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III. A Perspectiva Ecológica e o Programa de Saúde da Família

III.4. Usos da Abordagem Ecológica de Bronfenbrenner na relação médico-

Os exemplos apresentados buscam facilitar a compreensão da abordagem de Bronfenbrenner (1979, 1996); entretanto, de acordo com a crítica apresentada no início do texto, a força da abordagem será verificada se esta satisfizer as necessidades de análise de exemplos reais.

A seguir, encontram-se comentados alguns relatos retirados da dissertação de mestrado de Sucupira (1981), na qual discute-se a relação médico-paciente no contexto da clínica pediátrica. Parte do interesse desta discussão está na inclusão de elementos intervenientes anteriores e posteriores ao momento clínico, como também aqueles aparentemente externos, do mesossistema.

Exemplo 3

Médico: Mãe, da última vez eu passei uma hora explicando o que a sra. tinha de fazer em caso de diarréia. Quantas vezes a sra. aprendeu a andar? Será que precisa aprender todo dia quando levanta da cama? [A médica falava num tom repreensivo, numa atitude irritada e desanimada. Ao mesmo tempo a mãe se defendia, tentando explicar:]

Mãe: mas diz que faz mal dar certas coisas quando tão nascendo os dentes. A médica insiste:

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Médico: diarréia é igual em qualquer caso, pode ser por infecção do ouvido, do intestino, da garganta, tem de fazer tudo que eu ensinei.

[A mãe retrucava timidamente que podia fazer mal, pelo menos é o que ela tinha ouvido dos outros.]

Mãe: Diz que faz mal né? [Virava-se para o observador e repetia a frase procurando desculpar-se também perante ele e buscando seu apoio.] (p. 283).

Este relato de observação possibilita discutir as definições de díade propostas por Bronfenbrenner (1996). A finalidade da relação médico-paciente “exige” a constituição de uma díade primária, uma vez que, na ausência da médica, a mãe devia seguir o que esta lhe havia explicado na consulta.

Uma segunda análise aponta para a constituição do microssistema no qual a mãe e a médica formam uma díade e o exossistema constituído pela mãe e pelos que dizem “que faz mal dar certas coisas quando tão nascendo os dentes”, pessoas de outros microssistemas, pessoas que não se relacionam, no caso, com a médica, mas que influenciam e modificam a relação entre a mãe e a médica.

Exemplo 4

Entrevistador: Você gostou da consulta?

Mãe: Gostei porque médico do INPS não consulta mesmo, né, e ele atendeu mais ou menos, médico do INPS só pergunta, que que você tem, toma esses comprimidos aqui e vai embora, né dois minutos, três, já manda embora e ele não ele escutou o peito do menino, escutou as costas, visto que é do INPS, eu gostei.

Porque não gosto do atendimento de todos eles, porque é aquela consulta lambuzada, sabe o que é lambuzada?... é aquela consulta lambuzada, chega e olha em você, diz assim, toma o comprimido e pronto, não apareça mais, eles pouco tão ligando. (p. 242-3).

A mãe aponta como um indicador da qualidade da consulta a proximidade física, a investigação física que o médico deve fazer no paciente. Além deste aspecto de caracterização da díade de atividade conjunta, a mãe avalia a consulta porque o médico “foi mais ou menos”, tendo como referência o “médico do INPS”; isto indica o

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reconhecimento de uma consistência de comportamento associada à cultura institucional do INPS  uma dimensão do macrossistema  que teria sido observada na consulta.

Exemplo 5

Mas lá é médico simples e aqui especialista, né, é melhor, são médicos profissional também, mas eles acha que aqui é especialista, quando eles manda aqui [...] que eles acha que aqui é especialista, eles fala: bom, vou mandar vocês pro especialista, pronto. (p. 46).

Este exemplo relata a ocorrência de uma transição ecológica. O médico recomenda que a criança deve ser atendida por um especialista, segundo referido pela mãe; esta não identifica diferença mas, de qualquer modo, a relação diádica entre médico e mãe/criança (especificidade da pediatria) será influenciada por uma outra relação que se situa no mesossistema.

Exemplo 6

Em uma consulta, ao entrar os pais com a criança, o médico repetia cronicamente: “um acompanhante só”. Após um momento de indecisão enquanto o médico repetia a frase tentando apressá-los, saiu a mãe e a consulta iniciou-se com o pai. Ocorreu então uma cena patética: de repente um braço estendido por um pequeno vão da porta, segurando o cartão da criança, procurava chamar a atenção do pai. A noção dos limites nos seus direitos impedia à mãe de entrar e entregar o cartão diretamente ao pai. (p. 278).

Goodnow (1996) questiona a formulação de um modelo de inserção nos vários níveis do contexto, vinculada a uma concepção de proximidade-distanciamento. Esta discussão é pertinente porque o microssistema foi definido pelo estabelecimento de díades nas quais ocorrem relações face-a-face. No exemplo anterior, exclui-se a presença de um dos pais; entretanto a mãe participa e interfere na consulta na medida em que tenta entregar o cartão da criança pelo vão da porta. Observa-se que o serviço de saúde estabelece normas e que a mãe, ao tempo em que respeita a regra, tenta uma alternativa intermediária. A porta fechada não impede sua participação ativa na consulta.

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Exemplo 7

Durante uma consulta observada, na qual o pai (um executivo), assumindo a conversação, discutia aspectos referentes à saúde da criança, foi interrompido pela entrada de uma atendente que lhe informou polidamente: “O Sr. pode esperar lá fora, pois a sala é muito pequena e três pessoas não podem ficar.” O pai assumindo um ar de indignação, manifestou seus direitos afirmando: “É, mas eu vou ficar pois eu vim para falar com a médica”. A atendente, reconhecendo os direitos do cliente, retirou-se silenciosamente. O médico submisso às normas institucionais reconhece por sua vez direitos na atendente que invade a consulta para fazer cumprir aquelas normas. (p. 280).

Este exemplo ilustra concretamente a existência do macrocontexto. Uma norma ou uma orientação, para ser cumprida por todos os pacientes, é explicitada pela atendente. O pai, ao discordar e combater a norma, interfere no macrosistema daquela instituição. Tratando explicitamente do conteúdo da norma, ouve-se freqüentemente que os pais “não assumem os filhos”; embora mais apontado como falha do pai, também é mencionado com relação às mães. No momento em que ambos os pais fazem questão de participar da consulta da criança, uma justificativa externa e aleatória combate a iniciativa do pai de participar do atendimento, de desejar partilhar da relação com o médico. Este é um exemplo de intervenção pública interferindo e até modificando uma decisão que deveria ser da família ou da família com o profissional.