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CAPÍTULO 3 | ANÁLISE DO USO DA IMAGEM EM LIVROS DIDÁTICOS DE FLE

3.1. Livro didático: definição, edição, utilizações previstas e efetivas

3.1.2. Utilizações previstas, utilizações efetivas

A segunda questão sobre o LD que gostaríamos de abordar nesta seção diz respeito aos usos previstos pelos seus criadores (autor, designer, editor) e os usos efetivos feitos pelos professores. Essa questão parece-nos estreitamente ligada ao item anterior, no qual vimos que o livro didático, em sua própria definição, é considerado um objeto depositário de conhecimentos e saberes de um grupo social.

Ao abordar a questão da legitimação do LD, a pesquisadora Maria José Coracini (1999) parte do pressuposto de que todo processo de legitimação provém do reconhecimento de valores que constituem a ética de um grupo social. Dentro desse raciocínio, a legitimação do LD se daria, portanto, na própria escola por meio do uso do material pelo professor:

É nesse contexto que se insere o uso do livro didático pelo professor que, autorizado pela instituição escolar (já que é portador de um diploma legalmente reconhecido), legitima o material comercializado, considerando-o a base para o seu trabalho em sala de aula. Assim, o livro didático funciona como o portador de verdades que devem ser assimiladas tanto por professores quanto por alunos.

(CORACINI, 1999: 33-34)

A autora lembra, no entanto, que com o advento da abordagem comunicativa, o LD passou a ser criticado, sobretudo, por professores de língua estrangeira que passaram a preferir um trabalho com documentos autênticos. De fato, pedagogos e linguistas aplicados concebiam o LD como um material fabricado, artificial que escravizaria o professor, limitando sua criatividade. Coracini ressalta que só bem recentemente houve uma mudança na concepção da utilização do livro didático:

Só bem recentemente voltou-se a admitir que ele ocupa um lugar central no ensino de línguas estrangeiras, tanto quanto nas demais disciplinas, a ponto de nos levar a questionar se o ensino está centrado no aluno, como gostariam pedagogos e professores, ou no livro didático, do qual o professor não seria senão o mediador.

Essa questão de o professor muitas vezes ser visto como um simples mediador de um material que foi legitimado pela sociedade e pela instituição parece-nos essencial. De fato, dentro desse contexto de pré-legitimação, o professor seria apenas o portador de uma verdade que deve ser transmitida da maneira mais fiel possível aos alunos.

A pesquisadora Marisa Grigoletto (1999) salienta que na esfera escolar o LD pode funcionar como um dos discursos de verdade :

Afirmando ser o LD um discurso de verdade, queremos dizer que ele se constitui, no espaço discursivo da escola, como um texto fechado, no qual os sentidos já estão estabelecidos (pelo autor), para ser apenas reconhecido e consumido pelos seus usuários (professor e alunos). [...]

É digno de nota o fato de o livro do professor trazer prefácios curtos, nos quais o autor geralmente não se estende em justificativas sobre a metodologia adotada ou os conteúdos privilegiados, como se tais aspectos já estivessem legitimados a priori. O professor recebe um pacote pronto e espera-se dele que o utilize. Ele é visto como usuário, assim como o aluno, e não como analista. Ele é um consumidor do produto segundo as diretrizes ditadas pelo autor. Essa concepção do professor como consumidor e não construtor, como usuário e não analista pode ser inferida também por outra característica do livro do professor [...] que é a de apresentar as respostas a todos os exercícios. Tais procedimentos, que estabelecem o LD como um objeto fechado à interpretação, revelam a concepção, pelo autor e editor do LD e, possivelmente, também pelos seus consumidores, de que o livro seja um lugar no qual os sentidos se fecham, se completam e aparecem de forma transparente ao professor.

(GRIGOLETTO, 1999: 68)

Essa reflexão nos parece importantíssima no trabalho docente. De fato, muitas vezes os próprios professores concebem o LD como um material fechado , limitando- se simplesmente a aplicar seu conteúdo em sala de aula. A nosso ver, esse engessamento que permeia a produção e a utilização do LD constitui a causa das principais dificuldades de utilização desse material no ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras. Por sua própria origem e missão, o LD deveria abrir , criar , levar a construir sentidos e não fechar os mesmos.

Para os estudiosos do trabalho educacional, a atividade docente é caracterizada não somente pela recepção de prescrições oficiais e institucionais, concebidas para todos, como também pela ação que, como sujeito, o professor exerce sobre esse material, reformulando, recriando e adaptando essas prescrições ao seu contexto de trabalho (SAUJAT, 2002). Isso ocorre, por exemplo, quando ele adapta as prescrições do livro didático adotado pela sua instituição em função de seus grupos, de seus alunos. As pesquisadoras Anna Rachel Machado e Eliane Gouvêa Lousada (2010) concebem essa ação do professor como uma transformação de artefatos em instrumentos.

A abordagem instrumental que distingue artefatos de instrumentos tem sua origem em Vygotsky e foi desenvolvida mais recentemente por Pierre Rabardel (1995, 2003). Na visão desse autor, a noção de ferramenta ou de instrumento é muitas vezes compreendida apenas em seu sentido material, ou seja, como um objeto físico. No entanto, um conceito psicológico se faz necessário para analisar a situação do ponto de vista do homem que exerce uma ação com e sobre essa ferramenta, ou seja, a noção de instrumento.

O artefato é visto portanto como um meio material (martelo, enxada, etc.) ou simbólico (linguagem algébrica, símbolos, etc.) enquanto que a noção psicológica de instrumento inclui as ações e utilizações feitas com e sobre esse artefato pelo sujeito.

De acordo com Machado e Lousada (2010), prescrições oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) podem ser consideradas artefatos, uma vez que são concebidas como preconizações de trabalho para uma coletividade. As autoras salientam, no entanto, que para que o professor atinja esses objetivos prescritos, é preciso que ele esteja convencido de que os mesmos são bons não apenas para o aluno, mas também para o seu bem-estar. Só assim poderemos falar de apropriação de um artefato pelo trabalhador e de sua consequente transformação em instrumento.

Segundo Rabardel (2003), a criação de instrumentos constitui, portanto, uma atividade feita por designers e por usuários :

A tarefa dos designers é a elaboração de uma proposta de instrumento sob a forma de artefatos e em termos de operações previstas (design para o uso). Os usuários podem tirar proveito dessas propostas (totalmente, parcialmente ou de forma alguma), a fim de desenvolver seus próprios instrumentos – instrumentos estes que preencham suas próprias necessidades, em função da

organização e das situações nas quais serão utilizados (design em uso). 27

(RABARDEL, 2003: 643). De acordo com Lousada (no prelo), no caso do livro didático, o autor enfrenta muitas vezes uma situação conflitante, uma vez que deve se adaptar ao mesmo tempo às prescrições oficiais de educação e às prescrições da editora que, por sua vez, se pautam sobre uma lógica de mercado. Essas duas prescrições são por vezes contraditórias, o que faz com que o material didático seja concebido em uma relação complexa. Segundo a pesquisadora, os responsáveis pelo design para uso e pelo design em uso deveriam trabalhar conjuntamente e ter autonomia para fazer propostas. Incluir os responsáveis pelo design em uso, ou seja, os professores, na elaboração dos LDs deveria fazer parte das propostas das editoras como uma maneira de realizar artefatos mais eficientes para o uso e que seriam, portanto, mais facilmente transformados em instrumentos.

Essa questão parece-nos importante pois, nesta pesquisa, estudamos justamente os artefatos que constituem os livros didáticos de FLE e buscamos entender, do outro lado e ao mesmo tempo, algumas características dessa apropriação total ou parcial do artefato feita pelo professor, transformando o livro didático em instrumento de trabalho.

Na próxima seção, procedemos à análise prática do uso da imagem nos quatro livros didáticos de FLE identificados:

 Archipel 1, COURTILLON, J. ; RAILLARD, S. Paris : Didier, 1982.  Espaces 1, CAPELLE, G. ; GIDON, N. Paris : Hachette FLE, 1990.

 Forum 1, BAYLON, C. ; CAMPÀ, A. ; MESTREIT, C. ; MURILLO, J. ; TOST, M. Paris : Hachette, 2000.

 Écho A1, GIRARDET, J. ; PÉCHEUR, J. Paris : CLE International, 2010.

Um espaço de tempo de cerca de 10 anos separa uma publicação da outra e acreditamos que todos esses LDs sejam bem representativos de sua respectiva década.

27 Tradução nossa. No original: « The task of designers is to elaborate an instrumental proposition in

the form of artefacts and in terms of anticipated operations (design for use). Users may take advantage of these propositions (totally, partially or not at all) in order to develop their own instruments - instruments that fulfill their own characteristic needs, depending on the organisation and the situations, where they are to be used (design in use). »

Nesta análise, levamos em conta os pressupostos teóricos de Kress e van Leeuwen (2006) para uma primeira leitura do texto visual e multimodal. Buscamos também conhecer a quantidade de imagens presentes em cada um dos livros do aluno e o número de menções às mesmas nos respectivos guias do professor. A função pedagógica reservada à imagem no texto multimodal também nos interessará e buscaremos, portanto, encontrar tanto no livro do aluno quanto no guia do professor prescrições para o seu uso.