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5 DISCUSSÃO DOS CASOS

5.2 UMA SUBJETIVIDADE SOCIAL

A tentativa de integrar as várias histórias que constituem os sujeitos não é sua mera adição, mas uma forma de alcançar um conhecimento sobre a subjetividade social pertinente a essa dialética entre o constituído e o construído por parte do sujeito em sua relação com o trabalho.

Para González Rey (2003) o sujeito é o indivíduo comprometido de forma permanente em uma prática social complexa que o transcende e, diante disso, tem de organizar sua expressão pessoal, o que implica a construção de opções pelas quais mantenha seu desenvolvimento e seus espaços pessoais dentro do contexto dessas práticas.

Assim, de modo simultâneo, o sujeito constitui e é constituído pelos diferentes contextos sociais que tomam forma em sua história de vida, construindo diferentes sentidos subjetivos relacionados a esses momentos. Desta feita, a

participação do sujeito em diferentes espaços sociais cria um processo dinâmico e único de ressignificação das experiências vivenciadas, proporcionando mudanças de ações frente às demandas atuais. Por conseguinte, nenhuma influência social atua de forma linear e direta no individual, mas se organiza em produções de sentido subjetivo que permitem compreender os desdobramentos de diferentes experiências para cada sujeito (MORI; GONZÁLEZ REY, 2012).

Nesse sentido, a Teoria da Subjetividade desenvolvida por González Rey (2002, 2005) privilegia uma visão que integra os aspectos sociais e individuais, assim como recupera a pessoa na condição de sujeito nos processos de trabalho.

O estudo dos nove casos de teletrabalho aqui apresentados evidencia que essa nova configuração laboral, com contornos ainda difusos e indefinidos causa impactos psicossociais sobre o trabalhador, pois afeta o sentido e o significado do trabalho em termos psicológicos e sociais; gera efeitos sobre a interação familiar, uma vez que o espaço físico de trabalho e de convívio familiar se confundem; altera o modo de convivência do trabalhador com seus colegas de trabalho, afetando sua socialização; gera a necessidade de uma administração diferenciada do tempo que conjugue a flexibilidade para trabalhar em qualquer horário com a execução de outras atividades cotidianas; e traz implicações sobre o conjunto de fatores relacionados à qualidade de vida do servidor.

Em um dos casos, o teletrabalho assumiu a conotação de liberdade e de flexibilidade de tempo, tendo gerado mudanças positivas e desejadas pela servidora. No segundo caso, embora haja reconhecimento dos efeitos positivos do teletrabalho, observa-se que a servidora apresenta uma delimitação mais tênue em relação aos tempos e espaços de trabalho. Já no terceiro caso, embora o teletrabalho tenha inicialmente resolvido de forma satisfatória um problema específico de conciliação entre trabalho e estudo, a longo prazo essa modalidade se revelou inadequada e até

mesmo prejudicial para a saúde da servidora. Em outros quatro casos de trabalho em regime parcial que guardam semelhanças entre si, o teletrabalho implica em economia de recursos e de tempo e promove melhoria da qualidade de vida. Em outro caso, embora haja reconhecida economia de tempo e de recursos, há referência à confusão entre vida pessoal e profissional, bem como a constantes autocobranças. No último caso, a mobilidade do teletrabalho é reconhecida como extremamente vantajosa, porém o trabalho assume uma conotação de solidão por conta da ausência de interação social.

Assim, esses diferentes desdobramentos do teletrabalho evidenciam que a experiência subjetiva é afetada por elementos singulares referentes à história de vida de cada servidor, ao mesmo tempo em que é constituída pelo conjunto de aspectos objetivos, macro e micro, que se articulam no funcionamento social. Significa dizer que as experiências singulares são construídas em um espaço social compartilhado e, por conta disso, guardam semelhanças.

Nos casos estudados, observa-se uma intersecção comum em relação à percepção de que o teletrabalho traz benefícios mútuos para o servidor e para a instituição pública, evidenciando uma construção social baseada na ideia da tecnologia como sinônimo progresso e bem-estar social. Além disso, a reprodução coletiva e a naturalização do discurso organizacional voltado à produtividade refletem uma visão ideológica da questão da tecnologia como aumento da produtividade e como solução para os problemas do servidor e da instituição.

Outro elemento comum aos entrevistados refere-se à importância da autogestão, do autocontrole e da disciplina para uma boa execução do teletrabalho. Nesse sentido, tem-se a ideia socialmente construída dos teletrabalhadores como empreendedores de si mesmos. Essa concepção do teletrabalhador como empreendedor de si mesmo traz implícita a ideia da desnecessidade de instrução específica para a execução do trabalho remoto, pois considera que todo servidor é capaz de autogerir-se e de adaptar-se às novas demandas do teletrabalho. Dessa forma, em que pese a previsão expressa das Resoluções do CNJ no sentido de acompanhamento e capacitação de servidores envolvidos com o regime de teletrabalho, não houve orientação e preparação antes do início do teletrabalho, tanto em termos físicos e ergonômicos como em termos voltados à administração do tempo, às novas dinâmicas no ambiente familiar e aos riscos à saúde do trabalhador. Ademais, a ideia do empreendedorismo de si e da autogestão comporta uma

simplificação do trabalho, posto que ignora os complexos processos psicológicos envolvidos na constituição do ser humano em função de sua atividade laboral, assim como ignora que a experiência do teletrabalho vai muito além da alteração física do local de execução das tarefas.

Nessa linha de entendimento, o estudo de Costa (2003) relaciona o teletrabalho ao empreendedorismo de si, destacando que existe todo um discurso organizacional destinado a moldar a subjetividade do trabalhador, com vista à promoção do teletrabalho. De acordo com essa concepção, os teletrabalhadores são reconhecidos por suas habilidades especiais e pela autodisciplina, que representa um elemento fundamental na lógica do controle organizacional contemporâneo.

Nesse sentido, o teletrabalho parece reforçar a autoimagem de profissionais responsáveis, comprometidos, independentes e autônomos. Por conseguinte, a diminuição da supervisão direta, bem como do apoio/ infraestrutura da organização, são traduzidas como autonomia, aumento de responsabilidade e oportunidade para demonstrar competência.

Segundo Rocha e Amador (2018),

O controle por meio do engajamento no teletrabalho relaciona-se a uma valorização individual da modalidade de trabalho flexível e supostamente autodeterminado. Valoriza-se o comprometimento pessoal com o trabalho, atribuindo ao indivíduo o controle e autoria de seu próprio trabalho, colocando-se o trabalhador como o próprio gestor, ficando este comprometido com os resultados de suas atividades e responsável direto por elas. Esse engajamento individualizante gera, ao mesmo tempo, emancipação e subordinação. (ROCHA; AMADOR, 2018, p. 158).

Sendo assim, o controle sobre o trabalho por parte do trabalhador é apenas relativo, uma vez que segue submetido a metas e prazos definidos pela instituição e resulta de uma correlação de forças que envolvem metas, prazos e resultados, assim como escolha individual e flexibilidade (ROCHA; AMADOR, 2018).

Dessa forma, além das formas tecnológicas de controle, as organizações investem em formas sofisticadas de controle, principalmente em relação à subjetividade dos trabalhadores, de modo que eles assumem a incumbência de atingir os resultados. Nessa conjuntura, os sujeitos se tornam incapazes de compreender exatamente como tal processo de dominação acontece tamanha a sutileza e acuidade da manipulação exercida (ROHM; LOPES, 2015).

Diante do exposto, entende-se que o trabalho remoto, envolto em toda uma ideologia que remete à autodisciplina e a formas muito sutis de controle, implica em alteração do próprio estilo de vida do trabalhador, exigindo que ele se adapte a novas situações, horários, ambientes e relações de convivência. “Caminha-se, assim, para

uma atenuação do controle direto e hierárquico, paralelamente ao desenvolvimento de uma autodisciplina pessoal” (PINTO, 2008, p. 68).

Tem-se, então, a incorporação de um ideário disciplinador. A disciplina é compreendida por Foucault (1994) como sendo uma forma de fabricar corpos submissos e dóceis. Para o autor, o poder disciplinar é um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior adestrar. Sob essa perspectiva, na essência de todos os sistemas disciplinares funciona um mecanismo penal; assim, na oficina, na escola e no exército funciona como micropenalidade do tempo, da atividade, da maneira de ser, dos discursos, do corpo, da sexualidade.

Foucault (1994) também destaca que a disciplina fabrica indivíduos úteis e que a nossa sociedade é uma sociedade de vigilância. O autor menciona o panoptismo como um dispositivo que induz no vigiado, um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Sendo polivalente, esse dispositivo é usado em escolas, hospitais, fábricas. Assim, as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas, extraindo dos corpos o máximo de tempo e de forças por meio de horários, treinamentos, exercícios e vigilância.

No caso do teletrabalho há outras formas de fiscalização, cujo objetivo continua sendo a supervisão do trabalhador e a extração de produtividade, a exemplo da promoção da cultura da autodisciplina, bem como do controle via sistema informacional, metas e relatórios. Portanto, através da divisão produtiva, da supervisão do trabalho, das multas, sinos e relógios, incentivos em dinheiro, formam- se novos hábitos de trabalho e impõe-se uma nova disciplina do tempo, de modo que não existe desenvolvimento técnico e econômico que não seja, ao mesmo tempo, desenvolvimento ou mudança de uma cultura (THOMPSON, 1998).

Por consequência, diante da inexistência de limites legislativos claros de tempo e de espaço que demarquem os momentos de trabalho e não trabalho, o servidor tem o desafio de, sozinho, remanejar sua rotina, seus horários e sua própria relação com o trabalho. No regime de teletrabalho, acaba sendo atribuição do próprio servidor estabelecer esses limites entre trabalho, lazer e descanso, pois não há um

preceito legislativo que determine essas fronteiras. Esse aspecto é confirmado por Silva (2018) ao afirmar que, de modo geral, os teletrabalhadores lidam com um contexto de trabalho ainda pouco convencional e precisam levar em consideração as questões referentes à própria saúde física e mental, preocupando-se com os aspectos ergonômicos, fisiológicos, sociais e psicológicos que impactam no desempenho, na produtividade, na realização profissional e na sua saúde global, posto que não se pode pensar a saúde isoladamente das condições de vida e trabalho dos indivíduos (MARIO; AMORIM, 2017).

Nessa nova conjuntura laboral emerge uma série de contradições que implicam efeitos psicossociais sobre o trabalhador, pois a alteração do local de execução do trabalho e a fusão entre vida pessoal e laborativa geram um encadeamento de novas situações e novos encargos psíquicos.

No trabalho remoto, a conciliação entre ocupação e família não é automática. Na maioria das vezes o teletrabalho obscurece as fronteiras entre o tempo de trabalho e o tempo familiar e exige esforço do trabalhador no estabelecimento de limites saudáveis entre vida privada e trabalho, o que remete às contradições do teletrabalho vivenciadas pelos servidores em maior ou menor grau.

Sobre as contradições do trabalho, Antunes (2018, p. 26) enfatiza que “é essa processualidade contraditória, presente no ato de trabalhar, que emancipa e aliena, humaniza e sujeita, liberta e escraviza que (re)converte o estudo do trabalho humano em questão crucial de nosso mundo e de nossa vida”.

Tem-se, então, uma realidade do teletrabalho que se afirma nas múltiplas determinações sociais. Uma determinação, por exemplo, é a necessidade de o trabalhador ter uma casa que comporte o aparato técnico e tecnológico para que possa realizar sua atividade profissional. Assim, com a execução do trabalho transferida para o ambiente doméstico e diante da ausência de demarcadores físicos e temporais, o trabalhador se torna responsável por promover um local laboral saudável – ou no mínimo não adoecedor, tanto em termos físicos e ergonômicos como em termos psíquicos.

Nesse contexto, embora haja previsão expressa quanto às questões de saúde do empregado, seu alcance é vago e impreciso, pois situações relativas a doenças ocupacionais podem apresentar novos contornos em regime de teletrabalho, assim como acidentes de trabalho tendem a se tornar questões mais complexas e de difícil apuração.

Ademais, a possibilidade de riscos no que tange à execução da atividade laborativa pode ser aumentada, haja vista que o trabalhador executa suas funções fora das dependências do empregador e, consequentemente, sem monitoramento e fiscalização quanto a fatores de ergonomia e saúde do trabalho. Isso significa que o teletrabalhador se torna o único responsável pelo seu ambiente de trabalho e pela execução adequada da atividade. Adicionalmente, o fato de a execução do trabalho ocorrer fora das dependências organizacionais poderia dificultar a percepção do nexo de causalidade entre trabalho, doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, eximindo a organização de arcar com sua responsabilidade quando da ocorrência desses eventos.

Quando se consideram as condições do ambiente em que será realizado o trabalho, por exemplo, a Resolução 134 do TRF4 estatui que compete exclusivamente ao servidor providenciar, às suas expensas, as estruturas física e tecnológica necessárias à realização do teletrabalho, mediante o uso de equipamentos ergonômicos e adequados (TRF4, 2016). Assim, não existe obrigatoriedade da instituição em relação à promoção de um ambiente doméstico minimamente ergonômico; eis que, de acordo com as normativas, o servidor é o único responsável pelo seu local de trabalho. Isso significa que o domicílio do trabalhador pode não ser totalmente adequado à execução das atividades profissionais, o que pode acarretar prejuízos a sua saúde, ainda que no longo prazo.

Relacionada ao funcionamento institucional e à exigência de desempenho superior no teletrabalho, há a questão da produtividade. No âmbito da Justiça Federal, o conteúdo do trabalho realizado pelos servidores públicos participantes da pesquisa envolve processos judiciais e demandas singulares e complexas, o que dificulta o estabelecimento de metas quantitativas e, consequentemente, a mensuração objetiva do trabalho realizado. Por conta disso, nota-se também que o estilo de gestão exerce influência sobre a execução do teletrabalho, pois os servidores reportam a importância da confiança e da compreensão por parte da Administração, tanto no estabelecimento de metas tangíveis, como na exigência do seu cumprimento.

No que tange à socialização, a maioria dos entrevistados sente falta do convívio social com os colegas, apontando esse aspecto como um fator negativo do teletrabalho. Nota-se que a questão da socialização envolve não só as trocas afetivas, o convívio, a interação social, mas também aparece como um elemento

relacionado à própria execução do trabalho, por favorecer a troca de ideias e o compartilhamento de informações. Além disso, a questão da socialização também remete ao sentimento de pertencimento, que pode ficar comprometido na ausência de interações físicas. A falta de interação social remete ainda à questão do senso de coletividade, pois tende a fazer com que as demandas comuns do trabalho sejam percebidas apenas sob a ótica individual, dado o isolamento social promovido pelo teletrabalho.

Tendo em vista todos esses apontamentos que indicam a complexidade do teletrabalho, considera-se importante a realização de avaliação e preparação prévias ao exercício dessa modalidade. Nesse sentido, a instituição, em conjunto com o servidor, avaliaria aspectos importantes envolvidos na execução da atividade laboral, a fim de determinar a viabilidade desse arranjo para cada trabalhador. A avaliação abrangeria questões relativas ao espaço físico e ergonomia, configuração familiar, organização da rotina, administração do tempo, estratégias de trabalho e formas de socialização.

Além disso, considerando que o desenvolvimento do teletrabalho ao longo do tempo envolve circunstâncias não totalmente previsíveis em uma avaliação inicial, entende-se que seria importante uma reavaliação a cada seis meses. Nessa reavaliação semestral (preferencialmente realizada por médico do trabalho e psicólogo), seria possível averiguar como o servidor tem se adaptado ao trabalho remoto e quais as suas implicações sobre seu modo de vida e, especialmente, sobre sua saúde. Desse modo, seria possível constatar eventuais alterações prejudiciais e dar o devido encaminhamento ao caso.

Sob a ótica da Administração, a reavaliação semestral também seria muito positiva, pois permitiria fazer ajustes necessários e analisar a produtividade do servidor, bem como evitar a consolidação de situações potencialmente danosas a sua saúde. Nessa perspectiva, há que se considerar que a Administração deve zelar não só pela eficiência do serviço público, mas também pelo bem-estar do trabalhador. Outra possibilidade aventada por esta pesquisa é que o teletrabalho em regime integral seja adotado somente após uma prévia experiência em regime parcial. Entende-se que tal medida permitiria que o trabalhador avaliasse sua experiência com o trabalho remoto, verificando benefícios e dificuldades, antes de alterar de forma mais intensa a sua rotina laboral. Ademais, permitiria ao trabalhador avaliar os reais impactos do teletrabalho em termos de socialização, organização,

produtividade e interação familiar, para então decidir sobre a viabilidade dessa modalidade em regime integral em suas atuais circunstâncias de vida.

A importância desse estágio de experiência também reside na possibilidade de uma fase de transição, em que o servidor, com suporte da Gestão, avaliaria o desdobramento de tal modalidade sobre a sua rotina e produtividade. Nesse caso, experiências positivas poderiam ser ampliadas para o regime integral, enquanto que as vivências menos exitosas poderiam ser avaliadas e solucionadas – ou interrompidas, antes de gerarem maiores efeitos prejudiciais para o teletrabalhador e para a Administração.

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