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Petrovich me conduz por caminhos de alegria através dos labirintos que per- correu. Tento, então, compreender o sentido do encontro na sua jornada.

Acerca do nosso encontro, quando ainda não nos sabíamos im(pli)cados nesta pesquisa, disse-me ele:

Esse ato aqui, é um ato de estética e de beleza absoluta, porque você é uma mu- lher com uma capacidade intelectual, sensível e estética deslumbrante. A minha mente está feliz (PETROVICH, 2004).

O dispor-se para o encontro é a razão da viagem. O abrir-se ao outro é o que lhe motivava caminhar. Os caminhos da alegria são irremediavelmente caminhos compartilhados. Companheiros de jornada, Vanda Machado se refere ao encontro como princípio do edu- car petrovichano:

Ele tinha algumas idéias básicas para o trabalho dele. Ele era um leitor de Hei- degger, de Brecht, do teatro da transformação, do formar para ser; mas na ver- dade era tudo acúmulo de um tempo vivido, de uma experiência...ele tinha prin- cípios básicos; princípio básico de educar, de formar o sujeito para estar com o outro, para ser com o outro, para construir com o outro; educar para o diálogo, educar para falar. (...) ele defendia essa convivência como desejo (VANDA MACHADO).

Numa análise sobre o diálogo do ponto de vista bakhtiniano, Amorim (2001), acerca da estética carnavalesca, afirma que esta dissipa as tensões que permitem a alteri- dade, rebordando numa fusão ou metamorfose na qual tudo se torna Um e as identidades se diluem no todo. Enquanto no dialogismo as diferenças se mantêm, caracterizando o eu como distinto do outro, no carnaval ambos tornam-se apenas Um e, portanto, o outro para o eu é o si mesmo. De acordo com a autora, "O carnaval realiza plenamente o que o dialogismo apenas evoca sem poder concretizar" (AMORIM, 2001, p.173).

No discurso carnavalesco nada se fixa; existe apenas o fluxo incessante da história destino que degrada e restaura, apontando para um outro tipo de alteridade: aque-

la que se estabelece com o universal, o cósmico; e neste sentido, a metamorfose dá-se não entre os homens, apenas, mas com o "outro do homem".

O contato familiar da praça pública aponta para além do encontro, diz a autora citada; o cortejo de Dionísio destrói o palco e faz a festa do tempo. O riso medieval e renascentista descrito por Rabelais (BAKHTIN, 1999), contudo, é aquele que se mantém no diálogo permanente com o pensamento sério: um sério que, como já referido, participa da dança do universo; é aberto porque se sabe efêmero e dispõe-se à transformação – este sério não dogmático encontra expressão na cultura cômica popular, assim como na radi- calidade dos discursos filosóficos e da ciência (e que não se confunda este com o discurso científico). A festa rabelaisiana é a um só tempo celebração e abolição da diferença.

Análise semelhante faz a professora Cleise Mendes ao atribuir caráter apolí- neo às realizações de Petrovich. A grande questão encontra-se, portanto, no unilateralis- mo que mata a intensidade dos encontros em nome do conhecimento que não acolhe a verdade que ri – "E digamos falsa toda verdade que não teve, a acompanhá-la, nem uma risada!66", disse Zaratustra (NIETZSCHE, 2003, p.251).

É interessante observarmos que a palavra encontrar (incontrãre, de in+contra) teve ao longo dos tempos seu sentido derivado para algo que se aproxima da conciliação pacífica entre os seres, denotando a perda do seu significado etimológico. Entretanto, remetendo à sua origem, a palavra encontro é: achado, embate, choque, colisão, briga, duelo, disputa, objeção, cruzamento (BUENO, 1968, p. 1105). Donde podemos dizer que todo encontro engendra tensão, pois necessariamente é descoberta dos diferentes. Inspi- rado pelo texto heracliteano – “O contrário é convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia” , Galeffi escreve:

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Existem inúmeras referências ao riso nos textos de Nietzsche, especialmente na "Gaia Ciência", segundo Alberti (2002). Zaratustra é um homem que ri.

O pólemos, neste sentido, é o modo como tudo acontece em seu aparecer e desaparecer, em seu ser-fenômeno: a luta imperante dos opostos na perpetuação do movimento-vida-geradora de tudo o que é e de tudo o que não é. Pólemos é o mesmo que causação. Ora, tudo o que é causado é fruto da “discórdia” e da “necessidade”. A discórdia, assim, é um vetor da justiça, pois só pela causação surge a necessidade, e esta reclama para si uma medida justa, um ajustamento, um ajuntamento, uma reunião de opostos inseparáveis e complementares. Deste modo, o pólemos é sempre uma condição de origem, uma ruptura, uma causação, um acontecimento imperante (GALEFFI, 2005).

Mas como na visão de Petrovich, caminhamos e encontramos para celebrar, e toda celebração (clebrãre) é ajuntamento - freqüentar em grande número um lugar ou uma pessoa; assistir (uma multidão) a uma festa; festejar; espalhar por grande número de pessoas; publicar; dar a conhecer (MACHADO, 1967, p. 582) – a festa é por excelência o lugar do encontro, da celebração, do anúncio e experiência do diverso. Festa é pólemos.

No projeto de Petrovich, a professora Maria Eugênia Millet reconhece o caráter festivo e universal:

Um projeto muito perto da celebração, da festa, da alegria, do texto que brinca, do humano; essa dimensão é do humano, é da crítica. Eu acho que Petrô era uma pessoa muito crítica, olhava muito fundo nas coisas; queria saber das coisas; in- teressava-se em saber como é que você está, a sua vida, a dimensão do humano, de saber quem é você, o que você pretende, como é que você pensa o mundo. (...) Isso implica numa questão comunitária; como podemos estar mais juntos na vida, na festa, celebrando; compartilhar com a diversidade, com a escolha de ca- da um; compartilhar esses tempos, esses momentos. Ele se dava muito bem com gente jovem. Uma pessoa que gostava de viver e tinha compromisso com a vida e no que ela pode ser bela, e ela só pode ser bela se for compartilhada (...) ele era sempre ele e os personagens estavam ali naquele corpo que podia ser tudo. Um bom ator é isso, tem um centro muito forte e reconhece esse seu centro e pode ultrapassar esse centro. Mas o centro tem que estar ali; e ele tinha muita consci- ência do que ele era (MARIA EUGÊNCIA MILLET).

As festividades medievais e renascentistas eram veículos consagrados dos fins superiores da existência humana. Durante os períodos em que ocorriam, o tempo natural (cósmico) possibilitava a vivência dos opostos num movimento de alternância e de renovação: coexistiam vida e morte; política e poética; a cidade e o campo; o alto e o baixo; passado, pre- sente e futuro. Expressava-se uma concepção de mundo avessa ao tom oficial, liberando o homem da verdade dominante. O contato livre e familiar, resultante da eliminação provisória

das hierarquias, criava uma ambiência de fraternidade, não experimentada na vida cotidiana. "A alienação desaparecia provisoriamente. O homem tornava a si mesmo e sentia-se um ser humano entre seus semelhantes" (BAKHTIN, 1999, p. 9). As festas oficiais, regidas pela ideo- logia da seriedade, contrariamente, primavam pela consagração da ordem vigente, pela verda- de única e a-histórica; era o reforço das fronteiras hierárquicas e das convenções sociais.

Nos terreiros de candomblé, território no qual o povo do Axé celebra a vida e os Orixás, a festa é princípio. Reafirma-se a existência através da alegria, da dança, da comida, da bebida, do amor, de acordo com o professor Roberval Marinho, pois se sabe que em breve todos retornarão ao colo da mãe terra, conduzidos pelo Orixá Icú (a morte), encarregado de fazer a devolução. A vida é, assim, celebrada no instante, pois o único movimento além deste é o do retorno ao berço ancestral. E já não me parece necessário retomar a relação de Petrovich com o candomblé, já que era Ogam do Afonjá, e isto signi- fica ser um iniciado responsável por obrigações espirituais.

Estes registros são importantes para pensarmos a educação dos pontos de vista oficial e carnavalesco. As palavras da professora Maria Eugênia Millet, fazem-me recordar o modo de vida do povo de Télema – em grego, liberdade - abadia construída por Gargântua e pelo Frei Jean, descrita no livro Gargântua (RABELAIS, 1966). O autor narra a história de educação desta personagem e seu estilo de vida, que incorpora a erudição e o prazer.

A abadia de Télema, ou a utopia de uma educação e de uma vida libertária, tem para Rabelais (1966), retratada na figura de Gargântua, a liberdade por princípio: "Assim esta- belecera Gargântua. Todo o seu sistema se resumia nesta cláusula: FAZE O QUE QUISERES" (RABELAIS, 1966, p. 323). Ele acreditava que quando o homem é livre e ins- truído à convivência com pessoas honestas, tal instrução o conduzirá à virtude e à honra, des- pertando-o para a vida coletiva e fraterna. Para Marrach (1998), Rabelais sinaliza com os seus

Gargântua e Pantagruel67a nova ordem renascentista, colocando questões que ressoam na contemporaneidade: "a da razão libertadora e a da finalidade social do saber" (MARRACH, 1998, p. 34). E não eram estas, também, questões de Petrovich?

Pela via do encontro, contudo, Petrovich buscava a sua própria alma. E por saber-se um ser de relação, "ser-no-mundo", buscava-se irremediavelmente nos cor- pos alheios, como dizia olhando diretamente para a câmera, em 1997:

(...) eu acho que sou um canal e tenho como missão encontrar a minha alma nos ou- tros. E cada pessoa que for encontrando a sua alma eu sei que vou encontrar a minha alma (PETROVICH, 1997) .