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Diz Fred Polak que no Renascimento o homem descobriu que existem outras possibilidades de ordem social, apercebeu-se dos poderes infinitos da razão e compreendeu que a construção do seu futuro estava nas suas mãos. No Iluminismo o homem descobre que essa razão poderá, por um lado, ajudá-lo a viver em felicidade no seu estado natural e, por outro, permitir-lhe atingir a perfeição (Polak

1961: 239-41). Esta ideia de que, através da razão, o homem poderá tomar-se perfeito é essencial para a compreensão do optimismo iluminista. É ela que faz do século XVIII o Século das Luzes e dela depende a grandeza do período da história ocidental que ficou conhecido como a era da Razão.

Estas descobertas iluministas foram estimuladas por uma outra revolução operada no plano científico. Na verdade, foi o desenvolvimento das ciências, em geral (e de forma mais acentuada no campo da geologia e da biologia), que preparou o homem para o esboço de novas perspectivas do mundo e de si mesmo. Ao proceder ao transporte de conclusões científicas para o campo puramente

intelectual, o homem do século XVIII faz assentar a sua cosmovisão optimista numa teoria global da evolução num sentido ascendente, chegando assim a conclusões prospectivas não só relativamente à magnificência do futuro do homem (que passará, ao atingir a perfeição, a exprimir plenamente a sua humanidade), mas também no que respeita à organização social e à ordem económica, isto é, à

evolução política.

As teorias do progresso que no século XVIII vingam um pouco por toda a Europa são francesas nas suas origens. Com efeito, é numa França politicamente insubmissa, onde a preparação da Revolução libertadora está em curso, que estas teorias se desenvolvem e se definem. Mas qual é a natureza deste progresso? Herbert Marcuse distingue dois tipos de progresso: um progresso quantitativo e um

progresso qualitativo. Segundo Marcuse, o progresso quantitativo é informado pela

ideia de progresso técnico, indicando que "no decurso da evolução cultural e apesar de muitos períodos de regresso, as aptidões e os conhecimentos humanos aumentaram de uma maneira geral, ao mesmo tempo que a sua aplicação no sentido do domínio do mundo ambiente humano, bem como do mundo exterior, se

tem tornado cada vez mais universal." (Marcuse 1980: 45) Este progresso traduz-se numa crescente riqueza social. No decurso deste processo, o homem cria maiores necessidades e recursos para as satisfazer. Ao conceito de progresso qualitativo subjaz a ideia de um progresso humanitário - tal como o define Hegel - e que, segundo Marcuse, consiste "na história da realização da liberdade humana, na moralidade: cada vez mais homens se tornariam mais livres, e a própria consciência da liberdade seria um estímulo como que para um aumento no âmbito da liberdade." (Marcuse 1980: 45-6) Este progresso traduzir-se-ia numa transformação do homem no sentido de se tornar mais humano. Assistiríamos assim, progressivamente, ao desaparecimento da escravatura e de todas as outras formas de opressão.

Explica Marcuse que, aquando do seu surgimento, no século XVIII, a ideia de progresso humanitário pressupõe normalmente a realização prévia do progresso técnico (terá de haver riqueza social, isto é, condições para que o homem possa progredir humanitariamente). Esta é a ideia que predomina nas teorias de Condorcet, o filósofo francês que formula a ideia de progresso nos termos em que virá a ser absorvida pela Utopia do século XIX. Como diz Krishan Kumar, já antes de Condorcet a ideia de progresso fora propagada por Turgot que, nos seus discursos apresentados à Sorbonne, em 1750, defendera quatro princípios: em primeiro lugar, que o progresso é inevitável e infinito; em segundo lugar, que o homem se vai educando e é capaz de acumular experiência; em terceiro lugar, que na humanidade existe uma forte tendência para o progresso e para a mudança; por úlitmo, que a acumulação da experiência vai tornando o homem cada vez mais perfeito (Kumar 1991:43).

Em Esquisse d'un Tableau Historique des Progrès de l'Esprit Humain, publicado em 1793, Condorcet parte da ideia (já bastante divulgada, na altura, em França) de que o aperfeiçoamento do homem é inevitável e ilimitado, mas acrescenta-lhe a crença de que é necessário ajudar à concretização deste progresso. Para Condorcet (que é baconiano na sua visão da utilidade política de uma comunidade de cientistas) o homem encontrará na ciência o segredo

impulsionador desse progresso, que o conduzirá a um futuro cada vez mais perfeito. Toma-se assim evidente a diferença que subjaz às teorias baconiana e condorcetiana: enquanto que Bacon depositara sobre os ombros de uma comunidade de cientistas a missão de reformar a sociedade, Condorcet confia que essa tarefa está já a ser levada a cabo naturalmente, pelo processo histórico que tem vindo, através dos tempos, a assegurar um crescente refinamento da humanidade. Assim, à comunidade científica, caberá o papel de acelerar o processo em curso.1

No final do século XVIII o progresso técnico é assim por Condorcet considerado imprescindível para que se possa observar a concretização de um progresso humanitário. Grande parte das Utopias socialistas inglesas do século seguinte, marxistas na sua visão da utilidade da Revolução Industrial para a construção de uma sociedade onde a vida seja facilitada a nível da produção dos bens essenciais, interiorizará esta ideia, apesar de Comte e Mill virem a sublinhar o facto de o progresso técnico não ser o único factor a ter em conta para que a

perfeição humana possa ser alcançada. De uma forma ou de outra (considerada como dependente ou independente do progresso técnico), a ideia de progresso qualitativo tornar-se-á uma preocupação central das teorias oitocentistas. Na verdade, a demanda da perfeição humana encontrará, nas Utopias socialistas, uma forma de expressão particular.

Como disse já, as teorias do progresso iluministas são essencialmente um produto da filosofia francesa, tendo-se a sua repercursão feito sentir primeiramente no solo que as gerara. Mas a França do século XVIII é uma nação cosmopolita e a sua cultura um produto de exportação. Segundo Jean Duché, só no Bairro de Saint- Germain habitam neste período mais de quinze mil estrangeiros. E Paris transforma-se no café da Europa, onde acorrem jovens da aristocracia inglesa,

italiana, espanhola, sueca, polaca, russa e alemã. É deste modo que o francês se torna a língua da cultura:

1 A este propósito comenta Kumar : "To the dynamism internal to the Baconian utopia of science was now added the dynamism of the historical process itself." (Kumar 1991: 45)

"O francês não somente substituiu o latim como linguagem diplomática, e até aos confins da Arábia: em 1774, Turcos e Russos redigem os seus tratados em francês, mas ele é doravante a língua de todos os europeus de categoria. Maria Teresa de Áustria corresponde-se em francês com os filhos, José II e Maria Antonieta. Frederico II considera o alemão como um calão bárbaro e ordena que as Memórias da Academia de Berlim sejam publicadas em francês, porque, diz ele, 'as Academias, para serem úteis, devem comunicar as suas descobertas na língua universal, e essa língua é o francês'.

Através da língua francesa e pelo pensamento dos filósofos, sentem-se os Europeus membros de uma mesma e única sociedade. E o patriotismo aparece como um tolo preconceito." (Duché 1965: 442)

Embora, como reconhece Duché, a corte de Inglaterra não se tenha deixado seduzir pelas modas francesas,2 os filhos da aristocracia inglesa fazem de Paris ponto de visita obrigatório. E é através deles, lentamente, que as novas ideias francesas vão penetrando no solo britânico. Assim se explica que em Inglaterra as teorias do progresso sejam essencialmente do domínio de intelectuais (sobretudo de aristocratas) com fortes ligações à teorização francesa. Apenas no século XIX deixarão estas teorias do progresso de ser "a marca intelectual de uma filosofia optimista" - para utilizar as palavras de Michel Collinet - para assumir a dimensão de uma verdadeira ideologia popular {cf. Collinet 1961: 106-108). Essa é, segundo Collinet, a alteração mais significativa que separa o século XIX dos séculos anteriores.3

2 Comenta Jean Duché a este propósito: "Apenas os Ingleses se conservaram fechados à sedução francesa. Apenas eles, no século XVIII, perseguiram os Franceses com um ódio desdenhoso, rejeitaram as modas francesas e o gosto francês. A corte de Inglaterra, onde se falou francês durante séculos, é a única onde se recusam a falá-lo." (Duché 1965: 464).

3 Segundo David Thomson, a ideia de progresso impor-se-á em Inglaterra na geração seguinte à dos homens que travaram a Batalha de Waterloo (1815), sendo associada à ideia de progresso técnico: "It was when he travelled in the first train from Liverpool to Manchester that Tennyson, believing that the wheels ran in grooves, wrote the line: Let the great world spin for ever down the ringing grooves of change. Twelve years later, when it appeared enshrined in Locksley Hall, we find many similar declarations of faith in the rapid progress of mankind. 'Better fifty years of Europe than a cycle of Cathay': that was the general sentiment of thought-full mid-Victorians '"(Thomson 1978:102). A teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin (exposta em 1859 em On the Origin of Species by Means of Struggle for Life), ajudará à interiorização da ideia de que o apuramento das raças pressupõe uma caminhada inevitável em direcção à perfeição.

Não nos podemos contudo esquecer de que a ideia de progresso, tal como ela é disseminada em Inglaterra no século XIX, possui também raízes inglesas. Encontramo-las em Shaftesbury e no optimismo que ele preceitua em

Characteristics of Men, Manners, Opinions and Times (1711). Este texto de

Shaftesbury, que se tornará apanágio da filosofia whig das primeiras décadas do século XVIII inglês, é essencialmente aristocrático na forma como se reporta a uma camada social privilegiada.4 A teoria de Shaftesbury de que o homem é capaz de neutralizar as suas tendências contra-natura traduz a sua confiança nas capacidades exclusivas de uma aristocracia (whig) que, se estiver no governo, poderá assegurar ao país um estado de equilíbrio e de paz social. É aliás este optimismo que Swift e Pope criticam, respectivamente, em A Tale of a Tub (1704) e em Essay on Man (1733-4), assumindo-se como arautos de uma atitude Tory mais pessimista e portanto politicamente conservadora.

É verdade, porém, que a interpretação setecentista mais comum da teoria lockeana de que o homem terá vivido pacificamente no estado de natureza antes de se formar a sociedade civil é essencialmente optimista. Com efeito, como explica Gregory Claeys, a propriedade privada e o comércio são encarados nesta época como provas de uma evolução positiva da humanidade5. Segundo Claeys, é esta aliás a ideia que subjaz à postulação humeana do século XVIII como a mais feliz das eras:

"Hume ( ) asserted that his own era was both the happiest in human history and the most virtuous, luxury being injurious only when it annihilated all social duties. By comparison, ancient Rome had been an 'ill-modelled government tainted by an 'unlimited extent of conquests'". (Claeys 1994: XXI)

O que Claeys não diz é que esta visão optimista de David Hume não conduz o

4 Refiro-me a Anthony Ashley Cooper (1671 -1713), 3* Conde de Shaftesbury, cujo cepticismo religioso

granjeará a admiração dos filósofos franceses.

5 Sobre o assunto, comenta Gregory Claeys: "Community of goods (...) was now identified chiefly with primitivism, barbarism and poverty, or with a degree of moral restraint attainable only by small communities of religious believers." (Claeys 1994: XXI)

filósofo à asserção da perfeição humana, levando-o apenas ao reconhecimento da possibilidade de uma organização social mais pacífica. Estamos pois muito longe de Rousseau, que em França defende que o homem é bom por natureza. Segundo Rousseau, a civilização é a grande responsável pelos males sociais. Ela faz com que o homem sofra um processo de desnaturação, isto é, com que se afaste do seu estado natural que é essencialmente bom. Contudo, está ainda ao seu alcance a hipótese de, voltando-se para a natureza, regressar ao seu estado primitivo que é fundamentalmente feliz.

Importa ainda realçar um outro aspecto que separa o optimismo francês do optimismo inglês e que poderemos compreender recorrendo à terminologia acima definida por Marcuse. Refiro-me ao facto de as circunstâncias históricas fazerem com que as teorias do progresso nas duas nações assentem em percepções do mundo distintas. Na verdade, enquanto que na Inglaterra setecentista se tornam evidentes apenas os resultados de um progresso quantitativo, resultante dos benefícios materiais da Revolução Industrial que inicia então o seu processo climático, em França a discussão da possibilidade de um progresso qualitativo é inerente à publicitação da necessidade e da legitimidade de uma Revolução política. Apenas em liberdade, igualdade e fraternidade poderá o homem afirmar-se plenamente enquanto tal. Nesta perspectiva se compreende que em Inglaterra e a nível da cosmovisão popular, a existência efectiva de um progresso quantitativo preceda, por um largo período de tempo, o reconhecimento da possibilidade de um progresso qualitativo.

Na minha opinião, a percepção destas diferenças que existem entre a natureza do optimismo francês e do optimismo inglês é de primordial importância. De facto, são elas que nos poderão ajudar a compreender por que razão, no século XVIII, as Utopias francesas seguem um rumo que as Utopias inglesas apenas trilharão décadas mais tarde.

Na França iluminista, a ideia da inevitabilidade do progresso humano veio alterar substancialmente a relação do homem com os três modos do tempo, já que implica plena confiança num futuro melhor. Como explica Krishan Kumar, embora na Europa continue a ser defendida, por certos intelectuais, uma noção cíclica do tempo (como é o caso de Hume, Montesquieu ou Gibbon), assistimos, gradualmente, ao triunfo de uma nova concepção temporal e de uma nova filosofia da história, que privilegia o que é novo, em detrimento do que é antigo (Kumar

1991: 43). E é esta ideia de que no futuro é que se encontra a perfeição que está na origem da mudança radical da filosofia que subjaz à Utopia iluminista francesa. Se o futuro é concebido como potencialmente perfeito, será no futuro que a sociedade ideal deverá ser localizada.

Mas a Utopia iluminista francesa não só incorpora a concretização dos modelos propostos na linha das expectativas históricas, como também marca uma data definida para o evento. Neste sentido, é o tempo (isto é, o futuro) que passa a ser privilegiado. Enquanto que nas Utopias francesas anteriores predominava um conceito espacial que acentuava a impossibilidade de realização dos modelos utópicos, nas Utopias do Iluminismo francês o conceito temporal vincula os ideais avançados à promessa de uma concretização efectiva. Passa-se assim da Utopia à

Ucronia.

Inerente a esta deslocação da Utopia para o futuro, está uma outra alteração, a nível espacial. Já não faz sentido, nesta altura em que se acredita que os ideais poderão ser concretizados, que a sociedade ideal se localize numa ilha remota ou num ponto imaginário e inacessível. A confiança do homem nas suas capacidades intelectuais é estendida às possibilidades sociais do seu país, e nesse sentido será em território nacional que o utopista iluminista localizará a sua sociedade imaginária. Mais ainda: como o progresso histórico é entrevisto como inevitável, ele afectará não apenas a nação em que o utopista vive, mas todas as nações. O projecto utópico atinge assim uma dimensão universal.

A viragem da Utopia para o futuro opera-se pela primeira vez em França com a publicação da Utopia de Louis-Sebastien Mercier, L'An 2440, rêve s'il en fut

jamais, em 1771.6 Depois de uma acesa discussão com um inglês que critica o estado deplorável em que se encontra a nação francesa, o protagonista de L'An

2440 (que é também o narrador da história) mergulha num sono profundo, para

acordar apenas 672 anos depois em Paris, uma cidade cujo rosto se encontra surpreendentemente renovado - limpo, ordeiro, ideal. Trata-se de uma sociedade que não renuncia aos benefícios da civilização material, mas que sabe contornar os problemas e vícios que esta normalmente gera, graças a uma forte aposta na ciência e a uma confiança incessante na razão humana. O monarca da França do século XXV, tendo recebido uma educação cuidada, é um benfeitor genuíno, zelando verdadeiramente pelos interesses dos seus súbditos. Mas o protagonista de L'An 2440 cedo se apercebe, através dos jornais, de que a mudança que afectou os franceses foi operada à escala mundial, da China ao México. Em França, resta apenas do passado aquilo que, na perspectiva dos novos- parisienses, é aproveitável: todos os livros considerados inúteis foram queimados, todas as ideias antigas foram desmanteladas por uma argumentação que informa uma maneira diferente de ver as coisas. Dos tempos idos, identificados com um passado imperfeito, apenas subsistem as ruínas de Versalhes, infestadas de serpentes, símbolos inequívocos do mal político que emanava do outrora deslumbrante palácio. É aí que o protagonista é mordido por uma serpente, acordando definitivamente. Afinal, tudo não passou do sonho (mas a possibilidade de ter sido mais do que isso é enunciada no próprio título, L'An 2440, r0ve s'il en fut

jamais [sublinhado meu]).

A nível da idealização social, o contributo de Mercier não constitui grande novidade para a literatura utópica francesa, já que antes dele outros utopistas haviam apresentado propostas semelhantes. O que é completamente inovador é o meio através do qual Mercier veicula a sua proposta, não falando já de um outro

espaço, mas evocando um outro tempo, que é o tempo do futuro. Com efeito, a

6 Como refere Gabriela Hofmann la Torre, o estudo de Everett C. Wilkie (1984. "Mercier's Lan 2440: It's Publishing History During the Author's Lifetime" in Harvard Library Bulletin 32: 5-35) demonstra que a data da publicação da Utopia de Mercier é 1771 e não 1770, como é geralmente referido. CF. La Torre 1988: 99.

viagem do herói até ao futuro impõe uma alteração substancial à relação que anteriormente unia o real ao imaginário. Nas Utopias renascentistas francesas a sociedade ideal definia-se normalmente por oposição à sociedade real, mas tratava-se de uma relação normalmente intransponível. Nestas Utopias iluministas,

o retrato da sociedade do futuro pressupõe que exista um elo de ligação entre o real histórico e a sociedade ideal. Esse é um elo de uma cadeia de causalidades, que pressupõe que determinadas acções (sobretudo a nível político) proporcionarão as mudanças necessárias para que a sociedade ideal seja concretizada. Mas não nos podemos esquecer de que essa é também uma cadeia

de progresso histórico, de que cada elo representa um estádio mais avançado.

Como salienta Bronislaw Baczko, o tempo de L'An 2440 é um tempo histórico. A história desenrola-se no futuro, mas é um futuro que pertence ao progresso, pressupondo assim uma evolução histórica. Paris transformou-se com o tempo, mas, sobretudo, graças ao tempo. E o progresso que afectou a cidade, a nível arquitectónico e a nível institucional, gerou também um homem novo, com uma mentalidade diferente (cf. Baczko 1979: 172-3). Mas trata-se também de um futuro que pretende cortar com o passado (e a queima dos livros considerados perniciosos é significativa, nesse sentido), que pretende recomeçar a partir do nada. Assim, num duplo movimento, o futuro é evocado como uma continuidade (e portanto uma consequência inevitável do presente), mas também como uma ruptura em relação ao presente.7

A Utopia de Mercier, não é, como a crítica tem vindo a realçar, nem particularmente profética nem muito imaginativa (cf. Baczko 1979:178), mas propõe um quadro narrativo inovador, ao situar a sociedade ideal no futuro e ao conceber o sonho como uma outra forma de viagem até à Utopia. Nesse sentido, L'An 2440 assinala um novo período na tradição de literatura utópica (e note-se que não me

7 Sobre este assunto, comenta Baczko: "II progresso in Utopia si pone come una frattura nspetto ai passato. Una volta realizzata la coicidenza fra i valori e il dover essere e le reata sociali la stona riparte da zero o, se si preferisce, ricomincia a partire da un vero inizio. (...) Na d altro canto H discorso storico connesso all'utopia, non può cogliere tale frattura che come il momento pnvilegiato dl una continuità. La mutazione, coronando l'evoluzione storica che l'ha resa possibile, mette cosi m evidenza la finalità delia storia." (Baczko 1979:178)

cinjo já apenas à tradição francesa mas à literatura utópica em geral), constituindo uma importante renovação do esquema narrativo inventado por More, amplamente seguido até ao século XVIII. Mas a Ucronia,8 assim criada (ou pelo menos propagada) por Mercier,9 provoca uma outra evolução na literatura utópica, que evoquei já neste trabalho.10 A partir do momento em que a Utopia deixa de falar de

um outro espaço para falar de um outro tempo (isto é, quando se transforma em

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