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2.2 IURD: um reflexo da contemporaneidade

2.2.2 Uma igreja Hipermoderna?

Há várias teorias a respeito do tempo presente, da era em que vivemos. Pós-modernidade (LYOTARD), modernidade líquida (BAUMAN), ultramodernidade, ou mesmo modernidade como processo inacabado (HABERMAS), dentre outras tentativas. Cada uma delas objetiva esmiuçar as características desse período que, pelo menos nisso parece haver certa concordância, difere-se substancialmente do período da história denominado Modernidade.

Por outro lado, conforme afirma Paulo Dario Barreira (1999, p. 185), não há divergências acerca do que representou a Modernidade para as sociedades ocidentais. Segundo o pesquisador, especificamente após a revolução industrial, há uma “ruptura radical” entre um perfil de sociedades tradicionais (nas quais a vida em todas as suas esferas fundamentava-se e encontrava sentido a partir da orientação religiosa) para um tipo de sociedade baseada na racionalidade humana. Dentre os fatores que contribuíram para que as sociedades caminhassem nessa direção, estão o surgimento e expansão do protestantismo – sobretudo o luteranismo e o calvinismo – este último com seu pensamento religioso fortemente mundano (intramundano, como diria Max Weber) e a ascensão do capitalismo.

Acerca desse período atual, contudo, há diversos questionamentos e alegações. Dentre esses, alguns pensadores afirmam uma ruptura com a Modernidade enquanto outros, por sua vez,

acreditam que esse tempo é caracterizado especialmente pela radicalização (GIDDENS, 1991, 1999) ou exacerbação das características da Modernidade (LIPOVETSKY, 2004).

Nesse sentido, o filósofo Gilles Lipovetsky tem sua contribuição, argumentando em favor da ideia de transição na qual há tanto ruptura quanto continuidade, sobretudo de uma continuidade maximizada de grande parte das características da sociedade Moderna; para tanto, o estudioso prefere usar o termo Hipermodernidade ao se referir aos tempos hodiernos. Como já mencionamos acima a respeito da ideia de exacerbação, o prefixo “hiper” pretende justamente apontar para esse aspecto.

Para Lipovetsky, contudo:

Longe de decretar-se o óbito da modernidade, assiste-se a seu remate, concretizando-se no liberalismo globalizado, na mercantilização quase generalizada dos modos de vida, na exploração da razão instrumental até a "morte" desta, numa individualização galopante. Até então, a modernidade funcionava enquadrada ou entravada por todo um conjunto de contra- pesos, contra-modelos e contra-valores. O espírito de tradição perdurava em diversos grupos sociais: a divisão dos papéis sexuais permanecia estruturalmente desigual; a Igreja conservava forte ascendência sobre as consciências; os partidos revolucionários prometiam outrasociedade, libertação do capitalismo e da luta de classes; o ideal de Nação legitimava o sacrifício supremo dos indivíduos; o Estado administrava numerosas atividades da vida econômica. Não estamos mais naquele mundo (2004, p 55).

O processo de secularização, resultante dos valores apregoados pela Modernidade, chega a seu ápice nas sociedades ocidentais. Encerrando à vida privada valores tradicionais antes sustentados por nações inteiras. Não que o tradicional, o religioso, em especial, tenha desaparecido. Ao contrário, a privatização de determinados aspectos da vida cotidiana antes tomados como públicos e de senso comum favoreceu que pululassem as mais diversas crenças religiosas, uma vez que a hegemonia da religião cristã, notadamente a Igreja Católica e o protestantismo, deixa de existir.

É nesse contexto que se dá o surgimento das denominações neopentecostais, nas quais se pode notar os elementos que Lipovetsky aponta como sendo típicos desses tempos

hipermodernos. Em outras palavras, igrejas moldadas para atender ao padrão consumista resultante de uma economia global capitalista, fortemente utilitária, individualista (acima de tudo o bem-estar do indivíduo), de valores e busca efêmeras, cuja flexibilidade e superficialidade dos vínculos e relações parecem permear a sua existência.

Dentre as várias considerações já feitas a respeito do êxito da Igreja Universal no Brasil e em determinados países estrangeiros, talvez o mais importante seja reafirmar que ela pode ser vista como um empreendimento religioso que se comunica com seu tempo. É claro que no geral, suas crenças não revelam nada de muito novo em termos de religião, posto que sustentam dogmas tradicionais do cristianismo conservador. Mas a transposição de suas crenças para a vida cotidiana, e os discursos a respeito delas, apresenta-se como uma reedição de velhas narrativas, que, entretanto, estão de total acordo com o espírito do tempo.·.

Em outras palavras, o neopentecostalismo iurdiano em geral oferece uma forma de religião cristã, oriunda do protestantismo, mas que põe Deus à disposição do indivíduo e as demandas geradas pela sociedade de consumo. Portanto, a IURD oferece-se como solucionadora dos maiores anseios da mulher e do homem deste tempo: as curas acontecem em dias específicos da semana, devem ser imediatas, a saúde e bom emprego não podem faltar ao crente e à crente fieis e, por fim, dentre tantas necessidades prementes que precisam basicamente ser atendidos de imediato, a satisfação emocional, leia-se, da vida amorosa.

Ricardo Mariano chegou a referir-se às práticas da IURD em termos de “institucionalização da magia”, poderia, entretanto, ter dito “mercantilização da magia”. A razão para tal afirmação, os pastores ensinam seus fiéis a manipularem o poder divino através de rituais, práticas e palavras de poder. Quando a IURD surgiu com a famosa frase “colocar Deus na parede” e outras igrejas neopentecostais, como a Internacional da Graça, por exemplo, seguiu seus passos falando sobre “exigir” de Deus, com base em seus Direitos, inaugurou um novo perfil de espiritualidade entre os evangélicos. O poder de Deus em favor das demandas do século XXI.

O antropólogo Wagner Gonçalves da Silva, ao comentar esse aspecto da IURD, aponta para a substituição do conceito de Graça – de fato, um conteúdo teológico caro ao protestantismo, segundo o qual tudo o que é concedido ao devoto o é pela vontade absoluta de Deus, e não por critérios de merecimento – por uma expressão religiosa com ares jurídicos, de barganha. Em certo modo um “toma lá, dá cá”, no qual o fiel contribui (em geral) financeiramente e, fundamentado nessa ação, exige que Deus cumpra sua parte. Esse conteúdo é encontrado nas

pregações de diversas igrejas neopentecostais e, também, no famoso livro O perfeito Sacrifício, de autoria do Bispo Macedo; também em Exija seus Direitos, de autoria de R.R.Soares.

As palavras a seguir refletem o pensamento de Edir Macedo a respeito da vida de um cristão genuino,

Todas as conquistas da vida têm o preço do sacrifício. Tudo tem o seu preço. Se o objetivo que eu quero alcançar é muito alto, então alto também será o preço do sacrifício que terei de pagar. Quanto maior é a conquista, maior também será o sacrifício para consegui-la (2001, p. 22).

Já R.R. Soares, vai além, afirmando que a palavra “pedirdes”, no texto bíblico que diz “E tudo quanto pedirdes em meu nome, isso farei, a fim de que o Pai seja glorificado no Filho”, de João 14:13, fora traduzida erradamente, pois deveria ser entendida como “exigirdes” ou “determinardes” (2000, p. 42). Para Soares, "continuar orando, pedindo, suplicando por algo que já é seu é declarar que a Palavra do Senhor pode não ser a verdade" (2000, p. 45). Diferente dos primeiros pentecostais, que exortavam uns aos outros a fim de suportarem resignadamente o sofrimento desta vida, sugere que tal sujeição pode dar lugar ao diabo (2000, p. 78).

A combatividade desses termos (exigir, determinar, pagar o preço) reflete a gana de uma sociedade sujeita aos valores do capital, na qual a agressividade e perspicácia na busca pelo sucesso impõem-se como fundamental. E, diante disso tudo, convém lembrar das palavras do teólogo R. Niebuhr, quando afirmou que “a vida religiosa é tão entrelaçada com as circunstâncias sociais que a formulação da teologia é necessariamente condicionada por elas” (1992, p. 18). Nessa sua declaração, Niebuhr contribui a fim de que estudioso algum se deixe levar ingenuamente pela ideia de que as transformações e posturas assumidas pelas religiões se deem meramente por questões de convicção teológica, sendo profundamente necessário conhecer e avaliar o tempo e lugar em que tais posturas passam a ser sustentadas.

Isso posto, não é de se admirar que em um período de grandes transformações sociais, econômicas, culturais, uma denominação evangélica como a IURD encontre êxito em suas atividades. Na verdade, encontra um terreno existencial propício para sua implantação, crescimento e, talvez, até estabilização – em um cenário de rápida transformação e criticamente mutante, portanto instável.

De um lado, o processo de racionalização faz diminuir cada vez mais a ascendência da religião sobre a vida social; de outro, ele, com seu próprio movimento, recria exigências de religiosidade e de enraizamento numa “linhagem crente”. Também aqui, evitemos identificar as novas espiritualidades a um fenômeno residual, uma regressão ou arcaísmo pré-moderno. Na realidade, é do próprio interior do cosmo hipermoderno que se reproduz o religioso, na medida em que esse cosmo gera insegurança, confusão referencial, extinção de utopias seculares, ruptura individualista do vínculo social. No universo incerto, caótico, atomizado da hipermodernidade, cresce também a necessidade de unidade e de sentido, de segurança, de identidade comunitária - é a nova chance das religiões. De todo modo, o avanço da secularização não leva a um mundo inteiramente racional em que a influência social da religião declina continuamente. A secularização não é só a irreligião; ela é também o que recompõe o religioso no mundo da autonomia terrena, um religioso desinstitucionalizado,subjetivado, afetivo (LIPOVETSKY, 2004, p. 55).

É importante destacar aqui o termo “desinstitucionalizado”, visto que não se aplica às igrejas neopentecostais. São elas rigidamente organizadas, possuindo uma estrutura institucional muito bem definida e engendrada. Apesar disso, apresenta uma grande flexibilidade em sua relação com a membresia, de modo que alguns até cheguem a dizer que não possua um rol de membros sólido8. Assim, diferente das igrejas pentecostais clássicas, o trânsito (entrada e saída) de fiéis é constante. Por isso, é plausível que, para encarar o aspecto precário dessa realidade – o trânsito religioso –, a IURD lance mão de práticas sincréticas, dentre outros recursos, a fim de atingir o maior número possível de pessoas.

8 Apesar disso, pode-se notar, mais nos últimos anos, uma tentativa da IURD de apresentar uma

membresia que teria passado por diversas fases da igreja (pratas da casa). O que pode caracterizar um período de transição da igreja, na qual busca consolidar-se enquanto instituição possuidora de tradições e raízes sólidas, o que, sabe-se, conferiria a ela mais respeitabilidade social. Outros aspectos sustentam essa tese, como, por exemplo, a construção, no Bairro do Brás, do Templo de Salomão, ou as literaturas biográficas acerca da trajetória de Edir Macedo (O Bispo, história revelada de Edir Macedo; e a série em vários volumes Nada a Perder). Com o avanço da idade de seu líder-mor, parece haver uma tentativa deste de transmitir, de modo explícito, um legado objetivo aos seus herdeiros espirituais. Pode-se encontrar nesse endereço eletrônico testemunhos de bênçãos de membros e obreiros que aderiram a IURD em seus primórdios: <http://www.arcauniversal.com/noticias/obreiros/noticias/prata-da-casa-testemunhos- de-fe-e-perseveranca-dos-primeiros-membros-da-iurd-9496.html> Visitado em 25 de agosto de 2013, às 12h30min.

E no Brasil, assim como na América Latina em geral, não apenas encontra um solo fértil para tal especificidade como também beneficia-se do espírito dessa época (já analisado aqui anteriormente), isto é, um tempo marcado pela fluidez dos valores e crenças; de uma sociedade utilitarista orientada em boa parte pelas diretrizes do capitalismo selvagem, segundo as quais pouco importa o conteúdo e a origem dos bens oferecidos, desde que sejam funcionais. Nesse sentido, para os fieis torna-se bem menos importante a forma e a procedência dos elementos contidos nas mensagens dos bispos e pastores neopentecostais do que o resultado satisfatório que essas podem lhe conferir.

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