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3.2 Atuação da Equipe Multidisciplinar

3.2.1 Relação com o fato traumático

3.2.1.1 Vítimas Secundárias

Um dos grandes motivadores deste estudo é justamente observar situações que, atualmente, demonstram estar ainda fora da tutela da Lei Maria da Penha e do Estado quando defronte das situações de violência. Dentre essas situações, a questão das vítimas secundárias é talvez a mais cara a esse trabalho, não só por esses indivíduos passarem por violências com pessoas próximas, mas também pela possibilidade de reprodução dessa violência.

Em relação aos efeitos secundários da agressão, é imprescindível citar que os filhos de casais que vivem em ambientes violentos sofrem abalos psicológicos tremendos em decorrência disso. Sobre o tema, MORATO (2009, pg. 47) discorre que “há uma grande parcela de casais em conflito, com pelo menos um filho em comum, ou só do homem ou só da mulher, que está sendo vitimizado secundariamente pela situação de violência que se estabeleceu na família”. Desta maneira, percebe-se que um trauma não superado pode causar um reflexo que domina uma família inteira, transpassando da vítima inclusive para seus filhos de forma inconsciente, como explica CICCONE (1998, pg. 184) expondo que “as histórias dos pais destes pacientes [no caso, as vítimas] são, muitas vezes, marcadas pelos acontecimentos particularmente traumáticos, e que foram transmitidos brutalmente, provocando um excesso de excitações. Estas são palavras brutais que a criança ouve a respeito dos acontecimentos traumáticos (ou a ausência brutal de palavras) que têm um efeito traumático”.

Ainda sob esta mesma ótica, CICCONE (1998, pg. 193) leciona que o “inconsciente se transmite pelo discurso não-verbal, e muito particularmente, quando a mensagem não-verbal contradiz a mensagem verbal”.

Essa conexão negativa e nem sempre verbalizada foi denominada por TRACHTENBERG (2002, pg. 218) como transmissão psíquica transgeracional, fenômeno que teve sua ocorrência explicada de forma muito clara por PRADO (2004, pg. 87), que diz que “ocorrem no espaço dos traumas, dos segredos, dos lutos não elaborados. Constróem-se através dos sujeitos, atravessando seu psiquismo, invadindo-o com violência, passando diretamente de um sujeito a outro, de uma geração a outra”.

Neste aspecto, é relevante pontuar que há conexão entre uma mãe, possível vítima de um desses casos, e um filho que pode nem mesmo ter nascido. CRAMER (1997, p. 158) explica:

“[...]bebê é obrigado a se embeber de receitas de vida experimentadas por várias gerações antes dele. [...] Tem o privilégio de ser impregnado aos poucos de uma sabedoria ancestral, que vai orientar suas predileções, suas aversões e seu modo de se conduzir. Assumindo essa sabedoria, torna-se por sua vez, o veículo de uma cultura e o guardião da memória.”

O que foi exposto demonstra a possibilidade de os filhos carregarem um trauma que é, de forma inconsciente, transpassado pela vítima da agressão. Por mais que não tenham sofrido

diretamente o ato agressivo, percebem a atmosfera terrível que se perpetua na casa e o ambiente inóspito que este se torna.

Além disso, tanto para os que presenciam diretamente a agressão, quanto para aqueles que a absorvem de forma indireta, existe uma grande propensão a repetir essa mesma prática violenta, pois toma como exemplo de postura.

Concernente à possibilidade de reprodução da violência por aqueles que a presenciam em seu seio familiar, MORATO (2009, pg. 48 e 50) faz uma explanação digna de menção:

“A exposição contínua a situações de violência perpetua a repetição do modelo de relacionamento violento proporcionado pela transgeracionalidade. Investir em políticas públicas que minimizem o impacto da transgeracionalidade da violência [...] é fundamental. Isso porque a família é o primeiro espaço social em que o indivíduo constrói suas referências sobre si mesmo e sobre a vida em sociedade.

[...]

Com a interiorização do mundo social na consciência das crianças e todos os seus significados, ela passa a se identificar com esses postulados morais, estabelecendo uma espécie de controle interno que passará a mediar suas interações e a conviver com o controle externo exercido pela sociedade, embora agora em outra dimensão.”

Inclusive, é colocada à luz a reflexão da responsabilidade estatal quanto a acolhida que deve ser feita com as vítimas secundárias desses casos. Ante esse debate, MORATO (2009, pg. 47) discorre:

“Esse fato indica que o Estado, ao não reunir informações necessárias, deixa a desejar quanto ao seu papel na intervenção e análise da violência no casal/família e evidencia desconhecimento sobre o fenômeno da violência transgeracional e o papel fundamental que ela tem na reprodução de tais práticas.

Se a violência é uma construção social, não se pode conceber que o Estado não esteja interessado em mapear, nos processos [...], a existência de sujeitos em situação de vitimização secundária, a fim de aferir o grau de vulnerabilidade que essa população detém, assim como seu potencial de reprodução da violência aprendida.”

Nesse sentido, a reflexão a ser trazida é o fato de que a violência atinge não só a vítima

primária, mas também as diversas e as mais variadas esferas da sociedade, como aos membros da família, aos vizinhos e toda a comunidade que, por muitas vezes, acabam acompanhando cotidianamente os episódios de violência. MORATO (2009, pg. 48) sugere, corretamente, que olhando por esse espectro a “violência no casal é matéria de ordem pública porque ultrapassa questões individuais, que atingem toda a sociedade”.

Demonstrando isso, percebe-se que a atuação da equipe multidisciplinar, como os assistentes sociais e os psicólogos, na sobreposição dos traumas por parte das vítimas tem um papel supraprocessual, exercendo uma função social não somente de ajuda na resolução processual, mas também de prevenção de futuros traumas e de criação de um núcleo familiar com

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