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Uma “guardiã exemplar” das tradições de Penha Garcia

Capítulo 3 O percurso de detentoras da tradição na transformação da cultura local

3.3 Catarina Sargenta: Uma “líder secreta”

3.3.1 Uma “guardiã exemplar” das tradições de Penha Garcia

Uma das questões mais recorrentes quando se trata da importância que Catarina Chitas atingiu e da influência que exerceu em Penha Garcia e em Portugal é o porquê de ter sido selecionada de entre muitas outras adufeiras. O que teria de especial? As suas capacidades de memória e de ―improvisação‖, repetidamente referidas pelas pessoas que lidaram diretamente com ela, poderão ser respostas a esta pergunta.

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Flávio Pinho, autor do livro O Cancioneiro Musical de Penha Garcia (2011) ressalvou como principais características de Catarina Chitas a memória e a interpretação, salientando que a combinação entre as duas a tornava a ―informante ideal‖, na sua perspectiva,

Grande parte das gravações foram feitas com a ‗ti‘ Catarina Chitas por uma razão simples, é que ela tinha uma memória fantástica, memória e intérprete, ou seja, ela era aquele tipo de informante que é o ideal para qualquer pessoa. Por um lado tinha um conhecimento da cultura da aldeia fantástico e depois era uma intérprete fabulosa. Portanto tudo isso se conjugava para que ela fosse digamos a pessoa ideal tanto em relação à música como às tradições e à história da aldeia e tudo isso (entr. Pinho 2015).

Por sua vez, os eruditos locais - Mário Pissarra e Américo André -, referem outras qualidades, tais como o facto de ter uma voz fora do vulgar, o que a destacaria das outras adufeiras de Penha Garcia, e a sua espontaneidade ou capacidade inventiva, ―ela tem coisas inéditas dela que são quadras dela e a música foi ela que a pensou e inventou sendo analfabeta, não sabia escrever uma linha‖ (entr. Pissarra 2015). Por sua vez, conterrâneas sustentam também essa faceta. Por exemplo, Isabel Rodrigues assegurou que ―Se a ―ti‖ Chitas estivesse aqui já estava a fazer umas quadras ao menino‖ (entr. Rodrigues 2014), enquanto que Helena Marques, um elemento do Rancho Folclórico de Penha Garcia, revelou que ―era muito raro ela cantar uma música e passado 3 ou 4 dias cantar a mesma música igual, ela não conseguia porque ela ia improvisando, ela ia inventando‖ (entr. Marques 2015). Este modo de afirmação da sua individualidade, a capacidade de construção a partir de modelos pré-existentes, comummente designada como repentismo e improvisação musical, foi também salientada pelo jornalista do jornal Se7e que acompanhou o processo de edição do disco Banda do Casaco com Ti Chitas6 [Catarina Chitas] ―Ouviu a Né Ladeiras. Uma e outra vez. Depois... bem, depois, enfrentou a tecnologia de um estúdio de

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Banda do Casaco Com Ti Chitas (CNM477CD) foi editado em 1984 e tem a participação de músicos como Nuno Rodrigues, Concha, Celso de Carvalho, José Moz Carrapa, Ramón Galarza, Zé Nabo e Ti Chitas. Mais tarde foi reeditado, em 1993, com mais uma música, ―Matar Saudades‖ onde participou Né Ladeiras.

Catarina ―Chitas‖ participa nas músicas 1- ―Consilação‖, 6- ―Nossa Sinhora D‘Azenha‖ e 9- ―Salvé Maravilha II‖.

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Lisboa, ―headphones‖ nas orelhas, fez harmonia e um novo ―Salvé Maravilha‖ (Se7e, Abril 1984 12). Este testemunho é assim revelador da capacidade ―mutável‖ desta adufeira e cantadeira que é referida pelos seus conterrâneos, eruditos locais, estudiosos ou músicos, tanto de Penha Garcia como de fora. De acordo com entrevistas e conversas informais no terreno, foi revelada outra qualidade não menos importante que destacaria Catarina ―Chitas‖ das outras adufeiras e cantadeiras da altura, para além do seu timbre distinto e da sua capacidade inventiva. A sua colaboração, acolhimento e abertura relativamente às pessoas que acorriam à sua residência em Penha Garcia eram reveladoras desta faceta distintiva relativamente a outras. Nas palavras do erudito local o professor Américo André:

A Catarina Chitas tem uma diferença, tem uma voz muito feminina, um timbre muito baixinho, depois tem essa capacidade de criar, mas aquilo que a marcava era também a postura pessoal, de estar sempre disponível e bem-disposta, se fosses agora lá ela levantava-se da sesta, recebia-te, atendia-te, não te levava nada(entr. André, Julho 2015).

Catarina Chitas foi reconhecida enquanto detentora da tradição – como guardiã exemplar da memória coletiva de práticas de matriz rural cultivadas em Penha Garcia, nas palavras atrás citadas de Flávio Pinho – e paralelamente enquanto pessoa capaz de afirmar a sua individualidade e criatividade e de responder diferentemente às distintas interações com outros músicos e aos desafios implícitos, na acepção de Edward Hall, da participação musical. O caso de Catarina Chitas é revelador de uma apropriação dinâmica da tradição, ou seja, de um saber de um modelo pré-existente, que, conforme refere Lortat-Jacob (1987 cit. in Barriga 2003) é acionado diferentemente a cada novo presente. De acordo com este autor, o ―músico é mais do que qualquer outro confrontado com os problemas do factor tempo, que o obriga a reproduzir música no momento‖ (Ibidem). Os testemunhos atrás citados, reforçam a ideia que Catarina Chitas tinha uma capacidade de adaptar a novas circunstâncias os seus conhecimentos musicais – o que lhe era familiar - e que com ela a ―tradição‖ foi algo dinâmico, algo que pode ser reativado diferentemente em cada novo contexto performativo. Jean During sublinha esse dinamismo quando fala da improvisação, dizendo que

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esta competência reforça a ―afirmação da individualidade‖ e a ―criatividade‖ (During 1987 cit. in Barriga 2003 73). Sustentada nos estudos de Jean During, Maria José Barriga reforça a importância da apropriação de ―modelos pré- existentes‖ no momento da improvisação (Barriga 2003). Esta competência é, segundo During, ―valorizada entre um público‖ e, ―um factor de promoção social‖, facto que também acaba por acontecer no percurso individual da adufeira ―ti‖ Chitas. As pessoas que conviveram diretamente com Catarina Chitas destacam assim o modo criativo como explorava o repertório tradicional.