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No Brasil, processos como a neutralização de vogais — que reduz o qua- dro de sete vogais tônicas para cinco pré-tônicas — estabelece, para Antenor Nascentes (1922 [1953]) e Mattoso Câmara Jr. (1953), a linha divisória entre os falares do Norte, que optam pela realização aberta das vogais médias, e os falares do Sul, que as realizam como fechadas, com exceção das palavras derivadas com os sufixos -inho/-zinho, -íssimo/-a, -mente, que mantêm, em posição pré-tônica, a vogal aberta de sua base, como, por exemplo, hist[]ria / hist[]rinha, b[]la / b[]lamente / b[]líssimo, s[] / s[]zinho, p[] / p[]zinho. Nas cinco cidades analisadas, duas no Nordeste, duas no Sudeste e uma no Sul, a oposição é evidente (Figura 11).

Figura 11 - Percentual de vogal pré-tônica média aberta na fala culta de cinco cidades brasileiras

Para um falante nordestino, as pré-tônicas fechadas são marcas da fala

carioca, mas a questão não se resume apenas a ser a vogal aberta ([]/ [] ou

fechada ([e] / [o]), mas a poder ocorrer o alteamento para [i] e [u], a chamada harmonização vocálica. Estudos mais recentes sobre esse processo, na pers- pectiva variacionista laboviana (LABOV, 1972), procuram mensurar o percen- tual de variação e especificar os fatores a ela relacionados, já que existe tripla alternância num mesmo dialeto e numa mesma palavra, como em m[e]lhor /

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m[i]lhor / m[]lhor. Esses estudos (BISOL, 1981, 1989b; CALLOU; LEITE et al.,

1995; CALLOU; LEITE; MORAES, 1991, 1998; YACOVENCO, 1993; SILVA, 1989; CASTRO, 1990; VIEGAS, 1987), entre outros, evidenciam uma baixa produ- tividade da regra (em torno de .30) de elevação da vogal, conforme se vê na Figura 12.

Figura 12 - Peso relativo de aplicação da regra de harmonização vocálica em cinco cidades brasileiras

Discute-se também uma assimetria de comportamento das vogais tôni- cas /i/ e /u/ como propulsoras do processo de harmonização. Em geral, é mais provável que a vogal anterior /i/ desencadeie o processo de elevação da pré- tônica média que a sua correspondente posterior /u/. Em todas as análises, as consoantes adjacentes podem também condicionar o processo de elevação. Para a vogal posterior, por exemplo, não é a vogal alta da sílaba subsequente que se mostra o fator mais atuante, mas sim o ponto de articulação do seg- mento precedente: os segmentos labial e velar são os maiores propulsores do processo na fala do Rio de Janeiro: peso relativo de .81, para os velares, e .78, para os labiais. Assim, é mais provável que se elevem as vogais posteriores de

moleque, bolacha e colégio do que as de soluço, rotundo, prodígio e sorriso. Só

se pode, a rigor, pois, falar de uma harmonização vocálica, no caso da vogal anterior. No caso das posteriores, a elevação é determinada primordialmente

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por ajustamento ao ponto de articulação da consoante precedente e, apenas secundariamente, pela altura da vogal tônica.

Pontos dignos de nota são (i) o de o alteamento ser mais frequente em falantes mais velhos, diminuindo gradativamente nas gerações mais jovens, uma curva ligeiramente descendente, indicativa, portanto, de diminuição da regra, e (ii) a questão de determinar se a elevação da vogal pré-tônica cor- responde a um único processo, sob o rótulo de harmonização vocálica, ou a dois tipos de processo: um de natureza fonológica, a tradicional harmonização vocálica — espraiamento do nó terminal [-aberto 2] de uma vogal alta para o núcleo vocálico antecedente, desde que seja uma vogal média; e outro, de na- tureza fonética, determinado pela configuração acústica dos segmentos con- sonantais adjacentes.

Considerações finais

A partir do que foi apresentado, pode-se admitir que o falar do Rio de Ja- neiro tenha suas marcas próprias, mas, excetuando-se a famosa palatalização, suas características fônicas servem também para definir outros dialetos, e seu comportamento, no universo das cinco cidades caracterizadas, é, em geral, intermediário, menos marcado, o que talvez explique, de um ponto de vista linguístico, que seja uma pronúncia considerada “padrão” dentro do conjunto dos falares brasileiros. Além disso, a cidade do Rio de Janeiro ocupa uma po- sição privilegiada, no que se refere à educação básica, apresentando a menor taxa de analfabetismo entre as 12 maiores capitais do país. A escolaridade mé- dia é de 8,2 anos, uma taxa insatisfatória para os padrões dos países desenvol- vidos, mas bem acima da média nacional de 5,5 anos.

De todo modo, embora, no que se refira estritamente a aspectos foné- ticos, não se possa traçar um feixe de isoglossas que determinem uma área dialetal carioca nítida, não se pode esquecer que um perfil da fala não é esta- belecido apenas por aspectos segmentais, mas também suprassegmentais. E isso é outra história...

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