ao artifício da planta livre, isto é, Artigas mostra o princípio construtivo de forma a não deixar dúvidas quanto à escolha do tipo de partido estrutural. Nas paredes estão ausentes os rodapés5. Os cômodos se distribuem

de forma perimetral, ao redor de um pátio interno (figuras 9, 10 e 11), criando um átrio centralizado inundado de luz zenital. O fechamento dos cômodos, as paredes internas, é feito por painéis em gesso acartonado (dry-wall) contrastando com as paredes em alvenaria dos fechamentos externos.

A iluminação do ambiente interno é zenital (figuras 21 e 22). É curiosa a ausência de pontos de luz elétrica instalados no teto o que implica que toda a iluminação artificial da casa seja realizada por luminárias ligadas a tomadas nas paredes e não por interruptores que acionam lâmpadas no teto (figura 20). A tubulação de água está instalada de forma aparente no exterior da moradia e a caixa d’água compõe um volume retangular isolado na cobertura (figura 23).

A laje de cobertura (figura 4) é de concreto armado, compondo um bloco único com as platibandas, beirais e gárgulas (figura 6) também feitos em concreto, cuja textura deixa à mostra as marcas das tábuas, simulando lambris (figura 2). Apesar do desnível do terreno, a cobertura, com seus balcões (figura 5), contribui para ressaltar a horizontalidade do projeto.

No interior, a pintura das paredes na época da construção utilizava as cores primárias, posteriormente substituídas pelo branco pelos proprietários. O jogo criado com as paredes decora a residência através do uso de vários materiais como concreto aparente, tijolos a vista e tijolos pintados e da presença de recortes verticais e horizontais, alguns vazios (figura 10) e outros fechados por vitrais (figura 24). Este jogo explora ainda a criação de bancadas que servem de apoio para objetos vários. As entradas zenitais de luz, dispostas de forma assimétrica no teto (figura 21), trazem ao interior uma variedade de luzes e cores que enriquecem ainda mais a idéia de variedade na composição interna.

Parte do mobiliário é feita de concreto (figuras 15 e 16), mesclando a função de mobiliário com a função de paredes divisórias que acabam por estabelecer um contraste com os troncos de madeira existentes no interior.

Há um jardim no centro do pátio interno (figuras 9 e 12), iluminado também de forma zenital, e uma pequena fonte de água. O jardim é composto, desde o momento em que foi concluída a construção, por plantas exuberantes que junto com troncos de madeira formam uma pequena mata. Havia ainda um painel vazado (figura 9), sem utilidade aparente que corria por um trilho (figura 13) e cortava o pátio inteiro e um pedaço do jardim. Atualmente o

5 A explicação para isto, segundo a proprietária Elza Berquó, é que Artigas queria preservar um testemunho

histórico de como os pedreiros construíam naquele momento. Talvez a proprietária esteja se relacionando a vedação que o rodapé realiza das imperfeições deixadas pelos trabalhadores na execução da junção do piso com a parede. Ver Exposição Vilanova Artigas. São Paulo: Fau-USP/Documenta, 2003. DVD.

painel foi retirado, restando apenas o trilho. O piso é composto por uma variedade de materiais como pedra, ladrilhos, madeira e cerâmica (figura 13).

O que se destaca de forma mais latente no interior são os 4 apoios no centro da residência, as colunas feitas com madeira (os troncos descritos nos parágrafos anteriores) que, segundo Artigas, compartilham do peso da estrutura da cobertura com mais 10 outras em concreto armado. Todas as 14 colunas contêm nas duas extremidades uma camada de neoprene que permite o deslocamento natural das lajes (dilatação e retração) mostrando que não faltam no projeto soluções e experimentações tecnológicas. As colunas de madeira (tiradas do próprio terreno) não receberam nenhum tipo de tratamento manufaturado como aparelhamento, por exemplo. Estão implantadas preservando, na medida do possível, seu aspecto original com os troncos retorcidos e algumas ramificações – bem aparentes no centro da sala, dispostas de forma simétrica.

Quando observarmos o destaque que é dado para estas colunas de madeira (as únicas que se mostram) enquanto as outras de concreto estão escondidas nas paredes do restante da residência, somados a outros elementos como o painel sem função aparente e a variedade de pisos (madeira, pedra, cerâmica e ladrilhos) nos é revelado o caráter inusitado do interior da residência. Sem dúvida alguma, a inexistência de madeira no resto da estrutura que é exclusivamente composta por concreto armado como também os fechamentos que são compostos de tijolos, isto tudo acaba ressaltando a intencionalidade expressiva das colunas em madeira e do restante do interior. Quando vista em planta (figura 25), a casa revela mais um elemento curioso: três dos troncos estão apoiados sobre o piso da residência, enquanto o quarto se apóia diretamente no jardim interno. Todos estes dados projetuais sugerem um exercício de ruptura de esquemas racionais de construção arquitetônica, contrariando aquilo que seria esperável ou mais usual em cada escolha realizada.

Em síntese, usando um repertório “pop”, que na casa se manifesta de inúmeras formas, das quais destacamos o uso de uma miscelânea de materiais diversos (desde o piso aos troncos de árvore) e a presença de um painel sem função que cruza a sala por um trilho, o arquiteto acaba gerando um efeito semelhante à idéia de “colagem”. Voltando ao depoimento de Artigas, para ele o conteúdo crítico da residência justifica-se pela vontade de “esculhambar” e está baseado na adoção da arte pop como forma de expressão artística. Há aqui uma visão crítica que deixa claro que havia no momento da realização do projeto a intenção de Artigas (do artista) em criar tais efeitos, mostrando que tal visão estava diretamente relacionada com a realidade social, a “situação política” e com o a cultura do momento, a arte pop. Tanto a situação política quanto a arte pop eram registros importantes daquele momento histórico que Artigas intencionalmente quis transformar em componente de uma estrutura arquitetônica.

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Mas é necessário caracterizar melhor este pop que Artigas utiliza na residência, porque a julgar por seu depoimento, não fica claro. Não é exatamente aquele pop americano ou inglês. Ainda que se valha da colagem, ele não utiliza materiais e objetos de uma indústria cultural, ou de materiais que inundaram o mercado de bugigangas, ou de objetos fruto do stiling. Não realiza um diálogo direto com a questão da sociedade de consumo. Faz uso de materiais correntes sim, mas arcaicos, anacrônicos, num certo sentido populares, utilizado pela população de baixa renda, mas, sobretudo, materiais que questionam a produção industrial (racional, como ele dirá).Neste sentido, a linguagem “pop” que aparece no projeto é caracterizada por uma negação irônica a um certo racionalismo arquitetônico, o que parece ficar especialmente claro no uso do painel sem função bem no meio da sala, ou mesmo o uso da variedade de pisos e elementos decorativos, que compõem a “colagem”. O depoimento de Artigas sugere esta intenção de trabalhar a questão da racionalidade: “(...) esse conjunto de velhos ladrilhos cerâmicos se juntaram com outros restos de material que eu botei lá p’ra dar a impressão de nenhuma racionalidade”6.

Para além do que o próprio Artigas tenha dito com relação a esta obra, é possível concluir que por algum motivo há neste jogo de materiais e nas soluções espaciais uma clara tentativa de produzir efeitos contraditórios. Mas por qual razão? Por que a intenção de ironizar o racionalismo arquitetônico? Em parte o próprio Artigas já nos sugere uma resposta, o significado político deste projeto naquele momento. Mas seria só isto? Haveria outros projetos de sua autoria cuja expressão plástica tenha se manifestado desta forma? Quais os desdobramentos posteriores a esta obra?

São estas questões que procuraremos agora discutir mais detidamente.

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