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Uma palavra sobre a ideia de contratualização da função pública

2 JANELAS PARA A INTERFERÊNCIA NA LIBERDADE PROFISSIONAL

2.2 RENÚNCIA À LIBERDADE PROFISSIONAL PELOS AGENTES PÚBLICOS

2.2.1 Uma palavra sobre a ideia de contratualização da função pública

Segundo Thomas Kuhn159, o autor que trouxe o termo “paradigma dominante” para o campo científico, a ciência normal trabalha com a ideia de quebra-cabeças, esclarecendo-nos, com essa ilustração, como acontece o processo de solução de problemas pela ciência normal (a ciência do dia a dia), que se traduz em encaixar de forma exitosa160 cada peça do jogo, com obediência às regras postas pelos adeptos do paradigma dominante, com isso sem qualquer preocupação em dar chance para sua alteração ou inovação161.

Ocorre, porém, que, por vezes, aparecem ruídos na aplicação do processo subsuntivo dos problemas ao paradigma dominante, o que acaba por relativizar o

158Ibidem., p. 127.

159KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5. ed. São Paulo: Editora

Perspectiva,1998.

160 “Pelo menos para os cientistas, os resultados obtidos pela pesquisa normal são

significativos porque contribuem para aumentar o alcance e a precisão com os quais o paradigma pode ser aplicado.” Ibidem., p. 58.

161 “[...] o objetivo da ciência normal não consiste em descobrir novidades substantivas de

encaixe perfeito das peças do quebra-cabeças. Surge o que Kuhn denomina de anomalia, ou seja, as peças que outrora se encaixavam perfeitamente, de repente passam a não se amoldar mais, gerando assim uma crise no modelo existente162, que é um antepasso para o surgimento de um novo paradigma dominante.

De qualquer sorte, se tal se vê nas ciências “duras” como, por exemplo, a física, temos que a ciência do direito não trabalha com paradigma dominante nem com reviravoltas extraordinárias do tipo copernicanas, lidando bem com uma convivência de paradigmas, que não se excluem reciprocamente, funcionando, ao revés, em ritmo de comunicação e colaboração, que é o que se verifica nas ciências humanas e sociais163.

Alguns autores brasileiros, a exemplo de Florivaldo Dutra de Araújo164, Juliana Brina Corrêa Lima de Carvalho165, Luísa Cristina Pinto e Netto166 e Luís Henrique Baeta167, têm apresentado críticas ao velho paradigma que concebe a relação servidor-Estado sob os auspícios exclusivos da teoria estatutária, fazendo-o com invocação ao direito da função pública, ramo do Direito Público, os efeitos libertários e reconstrutivistas do Estado Democrático de Direito.

Na teoria estatutária ou unilateralista, a relação servidor-Estado é toda regulada pela lei, desde a formação do vínculo, que dispensaria a autonomia privada do agente, passando pelo regime jurídico, seus direitos e deveres.

162 “Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível

este será como indicador de anomalias e, consequentemente de uma ocasião para a mudança de paradigma.” KUHN, op. cit., p. 92.

163SILVA FILHO, Dermeval Rocha da. A Ciência do Direito e Thomas Kuhn. Revista

Pensamento Jurídico. São Paulo, n. 11, p. 282-302, jul-dez/2017.

164ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Conflitos coletivos e negociação na função pública:

contribuição ao tema da participação em direito administrativo. 1998. 462 f. Tese (Doutorado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

165CARVALHO, Juliana Brina Corrêa Lima de. A natureza contratual do vínculo entre o

servidor público e o Estado. Revista Jus Navigandi. Teresina, ano 10, n. 713, 18 jun. 2005. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/6859>. Acesso em: 02 abr. 2017.

166NETTO, Luísa Cristina Pinto e. A contratualização da função pública: da insuficiência

da teoria estatutária no Estado Democrático de Direito, 2003. 304 f. Dissertação (Mestrado em Direito Administrativo) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

167BAETA, Luís Henrique. Consensualismo e tutela de diretos: críticas ao modelo estatutário

do direito da função pública. Revista do Caap, Belo Horizonte, v. 1, n. 1 (2008). Disponível em: <https://revistadocaap.direito.ufmg.br/index.php/revista/article/view/10>. Acesso em: 04 abr. 2017.

De outro lado, os defensores da ideia de contratualização no serviço público, sem pregarem o afastamento da reserva legal (inclusive nas questões essenciais) e de outras manifestações unilaterais do Poder Público, sustentam que há uma considerável presença da vontade do agente na formação e execução do labor prestado ao Estado, a qual não pode ser desprezada168. Enfim, não enxergam diferenças substanciais entre um contrato de trabalho e uma relação “estatutária”.

Essa parte, ainda que ao longe, é o que nos interessa como pano de fundo para esta dissertação.

Não vamos enveredar nesse debate da contratualização da função púbica aqui – a referência é apenas para entendermos um pouco o contexto remoto de algumas de nossas reflexões nesta obra –, mas julgamos importante trazer um resumo das principais ideias dos autores citados:

• Como na relação agente-Estado, na área privada não há assim tanto lugar nem necessidade para a autonomia privada com relação à forma e conteúdo dos contratos, que é o caso dos contratos de adesão que também têm cláusulas obrigatórias apostas por uma parte e onde a possibilidade de disposição sobre seu conteúdo pela outra é praticamente inexistente. Segundo eles, em ambos os casos basta que haja autonomia ao contratar ou de se abster nesse sentido. • Na relação trabalhista/celetista também existem normas inflexíveis segundo a ordem jurídica, inclusive os direitos fundamentais de tutela do empregado, cuja disposição refoge à autonomia das partes, e nem por isso a avença entre empregado e empregador perde sua feição contratual.

• Considerando que inexiste regulamento autônomo, não se sustenta recusar em absoluto o caráter contratual do vínculo agente/Estado, sob o singelo argumento de que a Administração produz arbitrária e unilateralmente normas disciplinadoras dessa relação. É que, na ótica desses autores, não se pode confundir normas editadas pelo Estado-ordem jurídica (o legislador) com o Estado-Administração, o qual, não podendo furtar-se ao Estado de Direito,

168“Com advento da Constituição da República de 1988, tornou-se necessário uma revisão

do tradicional regime unilateral e autoritário, em face do princípio democrático que guiou o poder constituinte. A garantia de direitos sociais aos servidores públicos, como a

sindicalização e o de greve, art. 37, VI e VII, demonstrou-se incompatível com a concepção estatutária, evidenciando uma aproximação da natureza contratual à função pública.” BAETA, op. cit., p. 8.

também deve fidelidade às leis promulgadas no país, tanto quanto sua contraparte nessa relação, o servidor.

• Ao contrário da teoria estatutária, a tese contratualista possibilita negociações coletivas dos direitos dos servidores públicos, o que se dá, p. ex., a partir da atuação sindical e da greve facultadas a esses profissionais, direitos abrangidos pela liberdade sindical, a qual “possui elevado grau eficacial e considerável carga de justiciabilidade”169.