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CAPÍTULO II Organização, distribuição e institucionalização da

2. Uma política de apelo à cultura

Analisamos, na última seção, as condições de produção que permitem a emergência de práticas discursivas que constituem um novo lugar para o português, resultando no fortalecimento da política linguística levada a cabo pelo Itamaraty. Na presente seção, argumentaremos que, apesar desse movimento, o linguístico tende, no discurso sobre a promoção internacional do português por parte do Estado brasileiro, a ficar a reboque da noção de cultura.

Tal funcionamento é sinalizado pelo próprio fato de que, conforme já mencionado, a Divisão de Promoção da Língua Portuguesa (DPLP) – principal órgão do Estado brasileiro encarregado da promoção da língua portuguesa no exterior – está alocada no Departamento Cultural do Itamaraty. A promoção da língua portuguesa no exterior é, portanto, pela própria configuração institucional do MRE, representada como parte uma tarefa maior: a divulgação da cultura brasileira. Tal efeito de sentido também é produzido no artigo 157 da portaria n.º 212, de 30 de abril de 2008, publicada pelo MRE:

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Compete à Divisão de Promoção da Língua Portuguesa (DPLP): I - assegurar a orientação, coordenação e execução da política cultural externa do Brasil por meio da difusão da língua portuguesa e da literatura e cultura brasileiras (BRASIL, 2008a) [grifo nosso].

Lembremos ainda que, como mostramos no capítulo II, há um certo apagamento das atividades concernentes ao ensino de língua portuguesa stricto

sensu nos ICs e CCBs, em favor dos eventos culturais promovidos – com uma

frequência cada vez maior – por essas instituições. Vimos que a ampliação no leque de atividades desenvolvidas pelos CCBs para além da docência de língua portuguesa propriamente dita é um dos motivos alegados para a mudança do nome Centros de Estudos Brasileiros para Centros Culturais Brasileiros. Retomando a justificativa apresentada no relatório de gestão da DPLP referente a 2008 (BRASIL, 2009a), analisada anteriormente, “Os CEBs, para refletir seu crescente papel como difusores não só da língua, como também da cultura brasileira, passaram a ser denominados Centro Cultural Brasil-País Sede”. Os leitores, por sua vez, como argumentamos, são, invariavelmente, significados como representantes culturais, ainda que haja uma polêmica em relação ao que / a quem eles representam. Posto isso, poderíamos afirmar que a relação que se estabelece entre língua e política de Estado é sustentada pela noção de cultura. Partindo das reflexões de C. Rodríguez (2000) e Rodríguez-Alcalá (2004), colocamo-nos, então, a seguinte pergunta: qual o funcionamento político do apelo à cultura nessas condições de produção?

A fim de respondermos a essa pergunta, torna-se necessária, inicialmente, uma pequena digressão. Lembremos que, do ponto de vista da Análise do Discurso materialista, o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia (PÊCHEUX, 1997c), em um movimento a partir do qual (se) significa pelo simbólico na história (ORLANDI, 2002b). Diferentes formas-sujeitos podem resultar dessa interpelação, conforme as condições de produção em que se dá tal processo. Haroche (1984) mostra, a esse respeito, que o declínio do pensamento religioso medieval é acompanhado por mutações nas formas de subjetivação: os

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sujeitos não mais têm estatutos de súditos, mas de cidadãos. Retomando o estudo dessa última autora, Payer (2005) afirma que, nessa passagem da Idade Média para a Modernidade, ocorre uma mudança no “texto fundamental”: enquanto a sociedade medieval se organizava a partir das leis divinas, expressas na Bíblia, a sociedade moderna passa a se organizar a partir da Constituição. Assim, o enunciado-máxima que permite caracterizar essas distintas práticas discursivas desloca-se, ainda de acordo com Payer (ibidem), de “obediência à lei divina” para “obediência às leis jurídicas”. Conforme Rodríguez-Alcalá (2004), o amor e o

temor a Deus, que se manifestavam na subordinação ao rei, foram substituídos

pelo amor e pela lealdade à pátria, à nação, que se traduzem na subordinação ao Estado, através de suas leis.

Essa é, entretanto, uma injunção de todos os Estados Nacionais, como lembra C. Rodríguez (2000). O que promoveria, então, a identificação dos sujeitos com uma determinada cultura, e não outra? Para a autora, é a cultura que permite essa particularização. “É pela cultura que os Estados são individuados e que a relação entre eles é configurada, sendo nessas circunstâncias particulares que os sujeitos se constituem nas sociedades a que pertencem” (ibidem, p. 204). Concomitantemente a esse funcionamento interno, concernente ao processo de individua(liza)ção do sujeito em relação ao Estado (cf. ORLANDI, 2002b), a cultura participa, ainda segundo Rodríguez-Alcalá (2004), da construção da relação entre os Estados e da soberania sobre seu território. O caráter universal da religião, lembra a autora, ia ao encontro do funcionamento de impérios como o espanhol – que teve como soberano o estrangeiro Carlos V –, já que a identificação com o Soberano permitia a identificação de indivíduos de línguas e culturas muito heterogêneas. Por outro lado, a necessidade de demarcação das fronteiras dos Estados Nacionais coloca em relevo as noções de “identidade nacional” e “identidade cultural”.

Ainda de acordo com Rodríguez-Alcalá (ibidem), a conotação nacional que a cultura vem a assumir na Idade Moderna resulta em um apagamento do significado religioso a que ela estava associada. As tradições e os costumes

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indígenas, por exemplo, eram, para os colonizadores, uma evidência de suas “crenças pagãs”. De maneira análoga, a substituição das línguas indígenas na América, ou do árabe na Península Ibérica, pelo português e castelhano, respectivamente, seria necessária devido a sua incapacidade de expressar a

verdadeira fé. A partir de outra posição discursiva, as línguas dos povos nativos

eram, sim, aptas para tanto – bastava uma tradução fiel à terminologia cristã –, sendo sua adoção uma condição indispensável para a efetiva evangelização. Cabe observar, entretanto, que, em ambos os casos, a língua, tal como a cultura, se constituía como uma questão religiosa. Um indício do enfraquecimento do vínculo da cultura com a religião, a partir da consolidação dos Estados Nacionais, é, como exemplifica Rodríguez-Alcalá (ibidem), a polêmica em torno dos

estrangeirismos, que seriam nocivos não à fé verdadeira, mas à cultura nacional.

Em que pesem, porém, as distintas posições em relação à língua e às políticas estatais, a cultura passou a desempenhar um papel de coesão e diferenciação sócio-política no funcionamento dos Estados Nacionais, funcionando como argumento de consenso. Em resumo, “a língua passou a expressar não mais os mistérios da fé, mas a cultura de uma nação” (RODRÍGUEZ-ALCALÁ, ibidem).

Que fatores permitiram explicar, então, os novos contornos territoriais desenhados a partir da emergência dos Estados Nacionais? A autora lembra que, frequentemente, se atribui à cultura o princípio explicativo de tal fenômeno. Os recortes nacionais seriam fruto de um contraste etno-cultural prévio entre diferentes grupos sociais, cada qual com suas próprias crenças, costumes, tradições e línguas compartilhadas e transmitidas ao longo da história. Semelhante visão, ainda perceptível atualmente, é, como aponta Rodríguez- Alcalá, historicamente equivocada. A unidade política francesa, por exemplo, longe de refletir uma unidade etno-cultural prévia, é resultado de uma homogeneização de grupos socialmente muito distintos. Da mesma forma, as fronteiras político-territoriais entre os diferentes países latino-americanos não coincidem com fronteiras culturais ou linguísticas pré-existentes. Isso não significa, entretanto, que, uma vez constituídas as nações, os Estados não trabalhem no

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sentido de constituir uma unidade linguística e cultural – sempre tensa e contraditória –, através de seus aparelhos ideológicos.

Posto isso, retomemos a pergunta que nos colocamos no início desta seção: qual o funcionamento político do apelo à cultura nas condições de produção atuais, em que o Estado brasileiro assume um papel mais ativo na divulgação da língua portuguesa no exterior? Que efeitos são produzidos pelo fato de que, apesar de crescentes, as ações para a promoção do português estão, cada vez mais, a reboque de uma divulgação cultural maior? Se, como mostra Rodríguez-Alcalá (ibidem), a naturalização da cultura foi argumento de coesão etno-cultural legitimador do poder dos Estados Nacionais – assim como a religião servira, na Idade Média, como forma de legitimar o poder absoluto do Soberano –, o que representa o recurso à cultura nas condições de produção em questão?

Em primeiro lugar, é preciso considerar que, conforme argumentamos na última seção, ocorrem, na contemporaneidade, deslocamentos importantes no imaginário do Brasil no mundo, que repercutem no aumento de falantes de outras línguas interessados em aprender o português brasileiro. Longe de significar o português como uma língua “sem memória”, a política da DPLP tende, como vimos, a projetar essa língua a partir dos seus vínculos com “a cultura brasileira”, devido às condições de produção em que se fortalece a política linguística exterior do Brasil. Um elemento fundamental nessas condições de produção é a antecipação, feita a partir da posição ocupada pelo Estado brasileiro e pelos profissionais da RBEx, da imagem do público-alvo dessa política em relação à língua portuguesa. Considera-se, nessa posição, que a cultura brasileira “atrai”, favorecendo a procura pelo português, como indica o recorte a seguir, relativo a um texto escrito pela ex-diretora do Centro Cultural Brasil-Chile:

Os CEBS estão diretamente ligados às Embaixadas em cuja jurisdição atuam; são, portanto organismos vinculados à Embaixada do Brasil cuja missão é: ensinar a língua portuguesa falada no Brasil e divulgar a literatura e a cultura brasileira. O êxito dos centros e institutos tem sido indiscutível, superando todas as expectativas pelo interesse despertado pelo número crescente de

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alunos que agrega. Além da aproximação que se dá naturalmente pelo intercâmbio comercial, político e acadêmico, os alunos

parecem procurar os cursos de Português com uma curiosidade espontânea, decorrente da própria atração exercida pela cultura brasileira. Nesse sentido, língua e cultura

são instâncias indissociáveis e instrumentos de interlocução na instauração do diálogo da cultura brasileira com outras culturas (LOPES, 2008) [grifo nosso].

Destacamos que o encadeamento argumentativo estabelecido pela expressão “nesse sentido” dà margem à interpretação de que “língua” e “cultura” não são, necessariamente, indissociáveis, mas que devem sê-lo nas ações de difusão da língua portuguesa, por se considerar que a procura por essa língua é favorecida pela “atração” exercida pela cultura brasileira. Cabe ressaltar, entretanto, que esse efeito de atração não é, no recorte anterior, atribuído a fatores como a maior projeção internacional alcançada pelo Brasil nos últimos anos, ou ao imaginário sobre esse país que a mídia tende a (re)produzir. É como se a chamada cultura brasileira, por suas características “intrínsecas”, exercesse uma atração natural e atemporal, e não historicamente construída.

Semelhantemente, em um notícia sobre o Centro Cultural Brasil- República Dominicana, já apresentada anteriormente, se considera que a cultura brasileira – cristalizada em torno de certos estereótipos – é “uma das mais atrativas do continente”:

EL CENTRO CULTURAL DE BRASIL EN RD [República Dominicana] PROMUEVE LA ENSEÑANZA DE ESTE IDIOMA Santo Domingo - La cultura brasileña es una de las más

atractivas del continente. Son muchos los que se sienten atraídos por la samba, el carnaval, la feijoada, la caipirinha, su

exquisita literatura, su cadenciosa música, pero acceder a un conocimiento profundo de la cultura del país más grande de América, es necesario acercarse a su idioma: el portugués (MISOL, 2009) [grifo nosso]129.

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“O estudo do português nos aproxima da cultura brasileira

O CENTRO CULTURAL DO BRASIL NA RD [República Dominicana] PROMOVE O ENSINO DESTE IDIOMA.

Santo Domingo – A cultura brasileira é uma das mais atrativas do continente. São muitos os que se sentem atraídos pelo samba, pelo carnaval, pela feijoada, pela caipirinha, por sua gostosa

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A cultura brasileira produzida mercadologicamente é, assim, um elemento decisivo no processo de “capitalização linguística” (ZOPPI-FONTANA, 2009), definido anteriormente, tornando a língua portuguesa um “objeto de consumo”, cuja “posse” passa, conforme argumentamos em pesquisas anteriores (DINIZ, 2008, 2010), a ser representada como necessária para alcançar a recompensa prometida àqueles que, segundo Payer (2005), obedecem às leis do Mercado: o “sucesso”. Conforme argumentamos em trabalhos anteriores (DINIZ,

op. cit.), esse forte apelo à cultura impede que a língua portuguesa se veicularize.

Uma língua veicular, conforme Gobard (1976, p. 36),

se presente comme “objectif”, se prétend neutre, comme appartenant à “tout le monde”, c’est-à-dire à chacun pris individuellement, à la masse des individus dépouillés de leurs spécificités ethniques, au mépris de leur communauté d’origine et donc accessible à n’importe qui [...]130

Longe de se projetar por meio de tais representações, o português se sustenta, em seu processo de instrumentalização e institucionalização como língua estrangeira levado a cabo pelo Brasil, em um forte discurso de brasilidade, o que produz seus efeitos em termos de Estado e Mercado (DINIZ, op. cit.). Por esse motivo, em conjunto com Zoppi-Fontana (2009), caracterizamos essa dimensão131 de seu funcionamento como a de uma língua transnacional, e não como a de uma língua veicular, globalizada ou universal – como ocorre no caso do

literatura, por sua cadenciosa música, mas aceder a um conhecimento profundo da cultura do maior país da América, é necessário aproximar-se de seu idioma: o português” [tradução nossa].

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“se apresenta como objetiva, se pretende neutra, como pertencendo a “todo mundo”, isto é, a cada um tomado individualmente, à massa dos indivíduos despojados de suas especificidades étnicas, a despeito de sua comunidade de origem e, portanto, acessível a qualquer um [...]” [tradução nossa].

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Ao enfatizar a importância de se discernirem as noções de língua materna e língua nacional, Payer (1999, 2007) afirma que essas não são, necessariamente, línguas distintas, mas “distintas dimensões da linguagem na ordem da memória (2007, p. 119), que apresentam funcionamentos discursivos distintivos, participando diferentemente dos processos de constituição subjetiva. Em nosso trabalho, procuramos pensar, em conjunto com Zoppi-Fontana (2009, 2012), os processos de construção discursiva da dimensão transnacional do português.

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inglês, que passa a circular como uma língua que “está em toda parte sem estar em parte alguma” (SOUSA, 2007, p. 52).

Em segundo lugar, lembremos que, conforme as análises feitas no último capítulo nos permitiram perceber, a cultura funciona como um argumento de consenso. Ela é a justificativa para a mudança na designação Centro de

Estudos Brasileiros para Centros Culturais Brasileiros. É também ela que, como

vimos, irrompe como pré-construído de diferentes posições discursivas: a despeito das distintas representações sobre o leitorado, esse é, invariavelmente, concebido como um cargo de representação cultural. Também é significativo o fato de que, em nenhum documento oficial do Itamaraty, apareça o termo “política linguística” – embora a expressão “política cultural” por vezes seja empregada.

Ora, o apelo à cultura tende a produzir um silenciamento do fato de que as ações para divulgação do português vinculam-se a interesses – geopolíticos, econômicos e comerciais – da política externa do Estado brasileiro. Em conformidade com o que teoriza Varela (2006) sobre o conceito de política

linguística exterior (cf. seção 2.2. do capítulo I), a divulgação do português e da

cultura brasileira não encontra, portanto, sua finalidade em si própria – ainda que, frequentemente, esse seja o efeito produzido por certos discursos oficiais. O apagamento do político que está no cerne das ações em questão – como se essas fizessem parte tão somente de uma política de divulgação cultural – faz parte de seu próprio funcionamento. Nas palavras de Ribeiro (1989, p. 25), “quanto menos óbvia a vinculação com eventuais prioridades de Governo, mais eficiente a política cultural”. É sobre esse funcionamento silencioso que nos deteremos na próxima seção.