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O valor contido na norma prescricional

4. A NORMA PRESCRICIONAL (GERAL E ABSTRATA)

4.4 O valor contido na norma prescricional

Aceitando o direito positivo como um objeto cultural, porque concebido na linguagem comunicacional, tal qual defende ROBLES137 – um grande facto comunicacional –, resta inevitável reconhecer que o discurso do direito positivo está impregnado de valores, seja na produção dos textos legislativos, seja na aplicação de tais textos pelo poder judiciário, seja na produção de atos administrativos, seja na prática de atos jurídicos privados, etc.

E se o discurso da comunicação em geral está impregnado de valores, como ensina JOHANNES HESSEN138, o discurso do direito positivo também está, inclusive as normas jurídicas, tal qual afirmam MIGUEL REALE.139

E no mesmo sentido, PAULO DE BARROS CARVALHO140 afirma que “o dado valorativo está presente em toda configuração do jurídico, desde seus aspectos formais (lógicos), como nos planos semântico e pragmático. Em outras palavras, ali onde houver direito, haverá, certamente, o elemento axiológico.”

137

ROBLES, Gregorio. O direito como texto: quatro estudos de teoria comunicacional do direito (tradução de Roberto Barbosa Alvez). Barueri, SP: Manole, 2005.

138

HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores (tradução de L. Cabral Moncada). Coimbra: Almedina, 2001.

139

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 2000.

140

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2ª edição, São Paulo: Noeses, 2009, p. 174.

Nesse cenário, o desafio está em identificar qual, ou quais, valores “contaminam” determinada norma jurídica a fim de construir um sentido possível e razoável.

Disso não escapa a norma prescricional. E, em relação à ela, há praticamente consenso na doutrina e jurisprudência no sentido de que o valor que sobressai aos olhos do intérprete é o da certeza do direito e da segurança jurídica, expressamente consignados no preâmbulo e caput do art. 5º da Constituição de 1988141, in verbis:

Constituição Federal de 1988

PREÂMBULO

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

(...)

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

(grifei)

Nesse contexto, considerando os vacilos que sempre contaminaram a doutrina na determinação clara do conteúdo desse valor – girando em torno dos conceitos de segurança, certeza e ordem142 –, o ponto relevante está em saber qual o alcance desse valor e/ou se ele alcança o valor justiça, de modo que se possa levar em conta – ou não – a conduta do titular

141

É oportuno aqui destacar haver opinião em sentido contrário, isto é, que este valor está implícito no texto constitucional.

142

TORRES, Heleno Taveira. Segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Tese apresentada ao concurso público de títulos e provas para provimento do cargo de Professor Titular de Direito Tributário da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2009, p. 22.

do direito de ação na composição da hipótese normativa prescricional (elemento volitivo), a par do elemento temporal (prazo prescricional) que inequivocamente compõe essa hipótese.

Dito de outro modo, pode-se indagar: à luz da segurança jurídica e da certeza do direito, a norma prescricional pressupõe a desídia e o descaso do titular do direito de ação? Eis aí uma grande questão a ser solucionada.

Ora, se a relação prescricional põe fim à relação jurídica tributária material e à respectiva relação processual, tendo como pressuposto a omissão daquele credor, é oportuno investigar as razões (valores) de tal mutilação: se por justiça ou se por uma condição estrutural do sistema jurídico que lhe assegure a estabilidade.

Sobre isto, o saudoso PONTES DE MIRANDA143 defendia que “os prazos prescricionais servem à paz social e à segurança jurídica” e “encobrindo a eficácia da pretensão, atendem à conveniência de que não perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou a acionabilidade”.

Ao tratar do valor segurança jurídica, CARRAZZA144 o coloca sob a perspectiva dos administrados e o relaciona com os conceitos de justiça, certeza e igualdade, in verbis:

O princípio da segurança jurídica ajuda a promover os valores supremos da sociedade, inspirando a edição e a boa aplicação das leis, dos decretos, das portarias, das sentenças, dos atos administrativos etc.

De fato, como o Direito visa à obtenção da res justa, de que nos falavam os antigos romanos, todas as normas jurídicas, especialmente as que dão efetividade às garantias constitucionais, devem procurar tornar segura a vida das pessoas e das instituições.

Muito bem, o Direito, com sua positividade, confere segurança às pessoas, isto é, “cria condições de certeza e igualdade que habilitam o cidadão a sentir-se senhor de seus próprios atos e dos atos dos outros.”

(grifei e itálico no original)

143

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de direito privado. Tomo 6. Campinas: Bookseller, 2000, p. 136.

144

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 26ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 448-449.

Para PAULO DE BARROS CARVALHO145, o valor segurança jurídica também se coloca na perspectiva do administrado, guardando relação com a certeza da mensagem jurídica e a estabilidade das relações jurídicas. Para o autor, a segurança jurídica efetiva-se por meio de outros princípios, quais sejam: certeza do direito, legalidade, anterioridade, igualdade, irretroatividade, universalização da jurisdição, etc. Pode-se concluir que, nesta perspectiva, o valor segurança jurídica está intimamente relacionado à justiça.

Outros autores, contudo, defendem que as normas prescricionais não prestigiam a justiça, mas sim a segurança jurídica, colocando tais valores em posições opostas, isto porque tomam a segurança jurídica do ponto de vista do próprio sistema jurídico (e não dos administrados). Nessa linha, é oportuno citar, por exemplo, o magistério de EURICO DE SANTI146, in verbis:

Cego, tal qual Chronos, o direito, implacável, devora o direito que de sua seiva surge. Decadência e prescrição não são formas de fazer justiça. São formas concretas que o direito encontrou para conviver com esse deus tão poderoso: o tempo.

Sob esse mesmo olhar, na perspectiva do sistema jurídico, CRISTIANO CARVALHO e EDUARDO JOBIM147 afirmam que as normas prescricionais não prestigiam a justiça, in verbis:

Neste sentido, decadência e prescrição não são formas de fazer ajustamento ou justiça, mas modos que o direito criou para conviver com o próprio tempo, trazendo sempre que possível estabilidade ao sistema jurídico.

Mas qual o verdadeiro destinatário do valor segurança jurídica: o sistema jurídico ou os administrados? Segurança para quem?

Tal indagação se justifica diante da lição de HELENO TORRES148, para quem, o valor segurança jurídica, implícito no texto constitucional, assume perspectivas distintas. Fala-se

145

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2ª edição, São Paulo: Noeses, 2009, p. 263.

146

SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no direito tributário. 2ª edição: Max Limonad, 2001, p. 35.

147

CARVALHO, Cristiano e JOBIM, Eduardo. Da prescrição intercorrente de créditos tributários e o art. 40, § 4º, da lei de execuções fiscais inserido pela lei nº 11.051/2004. In CARVALHO, Aurora Tomazini (Coord.). Decadência e prescrição em direito tributário. 2ª edição. São Paulo: MP editora, 2010, p. 197.

em segurança subjetiva para referir-se à certeza ou previsibilidade, como um direito (princípio-garantia) assegurado ao particular ou mesmo de “consolidação de todo o garantismo constitucional tributário” (sic), que prestigia a justiça. Fala-se em segurança objetiva para referir-se à segurança do ordenamento jurídico, como medida de estabilidade do ordenamento jurídico (condição estrutural do sistema do direito positivo), que lhe dá efetividade.149

Abordagem semelhante faz HUMBERTO ÁVILA150. Para ele, esse valor assume diversas perspectivas, dentre as quais, diz ele que, em certas situações, o seu objeto é o ordenamento jurídico (segurança jurídica objetiva), ao passo que em outras o seu objeto reside na proteção do seu beneficiário (segurança subjetiva): um cidadão, os cidadãos, o Estado.

Ora, nem todas as mutilações de direito subjetivo (material e processual) configuram uma penalidade, mas somente aquelas decorrentes de fatos ilícitos. Tome-se como exemplo, extraído do direito eleitoral, a inelegibilidade cominada em função do grau de parentesco com ocupante de mandato eletivo. A condição de ser casado com o(a) prefeito(a) não é vedada pelo direito. Todavia, neste caso, retira-se do marido ou da esposa o direito subjetivo de ser votado enquanto perdurar tal situação. Não creio que esta mutilação configure uma penalidade, eis que o vínculo matrimonial em questão não configura um ilícito. Do mesmo modo, a simples inação do credor não configura um ilícito, ainda que decorrente de sua desídia ou descaso, daí porque não se pode dizer que a relação prescricional é punitiva. Desse modo, não se pode falar em justiça da norma prescricional sob esta perspectiva.

Por outro lado, não parece razoável pressupor ou imputar a inação sem que seja facultado ao credor exercer livremente o seu direito de ação, sob pena de restar um conflito lógico em nível normativo. Dito de outro modo, só se pode imputar a omissão a alguém que goza ou

148

TORRES, Heleno Taveira. Segurança jurídica do sistema constitucional tributário. Tese apresentada ao concurso público de títulos e provas para provimento do cargo de Professor Titular de Direito Tributário da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2009.

149

O autor chama essa segurança objetiva de segurança jurídica por estabilidade sistêmica, que classifica da seguinte forma: estabilidade das formas, temporal, por calibração ou por balanceamento do sistema

(estabilidade funcional) e dos princípios. (TORRES, Heleno Taveira. Segurança jurídica do sistema

constitucional tributário. Tese apresentada ao concurso público de títulos e provas para provimento do cargo de Professor Titular de Direito Tributário da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2009, p. 358-359).

150

ÁVILA, Humberto Bergmann. Segurança jurídica no direito tributário: entre permanência, mudança e realização. Tese apresentada para o concurso provas e títulos para provimento do cargo de Professor Titular do Departamento de Direito Econômico e Financeiro, área de Direito Tributário, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2009.

gozava das condições necessárias para exercer o seu direito e não o fez por opção, ainda que tacitamente. A existência de obstáculos, reais ou normativos, ao exercício do direito de ação afasta a suposta omissão.

Seguindo as lições de LOURIVAL VILANOVA, ensina PAULO DE BARROS CARVALHO151 que as normas jurídicas disciplinam as condutas intersubjetivas por meio de três modais deônticos, apenas, a saber: obrigatório (O), proibido/vedado (Ph ou V) e permitido (P). E um modal pode ser definido em função do outro, com o auxílio do conectivo monádico (negador). A obrigatoriedade de uma conduta equivale a (i) não permitir sua omissão e/ou (ii) proibir sua omissão. Assim, os modais são irredutíveis, mas interdefiníveis152.

Nesse sentido, do ponto de vista lógico, a regra que obriga (O) uma conduta (“deve usar uniforme”, por exemplo) exige uma correspondente regra que permite (P) essa mesma (“pode usar uniforme”), sob pena de remanescer um conflito lógico que impede a eficácia técnica153 da norma jurídica em questão.

Avançando na análise teórica, pode-se dizer que a regra que proíbe (V) uma conduta (“proibido pisar a grama”, por exemplo) exige uma correspondente regra que permite (P) a omissão desta mesma conduta (“pode deixar de pisar a grama”), do mesmo modo que para a regra que permite (P) uma conduta (“pode andar de moto”, por exemplo) exige a regra correspondente que não obrigue (O) conduta diversa (“deve andar a pé”).

Nessa linha de pensamento, no âmbito da lógica, não se mostra razoável ou proporcional imputar a inação ao credor se a sua ação não lhe foi permitida. Logo, se razoabilidade e proporcionalidade são conceitos que se relacionam com a idéia de justiça, é possível afirmar

151

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 205.

152

Cf. VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2002, p. 123-124, e ECHAVE, Delia Teresa; URQUIJO, Maria Eugenia; e GUIBOURG, Ricardo A. Lógica, proposición y norma. 5ª reimpresión. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1999, p. 95-96 e 123-124.

153

O conceito de eficácia técnica aqui empregado corresponde condição da regra jurídica para gerar efeitos jurídicos, removidos os obstáculos materiais ou as impossibilidades sintáticas (Cf . CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2010, p. 101- 102). Ele ensina que a ineficácia técnica de uma norma pode ocorrer, dentre outras hipóteses, quando existir outra norma inibidora de sua incidência. (Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2ª edição, São Paulo: Noeses, 2009, p. 414).

que, se de um lado, a norma prescricional prestigia a segurança e não a justiça, por outro, a sua aplicação não pode restringir esta última.

Isto posto, creio que ambas as posições e corretas. A norma prescricional prestigia, portanto, o valor segurança jurídica sob duas perspectivas distintas. Do ponto de vista do sistema jurídico, ela prestigia a sua estabilidade, como condição estrutural do sistema. Já do ponto de vista dos administrados, ela prestigia a justiça.