Discutida a questão da distribuição diatópica das variantes em exame, focalizamos neste item a dimensão léxico-semântica dessas unidades lexi- cais.
Inicialmente, é importante registrar que a ave comumente cognomi- nada de joão-de-barro habita o imaginário popular do povo brasileiro, sendo portadora de muitos mitos, dentre eles, o de animal sagrado, em oposição ao bem-te-vi, que é tido como ave de mau agouro. O relato documentado por
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Banducci Júnior (2007), reproduzido a seguir, ilustra bem o exposto, ao mes- mo tempo em que ratifica a manutenção da variante lexical amassa-barro na fala do homem pantaneiro:
O joão-de-barro ou “massa-barro” como é conhecido no Pantanal, é uma ave “abençoada” porque, segundo a crença popular, quando Cris- to foi perseguido pelos romanos, ele chamou o amassa-barro para fazer uma casa em que pudesse se esconder. “A casa do ‘massa-barro’”, diz um informante, “é ‘vorteada’ assim, por dentro, ninguém sabe o que tem lá dentro”. Protegido, Cristo foi no entanto denunciado aos romanos pelo bem-te-vi que, à passagem dos soldados diante da casa, dizia: bem-te- vi, bem-te-vi. “Daí”, continua o peão, “os romanos perceberam que ele tava lá dentro e pegaram ele prá judiá. Até hoje o bem-te-vi, quando caga, solta a erva de passarinho nas plantas que acaba matando elas” (C. B. 55M) (BANDUCCI JÚNIOR, 2007, p.126).8
A pesquisa de Banducci Júnior foi realizada no Pantanal da Nhecolândia, município de Corumbá, cidade onde a vitalidade de amassa-barro também é evidente na cultura local. O Centro de Artesanato Massa-Barro, importante ponto turístico da cidade, em virtude da variedade de produtos artesanais lo- cais disponibilizados aos visitantes, é um exemplo disso, já que foi nomeado com um termo regional arraigado na cultura e na linguagem dos habitantes dessa faixa de território sul-mato-grossense.
Do ponto de vista linguístico, importa registrar que a unidade lexical
amassa-barro integra, a par de joão-de-barro, o Vocabulário ortográfico da lín- gua portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras,9 desde a sua primeira
edição (1981), o que certifica o seu estatuto no léxico do português do Brasil. A expressão amassar barro aparece no Diccionário da lingua portugueza, de An- tonio de Moraes Silva (1813 [1922]), na acepção de ‘fazer em massa branda’. A ação de ‘amassar barro’ provavelmente tenha sido a motivação para o sur- gimento da variante lexical amassa-barro para designar a ave que, paciente- mente, constrói sua casa de barro amassado com o próprio bico.
8 O Dicionário do Brasil Central: subsídios à Filologia (ORTÊNCIO, 1983), em extenso verbete dedicado à variante
“joão”, registra muitas histórias sobre o pássaro joão-de-barro, que enaltecem várias lendas que povoam o imaginário popular do homem centroestino a respeito desse pássaro. Além dessa lenda contada pelo pantaneiro, que se centra no valor “sagrado” do joão-de-barro e no caráter “excomungado” do bem-te-vi, o dicionário registra outras que enfocam a relação do pássaro com o tempo, com o ciúme, com a arquitetura.
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Antenor Nascentes (1966), no verbete joão-de-barro, registra que o uso de “joana”, para designar bichos, decorre do “costume de, com valor afetivo, dar a bichos nomes de gente”, que, no caso do pássaro em tela, o uso do se- gundo formante é motivado pelo fato de esse pássaro construir “de barro o seu ninho”. Já no verbete amassa-barro, esse mesmo lexicógrafo registra: “de
amassar, do pref. a-, massa, q.v. e desin. -ar e barro, q.v. V. joão-de-barro”.
A terceira edição brasileira do dicionário de Caldas Aulete (1980) registra: amassa-barro s.m. (bras.): o mesmo que joão-de-barro. F. amassar+barro; joão- de-barro s.m. (bras.): “ave dendrocolaptídea (furnarius rufus, Gm). Também lhe chamam amassa-barro, barreiro, forneiro, joão-barreiro, joão-de-barros,
maria-de-barro, oleiro e pedreiro”.
Já A. B. H. Ferreira (2004) define joão-de-barro como um brasileirismo com a acepção de “designação comum a várias aves passeriformes furnariídeas (Furnarius rufus, F. leucopus, F. minor, F. figulus e F. r. badius). A espécie mais comum é a F. r. badius, do S. E. do Brasil, de peito cuja cor varia do vermelho ao branco, e corpo cor de canela [Sin.: joão-barreiro, barreiro, amassa-barro,
maria-de-barro, oleiro, forneiro, pedreiro. Pl.: joões-de-barro]. Amassa-barro,
por seu turno, é uma unidade lexical registrada pelo mesmo lexicógrafo como “[De amassar + barro.] s.m. 1. Bras. Zool. V. joão-de-barro. [Pl.: amassa-bar-
ros]”.
O Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001), por sua vez, classifica
amassa-barro como um regionalismo da Bahia e de Mato Grosso,10 o mesmo
que joão-de-barro, a designação comum atribuída ao pássaro.
Os dados do Projeto ALiB e do Atlas linguístico de Mato Grosso do Sul ana- lisados neste trabalho ratificam a marca dialetal registrada pelo lexicógrafo no verbete amassa-barro, no que tange ao Mato Grosso, estendendo-se, nesse caso, a marca de uso também ao Mato Grosso do Sul. O exame futuro dos da- dos documentados pelo Projeto ALiB nos estados do Nordeste evidenciará se essa variante lexical é produtiva também nessa região brasileira. Consideran- do que a região focalizada neste estudo abrigou grandes levas de nordestinos, principalmente de baianos, sobretudo nos séculos XVIII e XIX, na época da expansão do garimpo no Estado de Mato Grosso, é provável que a unidade
10 “Na Argentina ele é conhecido como ‘hornero (forneiro, devido ao formato do ninho, semelhante a um forno de
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lexical amassa-barro tenha sido disseminada pela região não só por paulistas, mas também pelos nordestinos.
Em síntese, as variantes lexicais amassa-barro e joão-de-barro configu- ram-se como signos transparentes quanto à motivação, na acepção de Alinei (1984). Segundo esse semanticista italiano, existem palavras transparentes e palavras opacas quanto à motivação: palavras “transparentes” são aquelas cuja etimologia (ou “motivação”) é ainda de todo evidente, ao passo que pala- vras “opacas” são aquelas cuja etimologia pode ser reconstruída somente por especialistas, mediante análise apropriada. No caso das unidades lexicais em questão, o significado básico de seus elementos formantes se mantém, daí a transparência quanto à motivação.
Considerações finais
Este estudo demonstrou que as palavras normalmente seguem as mes- mas trilhas do homem, e os rios, ao mesmo tempo em que delimitam fron- teiras, favorecem os movimentos migratórios e motivam o surgimento de povoados, fixando assim o homem e as palavras que eles veiculam. No caso es- pecífico deste estudo, a produtividade da unidade lexical amassa-barro e suas variantes, nos Estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, em localidades situadas ao longo do Rio Paraguai e de seus afluentes, pode ser explicada pela história social da região Centro-Oeste como um todo e pela desses Estados em particular. O Rio Paraguai foi um dos caminhos de acesso dos bandeirantes paulistas ao sertão mato-grossense. Em muitas localidades do interior de São Paulo, a unidade lexical amassa-barro também é usada para nomear o pássaro em questão, sobretudo pela população mais idosa. A posição geográfica das cidades também deve ter contribuído para a manutenção da forma na fala da população, pois, exceto Cuiabá, seu núcleo irradiador na área estudada, todas as demais localidades situam-se em regiões isoladas dos grandes centros ur- banos, o que contribui para a manutenção do caráter conservador da língua nesses espaços geográficos.
A comparação entre os dados do Projeto ALiB e os do ALMS confirmou a importância das pesquisas geolinguísticas na documentação de particu- laridades linguísticas de cunho regional, evidenciando a manutenção e a ir-
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radiação de unidades lexicais, muitas delas arcaísmos que se fixam em certas faixas de território, configurando-se como regionalismos. Os dados analisa- dos neste trabalho ampliam o estudo de Aguilera (2005) que, com base em da- dos coletados na capital mato-grossense, classificou amassa-barro como um regionalismo cuiabano, à medida que demonstrou que o uso dessa unidade lexical estende-se para várias outras localidades dos Estados de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul, o que lhe configura, pelo menos por ora em ter- mos de dados do Projeto ALiB, o estatuto de regionalismo mato-grossense e sul-mato-grossense.
E a Geolinguística vai assim descortinando caminhos de palavras e, por extensão, caminhos do homem.
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