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CAPÍTULO 1 Educação, Teatro e Produção da Subjetividade

1.2 Pedagogia do ator e pedagogia teatral

1.2.1 Uma experiência no ensino formal – CASEB

Amar é agir. Victor Hugo

Para situar a possibilidade de articulação desses processos inventivos, que estão sendo apresentados, com e em um espaço formal, apresento parte do trabalho que desenvolvi no CASEB – Centro de Ensino Fundamental56.

Quando comecei a lecionar na Secretaria de Educação do Distrito Federal – SEDF, minha primeira inquietação foi: como lidar com a padronização das idéias,

                                                                                                               

55 Apesar de, no caso do Espaço 508, não se ter o objetivo específico de formar atores, o processo na maioria dos casos seguiu esse trajeto, mesmo contra a minha vontade. Se direcionava para esse lugar pelo ímpeto dos alunos/atuantes/criadores, como pode ser visto no link dos videoselfies https://www.youtube.com/watch?v=HjJ6boSyA8w

56A escola foi inaugurada um mês depois da inauguração de Brasília. A sigla refere-se à Comissão de Administração do Sistema Educacional do Brasil (CASEB), instituída por decreto em 1959, assinado pelo então presidente, Juscelino Kubitschek, e pelo ministro da Educação, Clóvis Salgado, com o objetivo de construir a rede física e manter o sistema de ensino da nova capital. A inauguração ocorreu em 16 de maio e as aulas tiveram início dias depois, em 19 de maio. Os primeiros professores foram selecionados em concurso público aplicado em todo o país. Os alunos eram filhos de parlamentares e de candangos. Até 2015 a escola mantinha a estrutura original do prédio e carecia de reformas urgentes.

das emoções e dos comportamentos? E porque a grande maioria dos estudantes copiavam tudo?57

Em 2000, ocupei uma vaga provisória no CASEB, escola situada na SGAS 909 sul, um endereço nobre de Brasília, o que a princípio afastava o medo, tão difundido entre os professores da rede pública de ensino do DF, de ir trabalhar em uma escola da periferia que geralmente tem menos recursos e um número de alunos maior por turma. “Você teve sorte!” era o que todos me diziam. Ao assumir o cargo de professora no CASEB, recebi 15 turmas, 15 diários, um número estonteante de quase 50 alunos por turma, um total de 739 alunos, que estavam divididos entre a 5º e a 8º séries do ensino fundamental, hoje 2o e 3º ciclos do

ensino fundamental. E isso era porque eu estava com sorte.

Cada turma tinha apenas uma aula de artes de 50 minutos por semana, tempo padrão destinado pela SEDF no ensino fundamental. Esse era o tempo que eu teria para desenvolver o conteúdo gigantesco proposto pelos novos PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais. Ao entrar numa das primeiras turmas, inesquecível até hoje, uma temível 8ª D, tive a certeza de que não conseguiria cumprir o meu dever. As turmas estavam sem aula de artes desde o início do semestre. Então, o horário destinado à disciplina era tido como a hora do recreio, um recreio incrível de 50 minutos. Eu também se tivesse 11, 12, 13, 16 anos adoraria um recreio de 50 minutos. Esse foi o meu primeiro desafio: conseguir que eles percebessem que eu estava ali, o que não foi nada fácil. A maioria dos professores já teve essa experiência e sabe que é comum. O primeiro encontro com uma turma tida como indisciplinada, difícil e até mesmo problemática mais parece uma queda de braço. Onde as partes se desafiam para ver quem vai de fato controlar a situação. Bom, passados longos minutos eu me descontrolei, bati com o apagador com força contra o quadro negro repetidas vezes e gritei – Silêncioooooo! Calem a boca por favor! E num pequeno espaço de silêncio que se fez, ouvi uma voz grave vinda lá de trás – Quem vai fazer calar? E se levantou da última cadeira do fundo da sala um rapaz forte, alto que já parecia um adulto e veio andando na minha direção. Assustada, eu subi na cadeira e gritei ainda com o                                                                                                                

57Ainda não era licenciada, mas com a escassez de professores de artes cênicas, a SEDF contratava os bacharéis aprovados nos concursos e assinávamos um termo de compromisso de obter a licenciatura. Que no meu caso foi obtida em 2006, após novo vestibular na UnB, na área de artes com Licenciatura plena e habilitação em teatro.

apagador em punho: - Eu vou fazer você calar!!!! Naquele momento a turma inteira soltou um – Uhuuu! Eu, mesmo com medo, mantive uma postura de batalha, ele riu, deu meia volta e disse para turma – Ihhh a professora é esquentadinha!!!E eu aproveitei o gancho e comecei a falar de teatro, interpretação, papéis que representamos todos os dias em diferentes situações.

É claro que aquela atitude não era a ideal e nem a esperada, mas na minha inexperiência eu não pensei, apenas reagi. Após esse episódio, eu ainda não tinha um silêncio reinante, mas já era possível me comunicar. Alguns alunos já me davam alguma atenção e, aos trancos e barrancos, acabei a minha primeira semana.

Eu estava em frangalhos. Eu tinha certeza de que essa profissão não seria para mim. Eu deveria fazer qualquer outra coisa menos lecionar. Eu tinha vergonha de ter perdido o controle. Não concordava com a maneira bruta e desrespeitosa como tinha reagido. Tinha medo de voltar, pois apesar da 8ª D ser considerada a pior turma, eu não tinha tido muita sorte com as outras 14 turmas também. Talvez, com exceção de duas 5ª séries A e B, que tinham alunos bem novos, entre 11 e 12 anos e que ainda eram, na sua maioria, bem curiosos.

Diante desse panorama estava decidida a desistir. Conversei com uma amiga mais experiente na educação (hoje a professora Dra. Sulian Vieira do Departamento de Artes Cênicas da UnB) e ela me disse para diminuir as expectativas, que eu estava me cobrando muito, que as coisas melhorariam, que eu tinha que acreditar que era capaz, que os alunos precisavam de mim, que em pouco tempo eu estaria tirando de letra os problemas cotidianos de uma sala de aula e que, apesar de aquela ser apenas uma vaga provisória, era possível fazer.

Bom, eu prossegui. Por uma série de motivos, segui. Permaneci mais de um ano nessa vaga provisória. Durante os dois primeiros meses, ministrava as aulas nas salas convencionais com mesas e cadeiras, e em algumas delas com as carteiras universitárias, mas me recusava a transformar as aulas de teatro em aulas simplesmente sobre a história do teatro.

Era difícil desenvolver algumas habilidades corporais propostas no conteúdo naquele espaço. Ao mesmo tempo, o desafio de elaborar aulas possíveis para um lugar inadequado e transformá-lo em adequado me estimulava. As fileiras tradicionais impunham uma rigidez, uma tentativa de ordem, um enquadramento.

Os exercícios começaram por essa exploração do espaço que não se limitava ao fazer. Eu os questionava sobre como se sentiam sem poder levantar, ou se virar para trás, ou ainda falar. Os alunos achavam tudo muito diferente. A pequena liberdade espacial que estávamos experimentado ia, aos poucos, mudando as relações dos grupos mais resistentes em relação às propostas.

Começamos a alterar o espaço físico. Sabemos que colocar as cadeiras em círculo, por exemplo, retira a hierarquia do grupo em relação a figura do professor e em relação aos próprios sujeitos do grupo. Com isso, não tínhamos mais o fundão e o gargarejo. Todos se olhavam. Tínhamos uma arena para algumas ações expressivas que começavam a ser possíveis. Coisas simples como fazer um pequeno movimento, ainda sentados, para diminuir a exposição. Os adolescentes tem muito medo da exposição ao ridículo. Uma roda de múltiplos de três onde cantávamos os números, e quando era um múltiplo de 3 a pessoa fazia um movimento e não podia falar o número. É um exercício de coordenação motora simples, mas que envolvia o grupo e fazia todos estarem em sintonia. Presentes naquele instante.

Ao final das práticas, discutíamos sobre a percepção de cada um, diferentes percepções. Era difícil para eles falarem. Eles tinham medo, vergonha. Eu solicitava palavras soltas e ia escrevendo no quadro. O que você sentiu? O que você viu que aconteceu? O que isso te lembrou? E aos poucos vinham as palavras: medo, vergonha, a gente tava todo mundo junto, concentração, parecia uma coisa só. E juntando essas palavras soltas, seguíamos com a discussão sobre teatro, o fazer teatro e o ver teatro.

Como era de se esperar começamos a atrapalhar outras turmas. O corredor conduzia o som como um amplificador, mas é difícil desenvolver o modo de expressão teatral apenas explorando o silêncio. E até tínhamos dias de silêncio, onde experimentávamos a câmera lenta por exemplo, como homens que desbravam a lua ou que mergulham no fundo do mar e lá podem respirar como se estivessem na terra e que não podem mover a areia no fundo dos pés, mas não era todo dia que era dia de silenciar. E não é possível silenciar todos os dias. Era bonito de ver. As vezes vinha uma gargalhada desesperada de vergonha, uma pausa e recomeçávamos.

Mas o fato era que a nossa aula perturbava. Havia uma sala na área de laboratórios que pertencia a outra professora de artes, mas não era permitido o uso por outro professor.

Depois de alguns meses de pedidos insistentes e com o aumento das reclamações dos outros professores sobre o barulho que fazíamos, consegui autorização para usar a sala, o que mudou tudo. Os alunos adoravam ter um lugar sem cadeiras. Poder tirar os sapatos, quer dizer, alguns tinham medo do chulé. Mas de qualquer forma percebi uma mudança no comportamento coletivo. Era como se agora eles estivessem tendo aula de teatro mesmo.

No segundo semestre, demos início a um trabalho de criação coletiva experimentando a dramaturgia pessoal. No início, partimos da prática com a tempestade de idéias, onde os alunos iam jogando palavras a partir das minhas provocações, e íamos agrupando essas palavras em blocos temáticos. A partir daí, os alunos se dividiam em grupos, segundo temas de maior interesse para cada um, e partíamos para a pesquisa. Os temas: violência, sexo e drogas foram os campeões de audiência em todas as turmas, mas como as palavras propostas por eles faziam parte dos temas, muitas outras questões atravessavam essas temáticas principais.

Os alunos se dividiram em grupos de 4 ou 5 integrantes. E tinham metas a cumprir a cada semana. Pesquisar a temática escolhida e trazer o trecho de um livro, ou de um filme, ou um poema; escrever um parágrafo inventado sobre o tema, acrescentando alguma coisa real sem que os outros precisassem saber o que era real ou ficcional; entrevistar alguém da família sobre o assunto. Essa proposta gerou uma grande empolgação. A realidade da escola comportava casos de gravidez em meninas de 13, 14 anos, casos de uso de drogas nas mediações e dentro da escola, casos de agressões entre alunos da escola e entre os alunos da escola e da escola vizinha, o Proem58, e ainda casos de violência entre alunos e professores. Além disso, a realidade que ia aparecendo nos relatos pessoais, também apresentavam indícios de violência doméstica, abusos e contato com a criminalidade em geral.

                                                                                                               

58 Proem – Promoção educativa do menor localizada na SGAS 909 sul atrás do CASEB. É uma instituição escolar da Secretaria de Educação do DF, que oferece o ensino fundamental para estudantes carentes e com defasagem em idade e série entre 11 e 18 anos de idade.

Era duro lidar com essas tragédias cotidianas, mas essa experiência me aproximou muito da grande maioria dos alunos e ampliou a discussão em sala de aula sobre a ética nas relações pessoais, políticas públicas, cidadania, direitos e deveres do cidadão, justiça, tragédias gregas, dramas burgueses. Enfim, uma gama de temas transversais diversos, que serviam de ponte para tratar objetivos específicos do PCNs, por exemplo, como compreender a cidadania como participação social e política; posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva; perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente; e questionar a realidade formulando problemas e tratando de resolvê- los. E tudo isso, advinha da própria curiosidade e do inconformismo dos alunos com as situações que eles estavam investigando.

Os alunos iam amadurecendo suas propostas, todas muito diferentes entre si. Apesar da maioria, no início, apresentar um formato bem parecido com a estrutura das novelas televisivas, muitos também ousavam ir além e compunham estruturas em que o público fazia parte do jogo, ou na qual a música conduzia a narrativa, ou ainda, ações performativas nas quais as palavras eram completamente substituídas por imagens e por movimentos.

Apesar dessas estruturas já nos anos 2000 nos parecerem comuns, haja vista os movimentos estéticos que ampliaram a linguagem cênica em diversas direções, principalmente em direção a uma cena mais performática, esses alunos com raras exceções, não iam ao teatro, não viam teatro e não sabiam o que era teatro. Mas sim, estavam contaminados pela linguagem do vídeo-clip, do rap e da cultura de rua59.

Fizemos algumas leituras de pequenos textos dramáticos e poéticos ao longo do processo, mas a opção pela escrita pessoal, apesar da resistência inicial, acabou por abrir espaço para uma aproximação entre os alunos, o que propiciou a realização de diversos procedimentos de criação coletiva, que motivaram a maior parte dos envolvidos.

Dentre os 739 alunos, das 15 turmas com as quais trabalhei, apenas cinco alunos recusaram-se a participar de todo o processo, que culminou com o compartilhar de seus exercícios com outros coletivos (turmas) .

                                                                                                               

59 Hoje ainda conta-se com a Internet que além de fazer parte do universo da maior parte das escolas do DF, também encontra-se nos celulares, apêndices quase que inseparáveis dos jovens brasileiros.

Essa prática pedagógica, realizada num espaço de educação formal, apesar de ter sido cheia de percalços, me faz refletir sobre a importância da atuação do professor de teatro. A importância de sua autonomia para poder direcionar sua pedagogia em relação às condições dos grupos que encontra; da necessidade de ter sua prática docente entendida num contexto diferente de outras práticas, já que seu objetivo, como sabemos, não pode limitar-se a abordagens históricas conteudísticas. É preciso efetivar o encontro dos sujeitos. É preciso reestabelecer o lugar da invenção para esse aluno (qualquer ser humano exposto à uma pedagogia teatral em qualquer espaço) que apesar de não pensar em teatro, não ir ao teatro, não querer ser ator, nem querer se expor, pode construir sua emancipação e senso crítico, estético e ético e no mundo, a partir de uma prática artístico-pedagógica desenvolvida com responsabilidade, com simpatia e com tempo e espaços adequados.