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Caminhar, encontrar e celebrar: o riso e a arte bufa no projeto pedagógico de Carlos Roberto Petrovich

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E PRÁXIS PEDAGÓGICA. CAMINHAR, ENCONTRAR E CELEBRAR: o riso e a arte bufa no projeto pedagógico de Carlos Roberto Petrovich. ANA RITA QUEIROZ FERRAZ. Salvador 2006.

(2) ANA RITA QUEIROZ FERRAZ. CAMINHAR, ENCONTRAR E CELEBRAR: o riso e a arte bufa no projeto pedagógico de Carlos Roberto Petrovich. Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.. Professora Orientadora: Dra. Dinéa Maria Sobral Muniz. Salvador 2006.

(3) TERMO DE APROVAÇÃO. ANA RITA QUEIROZ FERRAZ. CAMINHAR, ENCONTRAR E CELEBRAR: o riso e a arte bufa no projeto pedagógico de Carlos Roberto Petrovich. Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, à seguinte banca examinadora:. Dinéa Maria Sobral Muniz, Professora- Orientadora_________________________ Doutora em Educação.. Dante Augusto Galeffi___________________________________________________ Doutor em Educação.. Walter Omar Kohan_________________________________________________________ Doutor em Filosofia.. Salvador- Bahia - Brasil- 2006.

(4) Carlos Roberto Petrovich (1936 – 2005) – Acervo Vanda Machado. Onde quer que, entre sobras e dizeres Jazas, remoto, sente-te sonhado, E ergue-te do fundo de não seres Para teu novo fado. Fernando Pessoa.

(5) Dedico este texto àqueles que, mantidos à margem da história oficial, não lerão os meus escritos; mas que a despeito de toda opressão riem desmesuradamente na praça pública. Dedico aos meus pais, Juracy e Lúcia, que corajosamente desafiaram a mesma história oficial para que eu possa, hoje, conduzi-los à universidade. Dedico minhas palavras à sua ousadia e testemunho de muitas histórias possíveis. Dedico, ainda, a Carlos Roberto Petrovich, cavaleiro andante e filho de Ogum, que abriu caminhos para que possamos renovar a nossa utopia de uma "comuniversidade" risível e ridente..

(6) AGRADECIMENTOS Todo o meu caminho foi de celebração. Nele encontrei apenas generosidade e disponibilidade para compartilhar. Sou grata: a Carlos Roberto Petrovich que me confiou sua vida, sem recato, e deixando cair as suas máscaras, confrontou-me com a beleza abismal da existência; à professora e amiga Vanda Machado que transmutou sua dor em vida nova, apoiando sem restrições as minhas escolhas. Ao seu talento e coragem para aproximar distâncias; a todos os entrevistados que dividiram lembranças e emoções, ajudando-me a tecer este texto; à professora Dinéa Maria Sobral Muniz, minha orientadora, pela sua ousadia em acolher um tema pouco convencional na academia; ao meu amigo virtual Albor Rañones, meu co-orientador, aquele que nunca vi o rosto, mas que através da palavra provocou-me, consolou-me nos momentos de angústia, e sem pudores compartilhou saberes e perplexidades. À sua paciente e cruel leitura; à professora e amiga Maria Antônia Coutinho pela cumplicidade e abertura para afetações; ao professor Dante Augusto Galeffi que me inspirou com o seu "Ser-sendo" e desafioume a prosseguir com vigor e ternura. à mestra Mercedes Cunha, por seu carinhoso e necessário rigor para fazer-me refletir sobre os modos como me implicava nesta pesquisa; ao querido amigo Paulo Araújo, por sua solidariedade no momento doloroso das sínteses; à doação da amiga Martha Martinez Silveira que caprichosamente cuidou das referências por onde trilhei; às amigas Ana Suely, Graziela e Silvia, por tornarem mais leve a lida diária, possibilitando-me momentos para o ócio necessário à criação; aos professores Felippe Serpa (in memoriam), Celi Tafarel e Miguel Bordas por desvelarem os sentidos da universidade no nosso país; por me ajudarem a compreender o fundamental compromisso com o discurso e a atitude política e pública. Também a minha gratidão às professoras Maria Inez Carvalho e Maria Antonieta Tourinho, que me aproximaram da poética do "ser pesquisadora" pela via arte cinematográfica;.

(7) aos colegas Ivan, Hildonice e Eduardo pela constante disposição para dividir inquietações teóricas e espirituais; ao amigo Miguel Brandão por me disponibilizar os segredos da sua biblioteca, conduzindo-me ao teatro grego e à filosofia; aos funcionários da Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia, por acolherem as minhas buscas sempre com disponibilidade e atenção. A Eugênio do Sebo Papirus pelo empenho em auxiliar nas minhas buscas; a Deusi de Magalhães e a Leon Góes, por me possibilitarem o sonho encarnado da arte bufa em tempos pós-modernos; às amigas Carmen Mecês e Cristina Voigt por respeitarem o meu necessário silêncio; à tia Jacy, pelos banquetes dos domingos, desculpa para nos fazer ver o significado de pertença a uma família; ao tio Moacyr por insistentemente acreditar na minha letra; à Maria Helena por cuidar da minha casa, lugar do repouso e da solidão essencial à produção da escrita; aos meus irmãos, Ricardo e Lílian, e sobrinhos, Chiquinho, Matheus, Duda e Ricardinho, por amorosamente compreenderem a minha ausência. Especialmente aos dois últimos por serem o delicado colo nos momentos de angústia; ao meu amado companheiro, Basílio, meu cúmplice nos momentos mais difíceis, a minha mais profunda gratidão pelo apoio irrestrito, pelo paciente cuidado com as pequenas e as grandes dificuldades que encontrei no caminho. O meu agradecimento por acreditar e não me deixar desistir; por me fazer rir dos meus temores, lembrando-me que tudo é transitório e logo passa; à minha mãe Lúcia, o primeiro bufão, por ter tornado alegre o meu coração e me emprenhado de tantos sonhos possíveis; por me ensinar a rir, a chorar e a amar sem pudores. Ao meu pai Juracy, que com seriedade aberta e crença no humano do homem ensinou-me a ser generosa e persistente nas adversidades. A ambos, pelo exemplo e confiança; pela incondicionalidade do seu amor; e por me mostrarem que é sempre possível ir além, porque são infinitos os caminhos. Por fim, a todos aqueles que encontrei e que comigo celebraram para que hoje eu seja tão diversa do que fui. "Bendita és tu e toda tua história", dizia-me o amigo Jorge Rocha, recordação presente em muitos momentos desta minha jornada..

(8) Tu que viste o homem como deus tanto como carneiro – despedaçar o deus no homem tal como o carneiro no homem e rir despedaçando – isto, isto é a tua ventura ventura de pantera e águia, ventura de poeta e doido!... Nietzsche, 1986.

(9) SUMÁRIO PRÓLOGO – Ogum ieee!!!.....................................................11 ATO I – PARINDO BRASAS Cena 1ª - Eu rio. E mar... ...................................................... 16 Cena 2ª - Uruborus: o capeta morde o próprio rabo .............. 29 ATO II – O FIO DE PETROVICH....................................... 39 ATO III - INTERMEZZO Cena 1ª - Senhoras e senhores, Carlos Roberto Petrovich ..... 48 Cena 2ª - Enganadoras ficções .............................................. 58 Cena 3ª - Quem conta um conto............................................ 69 Cena 4ª - Mascaradas: Dionísios e Exus ............................... 76 ATO IV – CUM HILARITAS IN INFINITUM Cena 1ª - Comedores de luz .................................................. 89 Cena 2ª - Bufonaria e docência..............................................111 Cena 3ª - Doidas palavras ................................................... 139 Unidade 1ª - Canto de arribação.......................................... 144 Unidade 2ª - A carnavalização da vida................................ 154 Unidade 3ª - A Télema no Pelourinho................................. 158 ATO V – CAI O PANO...................................................... 168 REFERÊNCIAS ................................................................. 174.

(10) RESUMO. Pesquisa teórica, de cunho filosófico-educacional, discute o projeto pedagógico do professor Carlos Roberto Petrovich (1936-2005) e suas possíveis ressonâncias com o riso e a arte bufa de François Rabelais, estudado por Mikhail Bakhtin. Petrovich foi aluno da primeira turma da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e tornouse depois professor. Nos anos imediatamente anteriores à sua morte, foi suspenso Ogan de Ogum, Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, Salvador-Bahia. Como não há registro sistematizado das suas experiências, este trabalho converteu-se numa tentativa de preservar a memória daquele que defendeu vigorosamente os povos silenciados. Pensar o homem e o mundo na perspectiva de Petrovich ensejou, necessariamente, o trânsito pela educação, pela cultura, pela arte e pela religião afrobrasileira. A preferência por resgatar a intensidade da sua vida através de personagens que representou no teatro e no cinema, trabalhos nos quais atuou como diretor e como arte-educador, todos de grande relevância para compreender sua verve poético-dramática e suas idéias de educação, resultou num texto que incorpora livremente figuras de estilo e adota o sentido do mosaico como premissa para construção do seu perfil biográfico. Sustenta, assim, a existência de um projeto petrovichiano, como percurso formativo guiado pelo imperativo de "ser o que se é", lema de Píndaro. Esta pesquisa apoiou-se no método alegórico e na filosofia da história de Walter Benjamin, tomando a vida de Petrovich como ruína e ressignificando-a a partir das narrativas daqueles que com ele conviveram. Para tanto, foram realizadas entrevistas abertas, gravadas, além de falas do próprio Petrovich. O projeto pedagógico deste professor instiga ao resgate da historicidade, da ambivalência, da corporeidade, da quebra de hierarquias, características do riso rabelaisiano, promovendo a restauração do educar a partir de uma estética que incorpora a arte, a filosofia, a literatura e a mitologia como possibilidades de libertação do sujeito para empreender sua viagem na direção de "ser o que é". Palavras-chave: Educação; Filosofia; Teatro; Universidade; Riso..

(11) RESUMEN. Pesquisa teórica, de carácter filosófico-educacional, discute el proyecto pedagógico del profesor Carlos Roberto Petrovich (1936-2005) y sus posibles resonancias con la risa y el arte bufo de François Rabelais, estudiado por Mikhail Bakhtin. Petrovich fue alumno del primer curso de la Escuela de Teatro de la Universidad Federal de Bahia (UFBA), tornándose profesor en la misma a partir de 1972. En los años inmediatamente anteriores a su muerte, fue suspenso Ogan de Ogum, Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, Salvador-Bahia. Como no existe registro sistematizado de sus experiencias, este trabajo se convierte en una tentativa de preservar la memoria de aquel que defendió vigorosamente los pueblos silenciados. Pensar el hombre y el mundo en la perspectiva de Petrovich propició, necesariamente, el tránsito por la educación, por la cultura, por la religión afrobrasileña, por el arte. La preferencia por rescatar la intensidad de su vida a través de los personajes que representó en el teatro y en el cine, trabajos en los cuales actuó como director y arteeducador, todos muy relevantes para comprender su sentido poético-dramático y sus ideas de educación, resultó en un texto que incorpora libremente figuras de estilo y adopta el sentido de mosaico como premisa para la construcción de su perfil biográfico. Sustenta, así, la existencia de un proyecto petrovichiano, como curso formativo guiado por el imperativo de "ser lo que se es", lema de Píndaro, sintetizado por ele en la triade "caminar, encontrar y celebrar". Esta pesquisa se apoyó en el método alegórico y en la filosofía de la historia de Walter Benjamin, tomando la vida de Petrovich como ruina y resignificándola a partir de las narrativas de aquellos que con el convivieron. Para tanto, fueron realizadas entrevistas abiertas, gravadas, además de declaraciones del propio Petrovich. En la universidad, como profesor o asumiendo representación en órganos colegiados, confrontó tradiciones sustentadas por una cierta "ideología de la seriedad", insistiendo en el diálogo con la cultura popular. Nació de esta relación el proyecto realizado con la Didá Escuela de Música, discutido del punto de vista de una educación libertaria, en los moldes de la Télema de Gargantua, personaje de Rabelais. Se percibió, durante la pesquisa, la forma insidiosa e insistente con que la risa se manifiesta en las estructuras de los poderes instituidos, considerando que es constitutivo de la naturaleza humana. El proyecto pedagógico del profesor Carlos Roberto Petrovich instiga al rescate de la historicidad, de la ambivalencia, de la corporeidad, de la quiebra de jerarquías, características de la risa rabelaisiana, promoviendo la restauración del educar a partir de una estética que incorpore arte, filosofía, literatura y mitología como posibilidades de liberación del sujeto para emprender su viaje en la dirección de "ser lo que es". Palabras llave: Educación; Filosofía; Teatro; Universidad; Risa..

(12) PRÓLOGO - Ogum nhê!!!!1 O início foi uma gargalhada, antes mesmo de fazer-se a luz. Ri da viagem que me propunha, das aventuras e das desventuras que viveria. Hoje rio dos meus leitores e do seu assombro diante da desrespeitosa gargalhada e da convocação para uma leitura em primeira pessoa. O escárnio daqueles que se enredam numa trama, ou por ela são im(pli)cados2, desloca perspectivas. Este texto é um convite a autoderrisão.. 1. Saudação do povo do Axé ao orixá Ogum, aquele que vai à frente, abrindo os caminhos (Cultura Afrobrasileira) 2 Tomo aqui o sentido de dobra, "le plie", que Giles Deleuze desenvolve a partir de Leibniz. Igualmente encontrado em palavras como multi(pli)car, com(pli)car, ex(pli)car, também utilizadas neste texto com o propósito de ressaltar o sentido de dobra. Contrapõe-se à reta renascentista, pela simultaneidade cônca-.

(13) 12 Incitada por possíveis ressonâncias entre o riso e a arte bufa rabelaisianos3, e o projeto pedagógico de Carlos Roberto Petrovich, deparei-me com aquilo que está fora dos limites da razão, o que se constitui uma outra razão ou, ainda, uma não-razão, uma des-razão - lugar do riso: a não-positivação que torna possível uma "gaia ciência". (En)carnar o verbo foi o meu desafio. Esta violência, à moda alegórica, assinalava a morte de Petrovich e a sua salvação; razão pela qual uma escrita aberta e criativa exigiu-me um duplo4 que fizesse troça dos meus medos de descolamento das tradições, e que rompesse com o repouso que me roubava as sombras para deixar que a vida agisse profunda e diretamente na minha sensibilidade. É pouco convencional apresentar uma dissertação falando de paixão e de desejo; e menos ainda oferecê-la para que seja lida como prosa poética. Neste momento, contudo, não me ocorre caminho mais oportuno para traçar um percurso formativo. O fazer-me pesquisadora despertou-me para a beleza de um outro que apenas se insinuava, jamais certeza, revelando-me que o encontro entre duas presenças dá-se unicamente enquanto abertura e disposição para a morte. Carlos Roberto Petrovich, como ele próprio costumava dizer, era "índio tupiniquim, comedor de camarão das margens do Potengi5, domesticado na Bahia". Aluno da primeira turma da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia, tornou-se professor desta casa em 1972, aí permanecendo até a sua morte, em abril de 2005. Na terra de Todos os Santos fez-se arte-educador e foi suspenso Ogan de Ogum, empreendendo uma vigorosa luta a favor da educação, do teatro, e dos povos silenciados. vo/convexo, interior/exterior, contido/continente; movimento tipicamente barroco. Para o pensador francês, dobrar/desdobrar não se limita a contrair/descontrair, mas envolver/desenvolver. Para aprofundamento do tema: DELEUZE, Giles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução Luiz B. L. Orlandi. Campinas, São Paulo: Papirus, 1991. 3 Referência aos estudos do pensador renascentista François Rabelais, acerca da cultura cômica popular. 4 "Toda verdadeira efígie tem sua sombra que a duplica; e a arte se instala a partir do momento em que o escultor que modela acredita liberar uma espécie de sombra cuja existência dilacerará seu repouso" (ARTAUD, 1985, p. 22). 5 Rio que corta a cidade de Natal-RN..

(14) 13 Sua longa jornada envolveu-me em labirintos que se multiplicavam, intimando- me a assumir a autoria desta obra. Não pude furtar-me, assim, ao modo memorialista, de ceder espaço à comédia da minha vida privada que se insurgia na escritura deste texto e, paradoxalmente, dele me arrancava como uma desconhecida de mim mesma, denunciando a distância entre aquela que narrava e aquela que escrevia. Na ambiência de um campo de saberes que se afirma pela terceira pessoa, a solidão inevitável na escolha dos caminhos e a confrontação com as convenções universitárias foramme especialmente penosas; motivo que me levou a considerar a universidade a partir da ótica bufonesca. Ressalto, ainda, que tendo sido esse o hábitat de Petrovich, desde 1956, necessariamente também ele me arrastou nesta leitura. Percebi que a ideologia do sério, representada por uma metanarrativa única e homogeneizadora, soberana no mundo contemporâneo, à semelhança de outros momentos históricos, e que atravessou a universidade desde o seu nascimento no século XIII, desvitalizava a intensidade do meu olhar. Para, então, ad-mirar o objeto desejado, busquei viver a heresia de experiências risíveis, instigada à autoderrisão pelo duplo Petrovich. A jornada para nomear o objeto do meu desejo foi tão árdua quanto foi abismar-me na sua direção. Nomeado e apreciado na perspectiva do riso e da arte bufa rabelaisianos, segundo o Rabelais de Bakhtin (1999), o projeto pedagógico do professor Petrovich lançou-me numa pluralidade de caminhos que convocavam a educação, a cultura, a arte e a religião, com igual vigor. Compreendi, por fim, a impossibilidade de precisar os limites entre o homem, o artista, o educador e o devoto, pois o que se projetava era o "ser-sendo". A busca por traços do riso medieval e renascentista foi motivada pelo anúncio de Bakhtin (1999) acerca do seu gradual desaparecimento a partir da Idade Mo-.

(15) 14 derna. Assumindo como verdadeira a assertiva de que o riso é constitutivo do Dasein (ALBERTI, 2002), pareceu-me possível encontrá-lo na contemporaneidade, demudado em manifestações distintas daquelas descritas por Rabelais. Iluminá-lo no projeto pedagógico de Petrovich seria potencializá-lo na direção de novas perspectivas que integram a historicidade, a corporeidade, a ambivalência e a quebra de hierarquias, como princípios do educar. Não pretendi uma biografia de Petrovich, nos moldes tradicionais. A inteireza do homem, todavia, suscitou o desenho da sua trajetória, ainda que em forma de fragmentos não ordenados cronologicamente, por coerência com o seu projeto e com a intensão das suas experiências e motivações. Para tanto, foi de grande valor a referência a Walter Benjamin (1984, 1985), em especial às suas reflexões acerca da filosofia da história, conceitos de alegoria e de ruína, que rompem com o sentido de totalidade e de encadeamento lógico. O método alegórico foi, então, o caminho para dizer de um outro que desde sempre apontava abertura e incompletude. A alegoria benjaminiana, como procedimento estético, está intrinsecamente relacionada ao modo como esse autor compreende a história. Se para ele, o estilhaçamento é aquilo que inscreve na ordem da significação, dissecar a vida de Petrovich seria o que fatalmente a constituiria como fonte de saber. Desde esta mesma visada, a palavra é concebida como experiência do ser, de ser, e não se reduz a um arbítrio da convenção formal e utilitária que a considera unicamente instrumento de comunicação. Por esta forma, ainda que o riso e a arte bufa, imbricados na educação petrovichiana, tenham sido especialmente tratados a partir do estudo de Bakhtin (1999) – "Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais" - recorri também a fontes literárias, ligadas ou não à dramaturgia, igualmente importantes para a compreensão do riso cômico popular. Con-.

(16) 15 soante com o método alegórico, esta opção implica reconhecer a multiplicidade histórica de línguas e de sentidos que fogem a todo esquema classificatório, tornando impensável qualquer tentativa de apropriação. Tratar do riso e da bufonaria, referir-me ao tensionamento entre estes e o pensamento sério, inevitavelmente convocou Nietzsche, em especial o Assim falou Zaratustra e Ecce Homo, sem deixarmos de considerar os diálogos travados entre Apolo e Dionísio n' O nascimento da tragédia. A escrita do filósofo, especialmente nas falas de Zaratustra, apresenta a abertura aqui desejada como possibilidade de "deixar ler" este texto. Nomeado por Ferraz (1984), como bufão dos deuses, Nietzsche, segundo Alberti (2002), contempla fartamente o riso na sua obra. Ressalto, contudo, que a despeito da necessária e vigorosa contribuição deste filósofo, o foco de análise centrou-se no Rabelais de Bakhtin (1999). O caráter de oralidade, característica da praça pública, foi apreciado através da narrativa de estudantes, de colegas e de amigos de Petrovich, incluindo falas da sua companheira e dele próprio, que delinearam o cenário e recriaram a história. Essa cont'ação e esse compartilhamento de experiências favoreceram-me com os fios para urdir a trama que pretende tecer memórias que vão sendo apagadas pelo afã da novidade e pelo tempo vazio da produção capitalista, conforme discutido no texto O narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, de Walter Benjamin (1985). O que pôde ser narrado, fez-me compreender que a morte de Petrovich não silenciou as suas inquietações; o seu riso e o seu espanto continuam criando tensionamentos através daqueles que, como ele, sonham e realizam uma educação demasiadamente humana..

(17) 16. ATO I – PARINDO BRASAS Cena 1ª : Eu rio. E mar... Éramos uma família pequena: pai, mãe, e três filhos. Na nossa casa dialogavam o pensamento sério do meu pai e o riso da minha mãe. Ele representava a autoridade e a observância às normas; ela incitava à burla e à aventura criativa. Ele mostrava-se reservado; ela brincava, dançava e contava histórias; ria de si e ria dos outros com a mesma desenvoltura; era dada a pequenos pecados e a grandes encenações. As histórias contadas, cantadas ou dramatizadas jamais se repetiam – o Eterno Retorno nunca era o mesmo. Adormecíamos acalentados com as músicas que minha mãe aprendera na infância pobre; não poucas vezes essas músicas (muitas inventadas) traziam palavrões que, tornados palavras, eram implicados em jogos de linguagem. Com histórias sem.

(18) 17 fim, com brincadeiras de palavras, com pequenas e risíveis transgressões, minha mãe me ensinou a ler a vida às avessas. As leituras do mundo lá de fora, que não conhecíamos, chegavam-nos através do meu pai. Sério, ele contemplava minha mãe e ria, cuidando para que pudéssemos em liberdade brincar de deuses, construindo e desconstruindo mundos e sonhos. A seriedade paterna deixava-se seduzir pela alegria e, amorosamente, generosamente, abria-se ao diálogo. Dele herdei o gosto de tecer com letras. Ler e escrever, ensinou-me, são experiências de fronteira. Minha infância era o fio tensivo entre o riso e a seriedade6. O princípio carnavalesco adentrava nossa casa, sem que nos déssemos conta, através da palavra livre, destituída de caráter obsceno, que desmontava a seriedade e recriava uma nova ordem, na qual a oralidade garantia sentidos de inacabamento e abertura. A pândega de minha mãe que por vezes nos irritava; a autoderrisão que não compreendíamos; a cozinha como lugar de reunião para compartilhar da mesa e da palavra; a mistura de odores e a abundância, deixavam transitar, burlando censuras, a verdade. Nossa casa era também o lugar de encontro para as festas familiares; da grande fogueira de São João, das quadrilhas e balões coloridos; da correria para fazer a canjica e o licor de jenipapo. Da máquina de costura saíam roupas coloridas e as máscaras de carnaval com narizes enormes que pendiam para baixo - hoje diria, à semelhança de grandes falos. Logo a seguir, na quaresma, queimávamos o Judas, geralmente feito com as calças velhas do meu pai e o resto dos fogos do São João passado. O testamento obedecia à tradição, incorporando rimas, troças e injúrias. Eram de praxe referências às peças íntimas e partes baixas do corpo. Minha mãe transformava tudo em riso e em brincadei-. 6. Hoje percebo a proximidade desta relação com o riso rabelaisiano que expressa, não a excludência de um dos termos, mas o diálogo com o pensamento sério, tensionando-o. Neste sentido, era tão importante a seriedade do meu pai, quanto o riso da minha mãe..

(19) 18 ras, fazendo predominar nas relações familiares, a espontaneidade e a alegria. Meu pai estava sempre por perto, sério e disponível para acolher. Eu cresci séria como ele; não herdei o riso largo da minha mãe, apesar de compartilharmos do choro fácil, do prazer de narrar e de brincar com palavras. Gradueime em psicologia e cansada do excessivo controle das práticas experimentalistas optei pelo sociopsicodrama. A vivência da corporeidade, a soberania do grupo e, sobretudo, a visada fenomenológica provocaram em mim mudanças significativas: da caixa de Skinner para o palco moreniano. A psicanálise, discurso hegemônico na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde eu estudava, por outro lado, parecia-me subtrair a ação performativa, possível apenas pela via do corpo em cena. Posteriormente, o trabalho com psicóticos, com doentes terminais e com moradores de rua permitiu-me enxergar e viver as perversões das políticas públicas e das práticas profissionais. A convivência com a morte, com a loucura e com a miséria fez ecoar em mim o riso da minha mãe. Abandonei a clínica e solicitei transferência da Secretaria Municipal do Trabalho e Desenvolvimento Social (SETRADS), onde trabalhava com moradores de rua, para a Secretaria Municipal da Educação e Cultura (SMEC), ambas da Prefeitura de Salvador- Bahia. Estudei literatura infantil, filosofia com crianças, mas nunca pude, de fato, contribuir com a escola pública, considerando o rigor com que eram seguidas as determinações do Ministério da Educação e Cultura (MEC), que não comportava perspectivas diversas. E antes que pisassem no meu jardim e matassem o meu cão, antes que já não pudesse dizer nada, saí para iniciar um novo projeto: tornar-me professora. Como primeira providência, fiz um curso de clown. Ser professora passava pelo meu corpo e este estava gradativamente conformando-se à estrutura do MEC, co-.

(20) 19 mo que esquecido das lições aprendidas com as ruas, com a morte e com a loucura - as amarras e a seriedade do poder circunscrevem-se nos corpos. Projetada por perguntas que me inquietavam, cheguei ao Programa de Pósgraduação da. Faculdade de Educação da Universidade. Federal da Bahia. (FACED/UFBA). Instigada pelo Ser-sendo da filosofia (GALEFFI, 2001) e pelo lema de Píndaro "como alguém se torna o que é", subtítulo de Ecce Homo (NIETZSCHE, 1985), tomado por Larrosa (2002) para discutir o conceito de formação, procurei cumplicidade na linha de pesquisa Filosofia, Linguagem e Práxis Pedagógica. O mestrado sinalizava a necessidade e as possibilidades de re-inscrever as idiossincrasias do meu processo de formação como síntese – apenas posteriormente percebi que estas não cessam de acontecer. Em seguida, a busca por um orientador, dificuldade compartilhada por muitos que intencionam ingressar no programa de pós-graduação, algumas vezes interferindo na escolha do tema de pesquisa, lançou-me na direção do riso, interesse da professora Mary Arapiraca, FACED. Aos poucos, contudo, fui secretamente atraída pelo caráter incomum e provocador deste; e o que era ardil me arrebatou a alma. Vale, aqui, uma pequena digressão para ressaltar o número restrito de professores e de vagas oferecidas em tais programas, diante do grande contingente de pessoas que hoje buscam a formação stricto senso, muitas pressionadas pela exigência do mercado de trabalho que transformou a educação numa importante fonte de produção de serviços e de capital. As primeiras leituras sobre o riso logo me conduziram aos estudos de Bakhtin (1999) sobre a obra de François Rabelais. Interessei-me, particularmente, pela relação com a cultura popular e com o corpo, pelo resgate da historicidade, pelos rituais de inversão da praça pública e pelo caráter restaurador. Também as referências de Alberti.

(21) 20 (2002) a George Bataille, a Nietzsche e a Foucault incitavam a minha curiosidade, ao referir-se ao riso como a experiência radical do "não-ser", do "não-saber" e do "nãoconhecer". Como o vigor do riso medieval estava muito próximo dos ritos da antiguidade, sinalizando o eterno conflito entre Dionísio e Apolo (NIETZSCHE, 1992; DETENNE, 1988), pressenti nele ressonâncias com o que indicavam os pensadores citados por Alberti (2002). Diversamente da síntese dialética, o diálogo entre os deuses, entre o riso e o pensamento sério era tenso e aberto, assim como as recordações da minha infância. Por isso, a idéia inicial de converter o riso em recurso pedagógico pareceume saída simplista e estratégia consoante com aquelas comumente utilizadas pelo poder oficial para matar a intensidade das grandes revoluções. A primeira versão deste projeto, que propunha utilizar textos cômicos para investigar a performance (ZUMTHOR, 1993) do professor, cedeu lugar à observação dos rituais da sala de aula e, posteriormente, a preocupações com a universidade, presentes desde a ocasião que escrevi o texto Universidade e Virgindade7, produzido imediatamente após a entrevista para seleção ao mestrado. Neste, associava o vazio experimentado no dia seguinte à perda da minha virgindade, ao sentimento que me tomava após a referida entrevista. Parafraseando Heidegger (1999), perguntava-me: O que é isto – a virgindade? O que é isto – a universidade? Na disciplina Educação e sociedade8, já como aluna regular, prossegui com as investigações acerca da universidade, considerando suas finalidades e modos de operar a partir da razão técnico-instrumental. Foram fundamentais os diálogos com Boaventura de Sousa Santos (2001; 2004; 2005), além do contato com os princípios do Fórum. 7. Não publicado. Disciplina obrigatória do Programa de Pós-Graduação da Escola de Educação da Universidade Federal da Bahia. Cursada em 2004-1. 8.

(22) 21 Social Mundial (ALTERNATIVAS, 2002). O trabalho de conclusão da referida disciplina foi o texto A Universidade e suas contradições (FERRAZ, 2004). Nos moldes de uma Educação pela pedra9, ia surgindo e se rebelando contra qualquer tentativa de definição prévia, dolorosa e vagarosamente, o objeto desta pesquisa; de pedregulho a pedra, tornava-se e tornava-me outra: Daí porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala à força. Daí também porque ele fala devagar: tem de pegar as palavras com cuidado, confeitá-las na língua, rebuçá-las; pois toma tempo todo esse trabalho (MELO NETO, 1977). A educação sertaneja requer disposição para a dor que se sabe necessária e inevitável; requer a paciência para rebuçar o objeto e, na intimidade da boca, saboreá-lo, convertendo-se e convertendo-o naquilo que é e que se é. A dureza e a materialidade da pedra sinalizavam-me, finalmente, que assim como o verbo se fazia carne, o riso também necessitava ser encarnado. Foi então que assisti à peça Escorial, de Michel Ghelderode (1950) que narra a dor do bobo Folilal10 pela eminente morte da rainha. Os diálogos com o rei desvendam a trama do poder e as tentativas de Sua Majestade para esquecer a própria finitude. Convocado para divertir o rei, o bobo, referindo-se aos cães que uivavam pressentindo a morte, diz com ironia: "[...] Eu os acariciei; aos vossos cães. Sei falar com os reis e com os cães, Majestade. Mas estes últimos, realmente, me enternecem". O rei ordena-lhe: "[...] Se conseguires fazer-me rir durante o funeral, o mundo inteiro falará na dor magnânima do rei. Procura fazer-me rir!...". Um paradoxo se estabelece: o riso é, então, 9. Melo Neto (1977) título do poema encontrado na obra “Educação pela pedra e depois”. Em inglês, fool significa louco. É interessante, também observar que o verdadeiro nome de Triboulet, primeiro bobo a tornar-se personagem central quando reinava Francisco I, é Felial (MINOIS, 2003). Num outro texto de Ghelderode (1990), Escola de Bufões, o mestre também se chama Folial, assim como um ex-discípulo, ambos da corte do rei Felipe. 10.

(23) 22 dor profunda? Os cães uivam ininterruptamente: que relação existe entre o riso e a morte? Prosseguindo com a farsa, Folial sugere, com típica astúcia, uma inversão de papéis: o rei poderá rir às gargalhadas, um riso flamengo como deseja, e gozar a liberdade de um bobo; a este, como homem, será concedido sofrer a perda da sua amada. Encerrado o jogo, reassumindo a coroa, o rei ordena a morte do bobo à semelhança dos ritos antigos e medievais nos quais o sacrifício deste, sagrado rei nas festas populares, significava a reinstauração da norma. Pesaroso, o rei confessa: "[...] Uma rainha, padre, não é difícil de substituir; mas um bobo da corte...". A despeito da hegemonia do pensamento sério dogmático, o riso como constitutivo do Dasein, enredava-se de forma subversiva nas brenhas do mesmo poder que, contraditoriamente, ao tempo que tentava matar a sua intensidade, dele se alimentava. Sobrevivendo além muros das instituições, na cultura popular e nos carnavais, através da figura do bobo, o riso transitava nos interstícios do poder - o bobo, o bufão, o tolo, o pícaro serão aqui tratados como sinônimos, referindo-se àqueles que transitam nos entre-lugares, provocando a tensão entre o riso e o pensamento sério; convivem com o poder, incitando-o à autoderrisão; representam a cultura cômica popular, a ambivalência e a historicidade. Procurando o riso rabelaisiano na universidade, encontrei seus rastros na vida e na obra do professor Felippe Serpa11. O tom irônico do seu discurso, a estreita relação com a cultura popular, a disposição para dialogar com as diferenças, a utopia de uma "Comuniversidade" e de uma "Universitas", indicavam um projeto pedagógico para a universidade, essencialmente político e enraizado na vida. Personagem controversa, dialogava com o poder, mantendo a tensão entre o instituído e o que se instituía por 11. Reitor da UFBA no período de 1993-1998, professor da Faculdade de Educação. Falecido em novembro de 2003..

(24) 23 cumplicidade com grupos de estudantes e de populares, principalmente. Pesquisaria, então, sobre como a arte desse professor constituía-se como emergente de uma razão que Maffesoli (1985) chama de "sensível", como alternativa contra-hegemônica à razão técnico-instrumental na universidade. A segunda versão do projeto recebeu o título provisório de O riso na Universidade: Felippe Serpa, um bobo na corte da FACED. A apresentação desta idéia em salas de aula, contudo, causou perplexidade e desconforto para alguns, por qualificar de bobo o professor Felippe - a despeito das referências que fazia a outros bufões, como Nietzsche, "bufão dos deuses" para Ferraz (1994); Demócrito e George Bataille. O que significava, afinal, esta comoção? Por que incomodava mais o qualificativo bobo para o professor Felippe que o de corte, conferido à Faculdade de Educação da UFBA? Ao longo dos anos, a palavra bobo perdeu o vigor e restringiu-se apenas àquele indivíduo que provoca o riso por seu discurso tolo e pouco inteligente. A tolice como máscara e como disfarce da agudeza do espírito irônico, e da burla de paradigmas, passou a existir apenas na literatura, tida como não-ciência. Mas a proposta da universidade não é o pensamento radical? A busca desta radicalidade não implica em re-velar "a palavra do poder" e "o poder da palavra" (GONÇALVES FILHO, 2000)? Mais uma vez o riso seria proscrito da universidade, como acontecera na Idade Média? O pensamento sério se constituía, então, restrição para a radicalidade? O riso consentido era aquele previsto e institucionalizado na forma de recurso pedagógico? Denominar de bobo o professor Felippe Serpa conferiria estatuto de verdade ao seu discurso, considerando que um dos papéis do bobo nas cortes era anunciá-la? Que verdades eram por ele anunciadas e denunciadas? Certamente Felippe Serpa sentir-se-ia provocado por essas questões, penso; contudo, as dificuldades encontradas levaram-me à busca de uma nova personagem que, em vida, aceitasse o desafio de auto-denominar-se bobo..

(25) 24 Determinada em investigar o riso e o espírito bufo na universidade, agendei um encontro com Carlos Roberto Petrovich, professor da Escola de Teatro da UFBA, com quem alguns meses antes compartilhara a minha angústia diante do riso. A proposta de tomá-lo como um bufão, certamente um a priori, arrancou-lhe gargalhadas. Não se tratava de preencher uma vaga, mas de saber se o papel de bufão lhe cabia. Com 69 anos, reiterou que não poderia perder uma boa proposta de trabalho, e reconhecendo seu estilo por vezes burlesco, aceitou o desafio. Decidiu que me contaria sua vida em dez capítulos: era a estratégia que vinha pensando para melhor organizar suas memórias (10 vezes 7). Alertou-me para o perigo do pesquisador se apaixonar pelo objeto – tema também da conversa que tivemos em 2004: O grande perigo é esse: esse é o perigo do amor, da paixão. Esse encontro é um perigo... (PETROVICH, 2004). A sedução pelo perigo, então, daria intensidade às nossas buscas. Estabeleceu uma cláusula: tratar sua vida com carinho e com respeito. Petrovich era eloqüente na fala e no corpo; às vezes, contudo, ficava quieto e em profundo silêncio, escutavame. Empolgado por protagonizar mais uma história, tornado personagem, apresentou-me fragmentos da sua arte bufa: insistia em estabelecer vínculos entre a universidade e a cultura popular, vivia uma relação de sensualidade com o corpo, realizava inversões pouco convencionais, utilizava com naturalidade palavras obscenas nas suas narrativas; abusava do riso e da farsa (muitas vezes se dizia um tolo, um velho tolo, antecipando profundas e contundentes reflexões). Três dias após esse nosso encontro, ele morreu. Ogan do Terreiro de Ilê Axé Ôpo Afonjá; professor, ator, diretor. No dia 28 de abril de 2005 foi enterrado ao som da.

(26) 25 música tema de Um tal de Don Quixote12. O clima de comoção, de cantorias e de narração de aventuras quixotescas, embalou a partida daquele que marcou a história do teatro e da educação baianos pela força da criação coletiva. Uma pergunta me acorria com insistência: o que será da universidade com a morte dos seus bufões? E como percebia muitos pontos em comum entre ele e Felippe Serpa, resolvi que meu trabalho poderia incluir ambos como memória daqueles com quem conviveram: estudantes, colegas, participantes dos projetos de extensão. Estrategicamente, mudei o título do projeto: O riso nos porões da universidade: a arte bufa de Felippe Serpa e de Carlos Petrovich. Mais uma vez, a mitificação ideológica da palavra assumiu valor de verdade e o poder instituído na academia operou, de forma velada, a censura. A palavra bufa passou a ser motivo de desconforto e de riso – o que a mim parecia coerente com o tema investigado. Entretanto, a desmitificação da palavra é, também, a desmitificação do poder. Vulgarmente, bufa significa "ventosidade que se escapa pelo ânus, sem ruído" (FERREIRA, 1986, p. 291). A ênfase no discurso do corpo em Rabelais (BAKHTIN, 1999) observa a vivência extremada do sexo, a glutoneria e a dificuldade em controlar as funções intestinais, como acontece com Dionísio, em As rãs, peça de Aristófanes apresentada em 405 a.C. (DUARTE, 1951). De acordo com Bakhtin (1999), Rabelais aponta para o lugar menor conferido ao corpo na Idade Média, pela Igreja; a saída pelo ânus faz referência a esse lugar ironicamente anunciado pelo deus do vinho. "Se escapa sem ruído", pode ser, por analogia, burla intencional e insidiosa, característi-. 12. Peça teatral que protagonizou em 1998, por ocasião da reinauguração do Teatro Vila Velha, homenagem à Sociedade Teatro dos Novos Ltda., fundada em 1960 por Petrovich, Othon Bastos, Sônia Robatto, Échio Reis, Thereza de Carvalho Sá e Carmen Bitencourt, após romperem com a Escola de Teatro da UFBA, onde eram estudantes (SOCIEDADE, 1960)..

(27) 26 ca própria do bufão, caso se considere o pronome reflexivo que antecede o verbo "escapar". É interessante observar, também, relativamente à noção de corpo individualizado e biológico que nasce com o fim do Renascimento, aquilo que Rabelais denomina de baixo material e corporal, fazendo alusão às partes altas do corpo e àquelas que estão no baixo ventre, representado pelo realismo grotesco – "sistema de imagens da cultura cômica popular" (BAKHTIN, 1999, p. 17) - na praça pública, nas artes, especialmente na literatura, e pelo bufão nas cortes. O princípio material liga a materialidade da vida ao cosmos e ao mundo social, tornando-se uma totalidade indivisível – ao se falar do corpo em Rabelais, leia-se, portanto, corpo social e universal. Partindo-se deste princípio, todo rebaixamento e degradação do que está no alto (valores instituídos) necessariamente implica numa aproximação ao corporal e ao material que, próximos à mãe terra, fecunda e faz nascer o novo: Os sinais de retorno à vida tem uma gradação manifestadamente dirigida para baixo: respira primeiro, depois abre os olhos (sinal superior de vida e alto do corpo). Depois assinala a descida: boceja (sinal inferior), espirra (mais baixo ainda, exceção análoga à defecação) e enfim solta um peido ("baixo" corporal, traseiro)... Trata-se, portanto, de uma permutação completa, não é a respiração, mas o peido que é o verdadeiro símbolo da vida, o verdadeiro sinal da ressurreição (BAKHTIN, 1999, p.336).. Ainda com relação ao alto e ao baixo em Rabelais, podemos citar o barrete usado pelo bufão, alusão à coroa real aberta no alto - o bufão é o rei do mundo às avessas. Enquanto no monarca, ali estava para receber a iluminação divina, referência ao alto dos céus e da cabeça, no bufão este alto é rebaixado na forma de bufa/peido, anunciando renascimento e transformação (NICHOLS, 1995). Assim, o riso da praça pública, ao tempo que degrada, também restaura..

(28) 27 O capelo, famoso chapéu utilizado nas cerimônias de formatura, também referência ao adereço cardinálico e de papas, parece cumprir a mesma função da coroa. Entretanto, em vez de um único rei e um único papa, nesses rituais é sagrada uma plêiade igualmente trajada, na qual não se distinguem bobos e soberanos. Quando todos se igualam ao poder, quando todos são doutores... Não podemos esquecer a desolação do bobo que acompanha o Rei Lear quando este enlouquece (SHAKESPEARE, 1977). A personagem bufão, de roupas coloridas e chapéu de guizos, de fala irônica e de modos grotescos, que fazia rir o poder (ou do poder), era o símbolo alegórico da cultura popular e da praça pública. A arte bufa, portanto, ao caracterizar o ofício do bufão, coloca em cena o povo – e o povo, sem fazer ruído, silenciosamente, adentra os muros do palácio. Seria, então, o odor desagradável da verdade o que, afinal, incomodava os convivas, na palavra bufa? Vale aqui uma referência àquilo que Rouanet (1984), no prefácio da obra Origem do drama do Barroco Alemão, de Walter Benjamin, considera ser a tarefa do filósofo: restaurar a dimensão nomeadora da palavra, a palavra adamítica que restitui às coisas o seu Nome. Vivenciei encruzilhadas próprias da tensão entre o discurso acadêmico regular e a palavra profana que guarda em si o eco distante dessa dimensão nomeadora original. A exigência por uma fundamental radicalidade na minha forma de escrever, foi o meu maior desafio. Também na letra que subsume o corpo está a história, e na história a palavra dilacerada e aberta – alegoria. Palavra da salvação! Perseguindo, ainda, outras expressões ou signos que remetessem à palavra bufa, encontrei a consagrada Ópera Bufa. Surgiu na Itália, na forma de quadros satíricos, chamados intermezzos, representados em frente à cortina, entre um ato e outro de uma Ópera Séria, ao modo das comédias que seguiam as tragédias, nas dionisíacas. As personagens eram pessoas comuns que retratavam as profissões e as classes sociais da.

(29) 28 época, descrevendo situações cômicas do cotidiano. A criada patroa, de 1773, a mais célebre Ópera Bufa, provocou uma disputa entre italianos e franceses, resultando na conhecida Guerra dos Bufões (querelle des buffons), em 1752, protagonizada pelo compositor Jean Phillipe Rameau e pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau que discutiam a primazia da ópera francesa ou italiana (ARTE, 2005). A bufonaria converteu-se, então, em status conferido a filósofos e a artistas que faziam dialogar o pensamento sério com o riso – a exemplo dos já citados Nietzsche, Sócrates, Battaile, Demócrito; também Luciano de Samósata, Rabelais, Homero; e mais, Rameau e Rousseau. Poderia pensar, então, que Felippe Serpa e Carlos Petrovich teriam reinventado uma arte, uma técnica que a um só tempo fazia-se práxis e poiésis, com características bufas, no reino da universidade? Dois anos, contudo, tempo estabelecido para conclusão de uma pesquisa de mestrado, não me favoreceriam o rebuço paciente e cuidadoso de dois espíritos tão grandiloqüentes. A escolha por um deles era inevitável. Optei, então, pelo projeto político-pedagógico do professor Petrovich, buscando ressonâncias com o riso e a arte bufa rabelaisianos, em respeito ao acordo que firmamos antes da sua morte. Pensar o homem e o mundo na perspectiva petrovichiana ensejou o trânsito pela arte, pela educação, pela cultura, pela religião afrobrasileira, como uma multiplicidade de caminhos que se cruzavam e entrecruzavam. Todavia, a universidade como foco justificavase, não apenas pelos projetos que nela desenvolveu, mas também, por representar, possivelmente, uma certa razão sensível que emergia do diálogo com o pensamento sério, num momento em que a universidade pública agoniza. Neste sentido, Petrovich vivia a universidade como esplendoroso espetáculo tragicômico, porque espelho da vida. Compreendendo, entretanto, a impossibilidade de separar em pedaços uma vida que sempre prezou pela pluralidade e plenitude existencial – o que necessariamente não im-.

(30) 29 plica na tentativa de estabelecer uma totalidade, mesmo porque Petrovich era dado a encruzilhadas, como muitas vezes repetia. A imersão no mundo deste professor através da escuta atenta dos entrevistados, e de sua própria fala, dos filmes e peças que realizou, fizeram-me perceber que seu projeto transpunha os muros da universidade, enredando uma pluralidade de espaços e modos de vida que exigiam a ampliação das minhas leituras e perspectivas, para além da universidade. Poderia o professor Carlos Petrovich, fazendo dialogar o pensamento sério com o riso, inspirar novas ontologias na educação? Seria possível reconhecer traços do riso e da arte bufa, segundo o Rabelais de Bakhtin (1999), no seu projeto político-pedagógico? Que idéia de educação pode ser pensada segundo o referido projeto? Aquilo que propus como objeto deste estudo convocou-me a refletir mais detidamente sobre questões de método: como me aproximar e dizer do objeto? E parafraseando Fernando Pessoa (2006), como dizer da alma de outrem quando quiçá possa eu dizer da minha própria? Considerando a morte de Petrovich, como falar do que não mais existe como fenômeno vivo, se o que busquei nele foi a en-carn-ação do riso?. Cena 2ª - Uroboros: o capeta morde o próprio rabo Caminó contra los jirones de fuego. Éstos no mordieron su carne, éstos lo acariciaron y lo inundaron sin calor y sin combustión. Con alivio, con humillación, con terror, comprendió que él también era in apariencia, que otro estaba soñándolo. (JORGE LUIS BORGES, 2006)13. O poeta provocou-me. Um homem sonha o seu Adão e se descobre, como ele, um simulacro. Sonha nas ruínas de um templo circular. Sonha apenas quando abdi13. Optei por utilizar o texto em espanhol por fidelidade ao autor. Em português, o conto pode ser encontrado em BORGES, Jorge Luís. Ficções. Tradução Carlos Nejar. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2001..

(31) 30 ca da intenção de sonhar. A provocação borgeana resultou na minha impertinência quando tentei, inspirada pelo sonhador, sonhar um outro diferente de mim e que também sou eu. As questões de método implicadas nesta investigação passaram, assim, a merecer cuidado especial, pois me inquietava o lugar daquele que fala do objeto e por ele é igualmente falado. O sonhador, na ação de sonhar, cria - à semelhança de Javé, de Krishna, de Chiva ou de Olorum – o objeto do seu desejo. É necessário, contudo, que o Pai lhe agracie com o esquecimento, assim como fez o sonhador de Borges (2006) com a sua criatura. Enquanto objeto e representação ela deveria esquecer a sua origem - o esquecer aparece como afirmação da história naturalizada que poupa o homem do horror da sua finitude; poupa-lhe da dor de saber-se mortal: tudo passa. Lembrar, contrariamente, é predicado/ação, é o fluxo incessante da história destino que a constitui como ser-sendo. É interessante que ao final da citação aqui apresentada como epígrafe, Borges (2006) refere que o homem ao ser poupado do fogo "comprendió que él también era in apariencia, que otro estaba soñándolo". O sentido de um passado interrompido no momento da iluminação me fez pensar: afinal, é apenas quando o Adão se percebe sujeito histórico que ele deixa de ser simulacro? O sonho não finda até que ele se perceba como tal14? Representaria o riso rabelaisiano a destituição de simulacros, considerando seu caráter essencialmente histórico? Este é o riso petrovichiano que tensiona as certezas da educação oficial15? Se assim, poderia afirmar que a educação oficial é simulacro? Deveria eu, como o forasteiro que brinca de deus, sonhar um homem: um ser que não preexistia ao meu desejo e que não se auto-representava até que eu o inten-. 14. Esta é a angústia da personagem Neo na trilogia Matrix, dirigido por Andy Wachowski e Larry Wachowski, lançado em 1999. 15 A educação oficial aqui significa aquela que está sob a égide do pensamento sério..

(32) 31 cionasse16, considerando que o projeto do homem Petrovich por si só não se constituía em objeto. Um sonho, contudo, inspira-se em fragmentos que jazem na forma de ruínas; são restos de um passado que aguarda ser salvo pelo alegorista. Petrovich, hoje, é a dispersão de lembranças narradas por aqueles com quem conviveu e também das minhas lembranças; é fala e imagem de um tempo pretérito congeladas em filmes e em fotografias. Atenta à circularidade do templo derruído, ciente da história que jazia adormecida, inventei sentidos para um Petrovich que se desconhecia; procurei desvios para provocar diálogos sobre o que poderia ter sido e que jamais se esgotará como possibilidade discursiva. Assim, a minha criatura, possível apenas na dimensão do objeto, como verdade será sempre indefinível; ainda que sonhar seja pretexto para uma volta recorrente, persistente e cuidadosa à matéria dos sonhos, às próprias coisas. A este esforço, Benjamin (1984) deu o nome de contemplação. [Compenetrada, contemplo-a]. De forma desconcertante, a criatura, ao ser animada pelo deus Fogo, gargalha a exemplo de Demócrito (c. 460-352 a.C.) que, supostamente acometido de loucura, ri de todas as coisas por considerar tolos os homens que "... como se as coisas fossem firmes e estáveis nesse mundo, vangloriam-se loucamente, sem poder reter sua impetuosidade, por faltar-lhes a boa razão, o discernimento, o julgamento..." (ALBERTI, 2002, p. 76). Mas não apenas a criatura ri de si e daquele que o criou; também o sonhador deve rir da sua desmesura e do seu Adão. Demócrito, diferentemente de Benjamin (1984), não acordaria a Bela Adormecida com o ruído da sonora bofetada dada pelo cozinheiro em seu ajudante17, fala-ia despertar com uma estridente gargalhada. Riria de si e da bela; riria do sonhador e 16. Quero aqui aludir à intencionalidade que dispõe ser e fenômeno, enquanto abertura e busca de sentido. "O cozinheiro é o próprio Benjamin, a bofetada é a que ele pretende dar na ciência oficial, e a heroína é a Verdade, que dorme nas páginas do seu livro" (ROUANET, 1984, p.11). Nesta parábola, Benjamin alude à recusa do trabalho que apresentara para concorrer à livre-docência na Universidade de Frankfurt. 17.

(33) 32 também do sonhado – esta é a característica que, segundo Bakhtin (1999), separa definitivamente o riso medieval e renascentista do riso moderno: o escárnio dos burladores – ainda que aqui tenha utilizado como ilustração o riso do pré-socrático, percebido como o avesso das lágrimas de Heráclito. A oposição citada, riso e lágrimas, é motivo da contenda provocada pela Rainha Cristina da Suécia que lança o desafio aos padres Antônio Vieira e Girolamo, ambos da Companhia de Jesus: "O que seria mais razoável, se o riso de Demócrito, que de tudo zombava, ou o pranto de Heráclito, que por tudo chorava"? (VIEIRA, 2001, p.101). A defesa de Vieira indica a impropriedade do riso diante da sordidez do mundo; crê que apenas as lágrimas sejam a expressão do verdadeiro sentimento de humanidade. Para o padre, longe de ser um sábio, Demócrito é vítima da loucura. Contaminada pela galhofada, a verdade é quem ri. E o arte-educador Petrovich, de que ri, afinal? Importa-me, aqui, identificar no seu projeto pedagógico características do riso rabelaisiano, descritas pelo pensador russo: caráter restaurador, ambivalência, caráter histórico, quebra das hierarquias, inversões, relação com o corpo, relação com a cultura popular, e diálogo com o pensamento sério. Aquilo que Rabelais reconhece como o riso da Idade Média e do Renascimento manifesta-se concretamente no fenômeno da praça pública e de forma mais emblemática e estilizada na figura dos bufões. As festas daquele período, e especialmente o carnaval dentre essas, apareciam como discurso que anunciava uma nova ordem. Diante de Petrovich, portanto, são inúmeras as questões acerca das formas de expressão do seu riso: as realizações petrovichianas na educação guardam caráter restaurador, se para Bakhtin (1999) o riso perdeu o seu vigor mais intensamente a partir da modernidade, quando foi transfigurado em expressões menores, a exemplo do humor e da ironia? Tais realizações promoviam o diálogo do pensamento sério com o riso, facul-.

(34) 33 tando a tensão necessária à instauração de uma nova ordem na educação? Considerando que a arte bufa teve lugar nas cortes monárquicas que antecederam o absolutismo, é pertinente denominar Petrovich bufão, num regime supostamente democrático? Afinal, em se tratando do método alegórico, apenas a partir das realizações de Petrovich tornar-se-ia possível conhecer o seu projeto e o seu riso. A alegoria como possibilidade de dizer do objeto, mira paradoxalmente um outro ausente, portanto, sua representação é por excelência, desvio. A morte de Petrovich, que de início parecia anunciar o silenciamento do meu interlocutor, mostrou-me que este estava mais próximo do silere, enquanto ausência de paradigma, silêncio da natureza e da divindade – oposto ao tacere que se reporta ao silêncio da fala (BARTHES, 2003) - e lançou-me no abismo de novas e múltiplas significações. Findo o homem encarnado, restou-me o sonho. A materialidade do objeto não estava no corpo concreto, mas naquilo que, no seu silêncio, continuava falando. E o silêncio de Petrovich instava-me a aludir à citação de Rouanet (1984, p.40): "...os personagens morrem, não para poderem entrar na eternidade, mas para poderem entrar na alegoria”; e pela via literária, a recordar Guimarães Rosa: "As pessoas não morrem, ficam encantadas" (2006). É interessante registrar, ainda, que para falar do projeto pedagógico de Petrovich necessariamente precisei conhecer o homem Petrovich. Este caminho foi orientado por uma compreensão de projeto que se faz intencionalidade, abertura e disposição do "ser-no-mundo". Assim como o objeto, o projeto também não pode preexistir àquele que se lança. Mas era esta a perspectiva de Petrovich? E como adotar tal premissa, considerando que as noções prosaicas de projeto incluem uma temporalidade que evolui.

(35) 34 linearmente, para além do sujeito desejante, transcendendo a materialidade da vida que se faz no instante? Qual a dimensão de projeto pensada e vivida pelo educador? O distanciamento do objeto de uma pesquisa deve evidenciar um espaço abismal no qual há irredutibilidade entre as pessoas da enunciação, indicando o caráter permanente de construção de ambos. Petrovich advertiu-me, no nosso último encontro, sobre o perigo que eu corria de me apaixonar pelo objeto. Mas não é o desejo dos apaixonados tornarem-se apenas um? Se assim for, a paixão seria essencialmente o si mesmo, e o silenciamento do outro implicaria na cessação do dissenso e da tensão, facultando a hegemonia de um regime discursivo único e fechado. Paradoxalmente, deste lugar, a paixão seria a morte dos apaixonados. Mas pode esse Um ser pensado como multiplicidade e diferença, e neste caso a paixão seria a confirmação do diferente no mesmo e pelo mesmo. Este foi um exercício árduo que me mobilizou por longo tempo durante a investigação, e especialmente durante a escrita. Temia silenciar Petrovich, matando sua intensidade com a minha letra. Dialogando com o Ser-sendo da filosofia (GALEFFI, 2001), percebi que a paixão por Petrovich prenunciada poderia, afinal, ser pensada enquanto páthos - "... tolerar, deixar-se levar por, deixar-se convocar por. (...) ... abertura do ser do ente em seu acontecer – temos acesso ao sentido do ser-sendo, isto é, do nosso próprio ser-aí" (p. 153). Este sentido ia ao encontro do depoimento de Vanda Machado que me fez refletir acerca do lugar da paixão na academia, e por extensão, a relação que esta mantém com a ciência: Olhar para o outro, ouvir o outro é o menor caminho para a paixão. É preciso muita ciência para se falar de cuidado e paixão.Talvez seja o contrário: é preciso paixão para falar de ciência. A ciência para mim sempre começou no meu coração, na minha alma, no meu corpo todo, todinho (VANDA MACHADO, 2005)..

(36) 35 A professora trata da sensualidade de uma ciência que a atravessa de forma radical para se fazer gaia. Se assim também compreendo, o perigo advertido converterse-á em salvação desde que não haja desmesura (hybris). E a desmesura, neste caso, seria o apagamento dos limites que permitem a alteridade; ou melhor, seria desconhecer a diferença do diferente. A advertência, se concebida na dimensão do páthos, pode ser pensada como conselho, como provocação e, finalmente, como disposição para ser afetada pelo outro, sem contudo tornar-me ele. [Este enredamento páthos-lógico entre a minha alma e a de outrem seria, então, o lugar do encontro? Apenas o encontro pode ser dito?]. Ressalto, assim, que o percurso para definição do objeto deste estudo resultou num processo indissociavelmente ligado à construção e delimitação de um método investigativo consoante com a sua natureza. Tomar a vida de alguém como objeto de análise, que por antecipação pareceu-me escolha tosca, posteriormente se mostrou como um grande desafio por compreender que "Não se trata apenas de narrativa, é antes vida primária que respira, respira, respira" (LISPECTOR, 1984, p. 33), como revela aquele que pretende, como ofício, dizer de Macabéa18. Dizer de um outro é sempre fonte de grande angústia e, dependendo do sujeito que investiga, fonte de gozo, também. A alma de outrem se re-vela como inalcançável, irredutível e efêmera, assim como a minha própria; e apenas na medida em que elas se implicam podem anunciar-se. Abdiquei do desejo de sonhar para que o sonho se fizesse, pois. "O saber é posse", afirmou Benjamin (1984, p.51), e para contemplar o silêncio ensurdecedor do objeto, diz ele, é preciso estar destituído de qualquer pretensão de aprisioná-lo na consciência. Assim, também, procedeu o sonhador de Borges (2006): Abandonó toda premeditación de soñar y. 18. Personagem do livro A Hora da Estrela (LISPECTOR, 1984).

(37) 36 casi acto continuo logró dormir un trecho razonable del día. Las raras veces que soñó durante ese período, no reparó en los sueños. Não aprisionar Petrovich significava não tomá-lo por antecipação, não desejá-lo como sonho sonhado, mas como possibilidade que se constituía na medida da nossa disposição: eu como alegorista, ele como ruína. Foi assim que a natureza do objeto deste estudo, tornou-se indicativa de escolha da alegoria como método de trabalho. A partida de Petrovich me possibilitou escutar a sua gargalhada, anunciando o reino da história-destino: "A concepção da história-destino ordena-se em torno da figura da morte. Ela é a verdade última da vida, o ponto extremo em que o homem sucumbe à sua condição de criatura. Ora, a alegoria significa a morte, e se origina através da morte" (ROUANET, 1984). Na história-destino o riso ecoa; no diálogo com o pensamento sério, transmuta-se em ruína. Vida e morte rebordam na imanência absoluta do drama barroco, expressando, nas palavras de Rouanet (1984, p.32), "...a tristeza de um mundo sem teleologia...". Nesta epopéia lúdica, lúgubre e risível a transcendência aparece como um jogo ilusório. A imanência pressupõe uma "... relação intensiva do objeto com o tempo, do tempo no objeto, e não extensiva do objeto no tempo, colocado como por acidente num desenrolar histórico heterogêneo à sua constituição", afirma Gagnebin (2004, p.11), inspirando-se em Benjamin (1984). Se, portanto, há uma imersão do tempo no objeto e este é constitutivamente histórico, a idéia de uma origem remete à tensão entre a destruição crítica e a promessa de redenção, apontando para a impossibilidade de reconstituição fiel dos fatos, pois enseja abertura e inacabamento. A visada imanentista de Benjamin (1984), que refuta qualquer forma de transcendência, advoga uma concepção de história enquanto natureza, destino e devir, restaurada através da história naturalizada por um fazer político estabilizador que, na.

(38) 37 tentativa de salvar o passado, transforma o mundo num campo de ruínas - cada fragmento é expressão condensada tempo/espaço, portanto, acontecimento. Petrovich, personagem desta narrativa, converteu-se numa história na qual todo pedaço passou a ser início e fim em si mesmo. O vigor da sua existência, impossível de ser recuperado, será para sempre um estilhaçamento de cronologias heterogêneas e de relatos contraditórios19. O esquartejamento da personagem é o que a torna objeto de significação alegórica; para tanto, contudo, é preciso arrancá-la do seu contexto, privá-la da sua vida para, enquanto ruína e fragmento, significá-la no registro da alegoria. E alegoria implica, em sentido literal, dizer do outro e no outro; de um outro que se é, como história, aberto, inconcluso e transitório, portanto, inacessível do ponto de vista da totalidade. O método benjaminiano é, por excelência, o tratado, e para o pensador,"Método é caminho indireto, é desvio" (BENJAMIN, 1984, p. 50). O mergulho na imanência do objeto, desta forma, encerra um paradoxo: tristeza e luto pela ausência de um sentido último, e alegria conseqüente dessa ausência, na medida em que possibilita abertura e novas significações. O pensador alemão associa sua escrita a um mosaico: incorpora o caráter fragmentário e deixa que a verdade fique para o leitor. Talvez esta seja, afinal, a tentativa de ler o mosaico da vida de Petrovich, ou ler o projeto petrovichiano como um mosaico, sem que eu possa afirmar que o reconstruí com a vitalidade de um tratado. Petrovich é o que jaz na forma de ruínas a serem significadas pelo alegorista. Enquanto texto, assinala uma incompletude composicional que permite àquele que o lê a atribuição de sentidos próprios e apropriados. E como um outro que me constitui, mas. 19. Toda narrativa reflete o desejo de preservação como memória no caos originário da história-destino..

(39) 38 também um não-eu, a decifração da sua alma é igualmente a da minha, numa radical perspectiva dialógica. A inquietação como dizer da alma do outro, quando quiçá possa eu dizer da minha própria?, entretanto, perpassará toda esta pesquisa, considerando que Petrovich e o seu projeto pedagógico foram aqui abordados a partir do caráter inacabado das narrativas produzidas no encontro com amigos, colegas e estudantes que com ele compartilharam. Sujeito e objeto entrelaçam-se e "Um relâmpago. Dionísios aparece na sua esmeraldina beleza. Sê sensata, Ariadne!... (...) Eu sou o teu labirinto..." (Nietzsche, 1986, p. 67-68)..

(40) 39. ATO II – O FIO DE PETROVICH Este ato inclui a tessitura do fio que me conduziu pelos labirintos petrovichianos, a exemplo da estratégia utilizada por Teseu. Foi tecido na vertigem do encontro com o professor Petrovich e com aqueles que, entrevistados, o inventaram a partir do que lhes foi possível re-cordar e narrar, parafraseando García Márquez (2002). Realizei entrevistas que incluíram estudantes e professores da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia; amigos e colegas de trabalho; participantes da Atividade Curricular em Comunidade (ACC-UFBA); Griô Kaiodê: contando histórias com alegria20; a Iyalorixá do Terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá; além de vários contatos. 20. Projeto concebido e coordenado por Carlos Petrovich e Vanda Machado. Parceria Escola de Teatro UFBA e Didá Escola de Música..

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