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6 A DIVERSIDADE SEXUAL COMO PARTE DA AGENDA DA ARGENTINA, DO

6.1 EMPREENDEDORISMO NORMATIVO EM MATÉRIA DE DIREITOS DA

6.1.1 Uruguai e a lei 18.620/2009

Nos capítulos antecedentes tratamos de como o direito à diversidade sexual foi inserida no rol dos direitos humanos, dentro do Sistema Interamericano. A discussão desse tema em petições protocoladas em Órgãos pertencentes a esse sistema colocou em evidência a diversidade sexual, fazendo com que se iniciasse no âmbito interno de alguns Estado o debate acerca da criação de normas domésticas com especial direcionamento em acabar com o vergonhoso silêncio com o qual autoridades estatais trataram a população LGBT.

O Uruguai foi o primeiro país da América Latina a promover o debate legislativo acerca da diversidade sexual, mais especificamente do direito à identidade de gênero. No ano de 2009, após dois anos de intenso debate entre as Casas do Congresso da República, aprovou- se a Lei 18.620, que em boa hora positivou o direito ao livre desenvolvimento da personalidade humana conforme sua própria identidade de gênero.

A lei 18.620/2009 é fruto direto da aproximação e inserção da diversidade como um direito humano digno de tutela estatal, e sua publicação logrou importantes conquistas legais e simbólicas na luta contra a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Diz- se isso porque a partir da vigência dessa legislação, inseriram-se novas noções de cidadania plena em território uruguaio, em razão da politização de aspectos tradicionalmente considerados íntimos, além de denunciar a existência de um déficit democrático e de profundas desigualdades ao interpelar a hegemonia heterosexista em nível político e social naquela sociedade.

Desde o ano de 2006 o Uruguai vem mostrando-se vanguardista na prática de atos de empreendedorismo normativo em matéria de direitos da diversidade, proporcionando desde então, na visão do Autor Rubin Gayle277 uma renegociação da ordem sexual, na medida em que, devido à crescente mobilização e pressão do movimento pela diversidade em sua ordem interna, a fronteira moral que separava as sexualidades legítimas das estigmatizadas sofreu grande avanço, sobretudo através do reconhecimento de direitos e da viabilização de identidades em novo formato, no qual desprezaram-se de forma progressiva visões pseudocientíficas que as patologizava e estigmatizava. Com isso, o Uruguai gerou uma

277 GAYLE, Rubin. Reflexiones sobre el sexo: notas para una teoría radical de la sexualidad. In: Placer y

crescente visibilidade de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis, fazendo com que a própria sociedade passasse a cobrar do Estado ações para resolver as demandas e necessidades específicas dessa população tradicionalmente desatendida no tocante às políticas públicas.

Com espeque nas normativas internacionais, sobretudo aquelas esmiuçadas no capítulo terceiro, criou-se uma nova agenda de trabalho por parte do Estado, da qual a lei em estudo foi fruto. Por exemplo, de maneira inovadora, ao justificar a necessidade de aprovação da Lei de Identidade de Gênero, o Parlamento da República Oriental do Uruguai reconheceu dados colhidos por outros empreendedores de normas, a exemplo de organizações não governamentais, os quais, em 2009, apontavam para uma expectativa de vida das pessoas “trans” de no máximo 35 anos, devido à sua exclusão da vida familiar, do sistema educativo, do sistema sanitário e, sobremaneira, em razão do imperativo social do exercício do comercio sexual como única estratégia de sobrevivência, o que os expunha a todo tipo de violência social e estatal278.

Analisando com minúcia a letra da Lei 18.620/2009 é possível identificarmos o nível de avanço cultural e social encabeçado pelo Uruguai em matéria de identidade de gênero. No primeiro artigo, fica claro a inclusão do direito à identidade de gênero como um direito decorrente da personalidade da pessoa humana, o qual é protegido pelo artigo 72 da Constituição da República Oriental do Uruguai de 2004279. Nesse sentido, o exercício dos

direitos da personalidade permite que toda pessoa tenha o direito ao seu livre desenvolvimento em conformidade com sua vontade, independente de qual seja o seu sexo biológico, incluindo aí o direito de ser identificado de forma que se reconheça plenamente sua identidade de gênero e a consonância entre essa identidade e o nome e sexo assinalados nos documentos de identificação280.

Um avanço considerável obtido com a publicação da lei em análise foi sem dúvida, a inovadora concepção de que o sexo é um elemento de representação social, e que a

278 Pesquisa realizada pela Organização Internacional: Colectivo de Ovejas negras – el Área Queer – Univesidad

de Buenos Aires. Resultados expostos no informe: Políticas Públicas e Diversidade Sexual – República Oriental do Uruguai. Disponível em: <http://www.mides.gub.uy/innovaportal/file/20120/1/librillo_07.pdf> Acesso em 01 jun 2014.

279 Constituição da República Oriental do Uruguai. Artículo 72.- La enumeración de derechos, deberes y garantías

hecha por la Constitución, no excluye los otros que son inherentes a la personalidad humana o se derivan de la forma republicana de gobierno.

280 Ley 18.620/2009: Artículo 1º. (Derecho a la identidad de género).- Toda persona tiene derecho al libre

desarrollo de su personalidad conforme a su propia identidad de género, con independencia de cuál sea su sexo biológico, genético, anatómico, morfológico, hormonal, de asignación u otro. Este derecho incluye el de ser identificado de forma que se reconozca plenamente la identidad de género propia y la consonancia entre esta identidad y el nombre y sexo señalado en los documentos identificatorios de la persona, sean las actas del Registro de Estado Civil, los documentos de identidad, electorales, de viaje u otros.

desconformidade entre sexo psíquico e o biológico deixa de ser uma patologia para enquadrar- se numa espécie de condição que pode ser resolvida sem a necessidade, por exemplo, de adequar-se o sexo biológico ao psicológico por meio de cirurgias de redesignação. A adequação registral, portanto, dispensa a realização de intervenção cirúrgica, conforme artigo 3º da referida Lei281.

Registre-se que a normativa contida no artigo 3º da Lei 18.620 também é fruto de normativa internacional, especificamente dos princípios de Yokyagarta que em seu artigo 3º previu que nenhuma condição será requerida para a redesignação de sexo ou adequação de gênero nos documentos de identificação282. Com efeito, a adoção da sistemática proposta pelos princípios de Yokyagarta mostrou-se deveras adequado, pois exigir a intervenção cirúrgica seria manter uma visão reducionista, equiparando o sexo ao gênero, cujas diferenças já expusemos em capítulos anteriores.