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2. ACESSIBILIDADE AO AUDIOVISUAL: OS SURDOS, A TRADUÇÃO E AMBIENTES DE ACESSO

2.1 O PÚBLICO SURDO

2.1.1 Uma diversidade de visões

Toda classificação é uma forma de redução da complexidade relacionada à diversidade proveniente da combinação dos diferentes fatores que influenciam na constituição do sujeito surdo (TORREZ; MAZZONI; MELLO, 2007). Um filho surdo pode nascer em famílias de pais ouvintes, um filho ouvinte pode nascer em uma família de pais surdos, ou apenas sua mãe pode ser surda. O filho pode ficar surdo em uma família de ouvintes, sem contato anterior com questões relacionadas à surdez. A surdez também pode surgir antes ou depois da formação das estruturas de linguagem (SILVA; PEREIRA; ZANOLLI, 2007).

apesar de todas caracterizações apresentadas sobre cada grupo específico de surdos[ ..] há sempre o perigo imposto pela armadilha da generalização. Existem casos raros, que podem ser isolados ou pertinentes a certos grupos, no que se refere à forma de acepção do mundo pelo surdo. Havendo uma enorme variação de situações em que o surdo

pode ser bom em leitura labial, mas ruim na escrita, bom em sinais e bom na escrita, é muito difícil ainda, devido à escassez de pesquisas, estabelecer uma base mais resistente a respeito de cada caso específico. Portanto, aqui fica registrado o alerta a respeito das generalizações apresentadas (MELLO, 2001, sem paginação).

Para fins estatísticos, o IBGE (2010) define “deficiência auditiva” como a incapacidade auditiva que o sujeito encontra mesmo com o uso de aparelho auditivo, levando em conta a percepção do sujeito sobre sua audição. Esta podendo ser dividida em:

• Incapaz de ouvir (pessoa se declara totalmente surda);

• Grande dificuldade permanente de ouvir (pessoa declara ter grande dificuldade permanente de ouvir, ainda que usando aparelho auditivo);

• Alguma dificuldade permanente de ouvir (pessoa declara ter alguma dificuldade permanente de ouvir, ainda que usando aparelho auditivo) (IBGE, 2010, sem paginação).

Além dessa classificação, a caracterização da deficiência auditiva pode ser realizada tanto “em função do local de acometimento, quanto ao grau de privação sonora, em relação ao desenvolvimento da fala e pode ser classificada ainda como congênita ou adquirida” (SANTOS, 2008, p.4).

Existem diferentes visões também relativas à educação e formação dos sujeitos surdos, sua cultura e sua interação com o espaço conceitual formado pelo mundo dos ouvintes. Historicamente, o oralismo e a comunicação total podem ser apresentados como abordagens para compreensão do sujeito surdo e sua comunicação, porém estas abordagens não respeitam adequadamente a constituição sociocultural do surdo.

A cultura oralista, por exemplo, desconsidera a existência de uma cultura surda e afirma que o surdo, para sua inclusão na sociedade, deve ser fluente na língua oral e que sua expressão deve utilizar recursos como a verbalização, leitura labial e escrita.

Fazer uso da linguagem escrita significa, para os surdos, apropriar-se de um conhecimento social e cultural de grande amplitude. Essa apropriação se dá pelo diálogo entre diferentes linguagens sociais, diferentes discursos, na pluridiscursividade de enunciados e na multiplicidade de vozes. Isso pode tornar o surdo integrante da nação a que pertence, na medida em que, ao se apropriar da linguagem escrita em língua portuguesa, ele pode estabelecer e ampliar suas interações, negociar sentidos, trocar conhecimentos, inserir-se no mundo discursivo e produzir seus próprios enunciados (ARCOVERDE, 2006, p.257).

Um elemento representativo da cultura oralista é o implante coclear, que consiste num dispositivo eletrônico que pode ajudar a proporcionar algum sentido de audição de sons a alguém que seja profundamente surdo. O dispositivo consiste em uma parte externa que fica atrás da orelha e uma parte interna colocada cirurgicamente sob a pele. Em relação a este tipo de implante, existe um beneficio substancial na fala e no vocabulário quando a criança surda recebe seu implante antes da idade de dois anos e seis meses. Os benefícios aumentam com o tempo de uso e diminuem sistematicamente em relação à idade em que o implante foi realizado (HAYES; KESSLER; TREIMA, 2011). Porém a visão dos surdos sobre este procedimento e a inserção dos surdos na sociedade por meio da oralização é divergente, conforme afirma Wrigley (1996).

O ouvinte há de pensar que isto [a surdez] tem algo a ver com a ideia de ter estado doente, ou com o sentimento de perda, ou senso de culpa, pois, para o ouvinte, a surdez representa perda de comunicação, exclusão, banimento, solidão, isolamento. Para os surdos a explicação é totalmente diferente: alegar uma surdez de nascença significa não estar contaminado pelo mundo dos ouvintes e suas limitações epistemológicas de som sequêncial (WRIGLEY, 1996, p.39).

A oralização do surdo é uma abordagem que visa possibilitar ao surdo a comunicação com seus pares ouvintes, entretanto esta

abordagem não pode ser tida como a única alternativa para o desenvolvimento do sujeito surdo (SILVA, 2001).

Médicos, fonoaudiólogos, professores, familiares, muitos querem “desensurdecer” os surdos, anular sua existência como sujeitos surdos e junto com eles, anular suas línguas, sejam elas em suas formas sinalizadas ou escritas (BARROS, 2008, p. 17).

A abordagem da comunicação total, por sua vez, consiste numa estratégia que busca a integração do surdo por meio do uso de gestos e sinais, sendo fortemente influenciada pela cultura oralista. Ela visa desenvolver os processos comunicativos entre surdos e entre surdos e ouvintes, fomentando tanto os aspectos cognitivos quanto os linguísticos. Para isso utiliza todos os recursos que facilitem a comunicação, como o alfabeto datilológico, os sinais da língua de sinais, gestos e expressão corporal (GOLDFELD, 1997).

Na comunicação total o surdo está exposto a um conjunto de possibilidades comunicacionais, na perspectiva de facilitar a sua expressão. Contudo, a comunicação total não lhe propicia o ambiente linguístico adequado a um desenvolvimento da língua materna que permita a estruturação do pensamento. Esses contextos comunicacionais, por não oportunizarem o acesso à língua de sinais, não podem oferecer informações mais complexas e geralmente acabam restringindo-se a conversas mais concretas, em que as manifestações dos surdos tendem a ficar num nível mais elementar (SILVA, 2001, p. 53).

A comunicação total valoriza o papel da família no processo educativo da criança surda, definindo o surdo não como portador de uma deficiência, mas como sujeito que possui uma diferença sensorial que repercute em suas relações sociais e em seu desenvolvimento afetivo e cognitivo (SILVA, 2001).

Silva et al. (2007) ao estudarem famílias com filhos surdos constata que uma família de pais ouvintes optam pela educação de um filho surdo segundo a cultura de oralização, e encaram a surdez como

uma deficiência. Já filhos surdos de pais surdos tendem a ter uma educação bilíngue onde a surdez é encarada como uma mera diferença.

Existem diferenças entre as estratégias de leitura de ouvintes e de surdos com perda auditiva pré-linguística: surdos pré-linguísticos desenvolvem estratégias de leitura que focam primariamente em propriedades visuais ao processarem as palavras escritas, enquanto que os ouvintes baseiam-se nos constituintes fonológicos das palavras (MILLER, 2009).

Assim surge uma barreira para a leitura de textos por parte dos surdos pré-linguísticos, não originada a partir do déficit de leitura no nível léxico, mas sim pela eficiência no reconhecimento dos significados finais das palavras a partir de sua estrutura dentro do contexto de uma sentença, de modo que, apesar do uso de estratégias similares de leitura, ainda persiste a diferença do nível de leitura entre surdos e ouvintes (MILLER, 2009).

A respeito das diferentes fases linguísticas de crianças surdas, Lichtig, Couto e Leme (2008), em uma visão pragmática, constatam que

Pesquisas na área da surdez mostram que o desenvolvimento da forma e conteúdo da língua oral nas crianças surdas é mais lento do que em seus pares ouvintes. Em média, cinco meses do desenvolvimento da oralidade em uma criança ouvinte equivalem a um ano do desenvolvimento da criança surda, crianças estas consideradas como bem sucedidas em programas de intervenção fonoaudiológica (LICHTIG; COUTO; LEME, 2008, p.251).

Ao se analisar a dinâmica das famílias de surdos, Brito e Dessen (1999) afirmam que

faz-se necessário conhecer a dinâmica de funcionamento dessas famílias no período inicial após o nascimento da criança, ou após o evento que a tornou surda, e durante todo o processo de adaptação à nova situação, focalizando como evoluem as interações e relações entre a criança surda e todos os membros de sua família (Brito; Dessen, 1999, p.444).

Ao contrário do que se pensa, os surdos têm maior dificuldade de leitura na língua oral de seu país, porque esta funciona como segunda língua para eles, sendo a língua de sinais sua primeira língua. Essa visão bilíngue vem sendo absorvida vagarosamente, visto que o bilinguismo só começou a ser discutido a partir de 2002 com o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais [..] como a língua da comunidade surda do nosso país [..]. Na verdade, os surdos brasileiros ainda aprendem o português como língua materna, apresentando, por essa razão, baixa proficiência no idioma, principalmente no que diz respeito à leitura e escrita (ARAUJO, 2008, p.63).

É importante considerar que a formação inicial do sujeito surdo deve se basear em sua língua materna, aquela que está apta a perceber, para então partir para sua inclusão social. Nessa perspectiva, a comunicação total não considera adequadamente os passos iniciais da constituição do sujeito. Deste modo, a segunda língua, no caso o português, não pode ser aprendida se o surdo não tiver uma língua materna que já lhe tenha propiciado o desenvolvimento do pensamento (BAKHTIN, 1990).

O próximo tópico descreve a abordagem pela educação bilíngue, que considera a real natureza do sujeito surdo.