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Segundo André-Clément Decouflé, existem seis maneiras de se falar do futuro. Em primeiro lugar, pela adivinhação que, na Antiguidade se fazia pelos meios mais variados (nos nossos dias o processo de adivinhação mais utilizado é a Astrologia). Em segundo lugar, pela profecia, que consiste na designação do futuro e na sua proclamação por antecipação.1 Em terceiro lugar, pela futurologia, que "descreve o futuro, insistindo sobre prolongamentos ou viragens de tendências já observáveis". Em quarto lugar, pela prospectiva, que se esforça "por conjecturar, hesitando incessantemente entre o provável, o plausível e o verosímil. A prospectiva está fascinada pela incerteza. Ela faz do futuro, que considera como irreconhecível por natureza, um uso aparentemente paradoxal." Em quinto lugar, pela ficção científica, que se define pela imaginação do futuro da forma mais racional possível.2 Por último, pela utopia, que consiste em sonhar o futuro "com o risco de, na sequência do facto, tentar pô-lo em prática. (...) A utopia é a constituição do futuro em discurso sem preocupações com o onde e o quando - portanto, o discurso do hic et nunc, do aqui e imediatamente." (Decouflé 1977: 24- 35)

Explica Decouflé que estes seis processos se reportam a três representações possíveis do futuro, delas resultando produtos diferentes. O autor distingue assim os conceitos de destin, de avenir e de devenir:3

"Considéré en tant que destin, c'est-à-dire comme enchaînement établi à l'avance d'événements inéluctables, le futur est objet des discours de dévoilement (...): la divination et la prophétie".

"Considéré en tant qu'avenir, c'est-à-dire comme ensemble d'états de la

1 Diz Decouflé: "Uma das figuras-chave da profecia é a revelação, o desvendar - isto é, no sentido próprio do termo, a palavra apocalíptica." (Decouflé 1977:13)

2 Segundo Decouflé, John W. Campbell distingue a ficção científica da literatura fantástica da seguinte forma: "É ficção científica quando o escritor pensa que aquilo pode acontecer, é fantástico se ele pensa que isso não poderia dar-se." (Decouflé 1977: 33).

3 Não tendo encontrado, na língua portuguesa, equivalentes que denotassem rigorosamente as diferenças que Decouflé pretende realçar, optei por recorrer à terminologia francesa estabelecida pelo autor.

nature (d'éventualités) possibles à une échéance plus ou moins lointaine, le futur est objet des discours de la description imaginaire: Vutopie et la science-fiction."

(...)

"Considéré en tant que devenir, c'est-à-dire comme procès historique, le futur est objet des discours de l'action: la futurologie et la prospective." (Decouflé 1978: 22)

Decouflé define assim com rigor a relação entre a Utopia e o futuro. Acerca do futuro a Utopia não faz predicções mas tece conjecturas. Trata-se de um futuro que não é encarado como um processo histórico mas como um conjunto de

eventualidades, passíveis de um dia, numa data indeterminada, virem a ser

concretizadas.

É também neste sentido que Ernst Bloch fala dos futuros possíveis. Partindo do conceito de ainda-não-consciente (no sentido ideológico) que acima referi,4 Bloch compara-o com a sua contrapartida material, o ainda-não-realizado. Conclui então que, tal como o ainda-não-consciente traduz a nossa consciência antecipatória, tendo assim existência no presente, também o futuro, que está ainda por determinar, faz parte integrante da realidade. Por essa razão defende Bloch que os futuros possíveis sejam encarados não como possibilidades formais mas como possibilidades reais, embora nem todos venham a ser actualizados.

Vários são os autores que sublinham a importância da relação da Utopia com o sentido de futuro. Enquanto que Decouflé define a Utopia como a

constituição do futuro em discurso e Bloch realça no conceito o seu carácter antecipatório, Ricoeur, considerando que a Utopia é uma componente importante

da nossa identidade prospectiva, define-a como um discurso para audiências

futuras, para ser interiorizado e progressivamente aceite, considerando a

exploração do possível (a que Ruyer chamara possibilidades laterais da realidade) como a sua melhor função. Ricoeur critica aliás Mannheim pelo facto de ele analisar os conceitos de Utopia e de ideologia a partir da forma como ambos

constroem o seu discurso sobre o presente (Ricoeur 1986: 300-14).5 Também para Albert Soboul "a utopia (...) participa (...) da consciência antecipadora, não da lamentação de um mundo perdido. Agudiza a consciência e trabalha para o desaparecimento do que ainda existe." (Soboul 1980: 11) Leah Hadomi e Robert Elbaz, por seu turno, lembram que o tempo da Utopia é futurista, na sua essência, opondo-se neste sentido à ideologia que contempla o passado e o presente (Hadomi & Elbaz 1990: 149-50).

Para Bauman a Utopia relativiza os conceitos de tempo: relativiza o presente ao subverter a ideia de que o estado de coisas é imutável e relativiza a ideia de futuro ao estabelecer uma série de projectos alternativos (Bauman 1976: 13-8). Também Barbara Goodwin define a Utopia como um modo particular de

distanciação do presente (segundo Goodwin há mais cinco modos)6: na Utopia o presente é criticado, de forma construtiva, através da apresentação de uma alternativa ideal, no presente ou no futuro. Já A. Guérard define o conceito não em relação ao presente mas em relação ao passado e ao futuro, lembrando que todas as Utopias são simultaneamente retrospectivas e prospectivas, na medida em que nos dão conta tanto das lições da história como dos desejos do homem (Guérard 1930: 257), enquanto que Fred Polak define as Utopias como imagens socio-

políticas do futuro (Polak 1961 I: 31 ).7

5 Recordemos que Karl Mannheim define Utopia e ideologia como formas divergentes de transcendência da realidade. Neste sentido, parece-me justa a crítica de Ricoeur. Creio que nao podemos contudo esquecer que em Ideologia e Utopia Mannheim define também a Utopia em relação ao futuro, chegando assim à distinção de quatro tipos de Utopias, correspondendo a períodos e a atitudes diferentes.

6 A primeira parte de The Politics of Utopia é escrita por Barbara Goodwin. Nela, a autora refere os outros cinco modos de distanciação do presente: (1) o passado é idealizado (pela evocação de uma Idade de Ouro) como forma de crítica do presente; (2) o presente surge justificado em função de um passado hipotético; (3) o presente surge justificado em função de um presente hipotético; (4) o presente surge invertido, provocando a sátira; (5) o presente é justificado por referência a um futuro pior (estamos no campo da Distopia). Cf. Goodwin & Taylor 1982.

7 Segundo Polak, encontramos, ao longo da história do Universo, a projecção de diferentes imagens do futuro: 'There are the philosophical images, of which the platonic world of ideas is perhaps the most typical. There are the historical images, which provide history with a ready-made meaning and ameliorative goal. Ethical images, typified by the charismatic figures of Socrates and Jesus, represent an absolutistic god or goodness and perfection. Social-political images, from Plato's Republic on, have portrayed every conceivable type of ideal human society. Religious images build on some type of

Segundo Ignacio Sotelo são perceptíveis, na filosofia política europeia, duas linhas de pensamento distintas: uma linha realista, inspirada em Maquiavel e em Hobbes, que descreve a realidade tal como é e uma linha utópica, iniciada por More e culminando em Rousseau, que se empenha em descrever a realidade tal como deveria ser. Estas duas linhas de pensamento implicam uma atitude diferente em relação ao sentido do tempo. Na primeira, animada por um espírito positivista que Sotelo rotula de perigoso, a dimensão temporal é eliminada, já que tal linha de pensamento se cinge à descrição subjectiva daquilo que existe. Na segunda, sob o signo do idealismo a orientação define-se em relação ao futuro (Sotelo 1984: 14- 8).

Vemos pois que, embora seguindo caminhos diferentes, todos estes autores acabam por reconhecer no futuro o ponto de orientação por excelência da Utopia. Este é um aspecto que me parece importante salientar, na medida em que é frequentemente apresentado como um dado adquirido, mas raramente é alvo de uma reflexão mais atenta. Interessa-me no presente capítulo demonstrar que essa orientação da Utopia em relação ao futuro não deve ser analisada em termos abstractos e genéricos, mas concretizada em exemplos, dando conta da forma como o contexto histórico em que as Utopias se inscrevem condiciona tal orientação. No início deste capítulo citei Decouflé e realcei que, na perspectiva deste autor, o futuro na Utopia não é encarado como um processo histórico mas como um conjunto de eventualidades que um dia poderão vir a ser concretizadas. Concordei, na altura, com o autor, pois Decouflé fala no passo citado da Utopia em termos abstractos. Procurarei agora demonstrar que no século XIX tal relação se modifica, passando a Utopia a cumprir, para além das funções compensatória e crítica, uma função catalisadora. Nessa altura (e recorrendo à terminologia utilizada por Decouflé) o futuro da Utopia deixa de ser um avenir para ser encarado como um devenir.

Falei até agora da relação entre a realidade (o momento presente) e a

messianic expectation of the transformation of this world into something other and divinely good." (Polak1961 l:3)

Utopia, que é situada num futuro mais ou menos remoto consoante a época em que a ideia que a informa é concebida. Mas importa igualmente falar do tempo da

Utopia enquanto estado civilizacional, isto é, da forma como o indivíduo que habita

a sociedade imaginada se posiciona em relação aos três modos de tempo.

Segundo Adriana Corrado, quando o projecto utópico é perfeito, a Utopia cristaliza o presente e nega o passado, que passa a ser encarado com desconfiança e considerado anti-utópico (Corrado 1993).8 Este processo de cristalização do presente implica uma cesura no processo de evolução, sendo o elo do futuro cortado da cadeia do tempo. A mesma ideia é sublinhada por Miriam Eliav-Feldon que realça o carácter ahistórico das Utopias renascentistas (que ela designa por Utopias estáticas). Na opinião desta autora, a noção de progresso é abolida após o estabelecimento da Utopia, já que contraria a ideia de perfeição. Na verdade, se a sociedade é perfeita, a mudança não é necessária e, a verificar-se, o resultado será sempre pior (Eliav-Feldon 1982).9 Para Paul Ricoeur, um dos aspectos problemáticos da Utopia prende-se com a sua relação com a história e com o tempo: a Utopia fornece modelos e concebe que a história pare a seguir à imposição desses modelos:

"The utopia becomes a picture; time has stopped. The utopia has not started but rather has stopped before starting. Everything must comply with the model; there is no history after the institution of the model." (Ricoeur 1986: 295)

Na opinião de Ricoeur, para ultrapassar este momento de impasse após a implantação do modelo, é preciso incutir dinâmica a uma nova estética política, inflamada de imaginação artística, uma espécie de nova religião, que impeça o homem de se perder no círculo vicioso do momento presente e lhe abra uma janela

8 Adriana Corrado desenvolve esta ideia em "Pleasure and Pleasures in English Narrative Utopias. What Space is Given to Pleasure in Utopian Models? Hints of Reflexion", apresentado à "Esse Conference" que teve lugar em Bordeaux em 1993. Este texto foi-me fornecido particularmente, pelo que não poderei indicar o local de publicação, nem tão-pouco a paginação correcta.

sobre novas possibilidades.

Na perspectiva de Georges Duveau, o tempo da Utopia, enquanto estado civilizacional tem um carácter vazio. Nas sociedades imaginadas pelos utopistas os ponteiros dos relógios não se deslocam ao ritmo dos nossos, antes criam um movimento próprio que os desvincula da nossa história (Duveau 1961: 9). O vazio de que fala Duveau deve-se, sem dúvida, ao facto de o estabelecimento de uma sociedade utópica subentender um estado de perpetuidade, tal como o definiu Sto Agostinho: um belo conto-de-fadas com um princípio mas sem um fim.10

Ainda que pressupondo um estado de perfeição, a Utopia concretizada abafa a personalidade do homem ao negar-lhe qualquer possibilidade de mudança. Neutraliza a sua capacidade de desejar (que, como vimos, o distingue das outras espécies vivas) e concede-lhe o mero privilégio da existência. Com a implantação do modelo utópico, o homem reduz-se àquilo que é, no presente, deixando de se definir em relação àquilo que poderá vir a ser, uma situação que Mana Ozouf descreve com uma comparação feliz: "Pourvu, comme les plantes [d'architecture], d'un devenir, l'homme de l'utopie n'a jamais d'avenir." (Ozouf 1984: 310)

A vacuidade de sentidos, a abolição de um horizonte que norteie a existência do homem conferindo-lhe um papel na sociedade de modo a permitir-lhe a plena afirmação da sua humanidade (que excede inequivocamente a mera existência vegetativa), são sem dúvida características de certas Utopias, mas este diagnóstico pessimista não deve ser aplicado indistintamente a todas. É típica da Utopia socialista do século XIX a concepção de que o homem (no sentido de indivíduo livre de optar e de fazer prevalecer os seus direitos - mas também as suas obrigações) só poderá afirmar-se plenamente após a implantação da Utopia. Trata-se de uma concepção informada pelo pensamento marxista que encara o estabelecimento da sociedade comunista como o marco do fim da pré-história e início da verdadeira história da humanidade. A meu ver, embora o sentido de futuro

10 Sto Agostinho distinguia os conceitos de tempo (que é todo sucessivo) de eternidade (que existe toda simultaneamente, sem anterioridade nem posterioridade) e de perpetuidade (que tem um começo mas não tem fim).

nessas Utopias deixe de ser encarado, após a implantação do modelo utópico, como um ponto sem sequência, ele não se esbate, antes pressupõe a orientação em direcção a um outro tipo de horizonte definido pela nova atitude religiosa que Ricoeur considera ser uma prioridade absoluta. A obra utópica de William Morris que analisarei neste trabalho reveste-se, nesta perspectiva, de uma exemplaridade invulgar.

Embora Karl Manheim defina os conceitos de Utopia e de ideologia como formas divergentes de transcendência da realidade, isto é, do momento presente (suscitando nesse sentido a crítica de Paul Ricoeur que realça o carácter futurista da mensagem utópica), num outro ponto do seu ensaio Ideologia e Utopia Mannheim defende que cada Utopia traduz um sentido do tempo histórico particular e que a evolução da Utopia tem-se dado no sentido de uma aproximação ao real, virando-se, na sua fase evolutiva terminal, para um futuro que é perspectivado como inevitável.11 A tipologia de Utopias concebida por Mannheim não estabelece divisões periodológicas rigorosas, partindo antes de conceitos sociológicos, reconhecendo a Utopia não como um discurso de um indivíduo mas de um grupo social, traduzindo uma mentalidade peculiar, a que Mannheim chama desejo

predominante. Mannheim distingue, nesta perspectiva, quatro tipos de Utopias que

se definem por uma relação de antinomia, dando voz a desejos antagónicos (constituindo-se cada nova Utopia como uma contra-utopia da Utopia anterior).

A primeira forma de Utopia, na perspectiva de Karl Mannheim, não é a de Thomas More mas a promovida pelo reformador alemão fundador da seita dos anabaptistas, Thomas Munzer (1489-1525).12 A este tipo de Utopia Mannheim

11 Ao aproximar-se do real a Utopia tende a tornar-se concreta e, nesse sentido, realizável. E neste sentido que Mannheim alerta para a iminência da morte da Utopia.

12 Explica Mannheim: "Chiliasm had its period of existence in the world of the decaying Middle Ages, a period of tremendous disintegration.Everything was in conflict with everything else. It was the world of nobles, patricians, townsmen, journeymen, vagabonds, and mercenaries, all warring against each

chama quiliasma orgiástico dos Anabaptistas. Trata-se da Utopia do povo oprimido, que sonha com a felicidade milenar que será estabelecida na terra quando nela, de novo, for estabelecido o Reino de Deus13. Este sonho traduz uma atitude de tensa expectativa e encara o presente como "the breach through which what was previously inward bursts out suddenly, takes hold of the outer world and transforms it" (Mannheim 1960: 193). Nesta primeira forma, um largo fosso separa a ideia

utópica da realidade.

A segunda forma de Utopia, na perspectiva de Mannheim, é a ideia liberal-

humanista. Esta é a Utopia da burguesia ascendente que transporta bem alto o

estandarte da liberdade e que aposta na educação e na formação como pressupostos primeiros para o estabelecimento de uma sociedade ideal. A Utopia liberal define-se por oposição à Utopia quiliástica, no que respeita ao sentido do

tempo. Enquanto a mentalidade quiliástica crê na possibilidade de uma mudança

radical súbita, a ideia liberal-humanista vê a mudança como o culminar de uma evolução histórica, procedendo a uma interpretação linear do tempo. Nesta forma opera-se assim a uma aproximação à história, tomando-se o utopismo "crescentemente vinculado ao processo de vir a ser"14. Mas a Utopia liberal- humanista, que Mannheim faz coincidir com o período do Renascimento e essencialmente com o do Iluminismo Europeu, não prevê para o estabelecimento da sociedade ideal uma data definida, antes a projecta no futuro infinito. Segundo Mannheim não a devemos tão-pouco encarar "as a blue-print in accordance with which at any given point in time the world is to be reconstructed". Em vez disso, propõe Mannheim que ela seja vista como "a 'measuring rod' by means of which the course of concrete events may be theoretically evaluated." (Mannheim 1960: 197).

Para Mannheim, a terceira forma de Utopia é a ideia conservadora. Como o

other." (Mannheim 1960: 204).

13 No Quiliasma, religião e política são indissociáveis: a revolta social dos camponeses, na Idade Média, teve na base motivos religiosos, embora nem sempre reconhecidos por Roma.

14 No original, em inglês, lê-se: "utopianism becomes increasingly bound up with the process of becoming." (Mannheim 1960: 202)

próprio filósofo alemão reconhece, esta ideia, como tal, não detém nenhuma utopia.15 Nesta forma, cuja estrutura se encontra em harmonia com a realidade, descobre-se a importância do passado e é atribuído a tudo o que existe um valor positivo e nominal, operando-se assim uma aproximação concreta ao presente. Como explica Mannheim, encontramos no conservadorismo completado o processo de aproximação ao aqui e agora. A realidade não é já encarada como maligna, mas como a corporificação dos mais elevados valores e significados (Mannheim 1960: 206-212).

A última forma de Utopia é, na opinião de Mannheim, a Utopia socialista-

comunista, que encara as ideias não como meros sonhos ou desejos, mas como

algo que deve ser concretizado, promovendo assim a realização da ideia. Esta forma orienta-se em relação a um futuro, que localiza imediatamente após a derrocada da cultura capitalista, e encontra-se inflamada por um sentimento de determinismo histórico. A utopia socialista-comunista opera, segundo Mannheim, uma redefinição da Utopia em termos de realidade, compreendendo o presente à luz da sua concreta realização no futuro. (Mannheim 1960: 215-222).

Também esía tipologia de Utopias estabelecida por Karl Mannheim suscita a crítica de Paul Ricoeur que questiona, entre outros aspectos, a legitimidade de se distinguir quatro Utopias. Pergunta Ricoeur: e porque não sete ou dez? (Ricoeur 1986: 283). Neste ponto, não posso concordar com Ricoeur. Sei que toda a divisão deste tipo é arbitrária e subjectiva, já que num dado momento coexistem atitudes e degladiam-se ideias divergentes de que é extremamente difícil dar conta com rigor. Considero contudo importante o esforço da caracterização, pelo menos em termos gerais, das atitudes prevalecentes numa era e que a distinguem inequivocamente das que se lhe seguem.

Não quero contudo com isto dizer que concordo com a tipologia de Mannheim. Não o poderia nunca fazer, até porque partimos de pressupostos

15 Reflectindo sobre a tipologia de Utopias de Mannheim, Paul Ricoeur explica este aparente paradoxo: "At first sight it seems quite strange to call this [conservatism] Utopian. Conservatism is more a counterutopia, but as a counterutopia is compelled to legitimate itself under the attack of the others, it then becomes a utopia of a certain kind." (Ricoeur 1986: 278).

diferentes e perseguimos fins diversos. A perspectiva de Mannheim é fundamentalmente sociológica, reporta-se a um contexto civilizacional mais amplo

(os casos concretos que refere são normalmente alemães e franceses, embora a realidade inglesa seja também contemplada) e pretende informar uma teoria que aponta para a morte da Utopia, pela sua gradual aproximação à realidade. A perspectiva que tenho vindo a adoptar ao longo deste trabalho leva-me inevitavelmente a um conceito mais restrito de Utopia (partindo da identificação desta com um género literário datado), e a necessidade da definição de um corpus operatório conduz-me à contemplação quase exclusiva do cenário histórico inglês. O objectivo deste estudo é igualmente de natureza distinta. Procuro analisar a relação da Utopia com o futuro, precisar os momentos em que ela se torna mais nítida e discernir os elementos que a impelem nessa direcção. Mais importante ainda: todas estas reflexões são feitas não no plano meramente teórico, mas no âmbito da tentativa de compreensão do significado da obra de um autor particular,

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