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CAPÍTULO 2 O ASPECTO VERBAL

1. Variação e Composicionalidade

A consideração de que o aspecto é uma categoria composicional está muito bem difundida e explorada na literatura sobre o assunto. Independentemente do ponto de vista a partir do qual se faz sua abordagem, e a despeito de toda a discordância que pode haver no emprego da terminologia para distinguir tipos de aspectos, se há algum consenso entre os estudiosos de tal categoria é o de que vários elementos numa sentença podem interagir na produção de um valor aspectual.

Se a forma verbal flexionada (simples ou perifrástica), os argumentos internos (no caso dos verbos transitivos), o argumento externo e os adjuntos adverbiais (em que se incluem as oracões subordinadas) fazem parte desse complexo composicional, a idéia de variação parece natural. Sendo a língua em uso tão dinâmica, é difícil imaginar que um mesmo aspecto não possa ser veiculado por diferentes combinações de tais elementos.

Neste trabalho, em conformidade com os pressupostos teóricos e metodológicos delineados no capítulo anterior, EG e TP são construções perifrásticas que desempenham papel principal na composição dos aspectos durativo e iterativo. Quanto aos demais elementos das sentenças em que elas aparecem, eles são observados no papel de coadjuvantes, mas também são tomados como variáveis que podem estar envolvidas na seleção de uma ou de outra perífrase.

Como esta seleção pode estar diretamente relacionada com a própria noção aspectual a ser composta na sentença, é imprescindível esclarecer como os termos

durativo e iterativo são aqui empregados; sua definição é feita no item 2, mais adiante,

conjuntamente com a exploração das relações entre EG e TP, de um lado, e os demais elementos aspectualizadores na sentença, de outro. Antes, contudo, há que se verificar

qual é o lugar ocupado pela distinção dos verbos em tipos semânticos nesta pesquisa variacionista.

1.1. Classes semânticas de verbos

Na referida "interação" de elementos na composição do aspecto, é comum que o primeiro enfoque recaia sobre o verbo, enquanto item lexical e enquanto núcleo de sentença1. Em alguns trabalhos recentes, notadamente aqueles que seguem mais de perto a teoria de Verkuyl 1993 e 19992, às características aspectuais do verbo "em estado de dicionário"3 não é dado um lugar de especial destaque, pois neles tal lugar é ocupado pela relação entre o verbo e seus argumentos. Por outro lado, num grande número de trabalhos, juntamente com a predicação verbal na sentença, revela-se a necessidade de operar com classes aspectuais de verbos4.

No presente trabalho, vamos lançar mão das categorias semântico-aspectuais de Vendler 1967. Apesar das críticas que lhe podem ser tecidas, sobretudo com base na relatividade de sua classificação quando se comparam línguas diferentes, e no fato de que pode haver controvérsia no tocante ao nível da gramática em que a classificação deve ser de fato feita (no léxico ou no VP), a proposta do autor é no mínimo "instrutiva", nas palavras de Ilari & Mantoanelli 1983.

Ademais, suas classes semântico-aspectuais não são tomadas aqui de um modo que pode ser rotulado de "tradicional", em que o tipo de verbo dá como que uma "indicação" - uma tendência - do aspecto que vai ser expresso na sentença, podendo ela ser confirmada ou alterada com a flexão verbal, e com os argumentos e adjuntos - conforme detecta Castilho 2000 em sua apreciação da história da aspectologia. Do mesmo modo, a tomada da noção de classes não encontra seu lugar numa teoria aspectual

1

"Núcleo" de sentença no sentido tradicional, bem entendido. 2

Cf. Wachowicz 2003. 3

Tais características são comumente referidas por "aspecto inerente" (Campos 1999), Aktionsart (Castilho 1968, Castilho 2000) ou ainda, numa tradução do termo germânico, "modo de ação" (Castilho 1968, Travaglia 1981, Costa 1997).

4

Para citar apenas alguns deles: Ilari & Mantoanelli 1983, Viotti & Scher 2000, Gonçalves 2003 e Scher 2004.

que busca perscrutar as relações entre aspecto e "modo de ação"5 e que pergunta, por exemplo, quanto de iterativo o verbo "saltitar" tem enquanto item lexical.

Para os propósitos deste trabalho, é menos relevante considerar que o verbo “saltitar” lexicalmente remete a uma série de pequenos saltos (o que permitiria o uso do termo "iteração inerente"), e interessa mais esclarecer que:

(i) iteratividade é um aspecto cuja interpretação se dá na contextualização de uma sentença; desse modo, não convém empregar o termo iterativo na referência ao verbo enquanto item lexical;

(ii) dependendo do sentido aspectual a ser composto na sentença, e possivelmente das características de "saltitar" ou qualquer outro verbo enquanto item lexical, o uso de EG ou TP pode ser favorecido.

Assim, a pesquisa que aqui se apresenta aproxima-se das considerações de Verkuyl 1993 na medida em que o próprio termo aspecto é empregado para denominar uma categoria que se atualiza composicionalmente na sentença. Distintamente, porém, a proposta vendleriana - cuja importância é minimizada em Verkuyl 1993 - é aqui contextualizada nos termos da variação: vamos considerar a hipótese de que certos tipos de verbos podem oferecer restrição ao emprego de uma ou de outra construção perifrástica. Dito de outro modo, as classes de Vendler 1967 são aqui tomadas num grupo de fatores, e como tais podem ser quantitativamente controladas.

Acerca dessa hipótese, vale enfatizar imediatamente que ela não é aventada com expectativas de uso categórico - embora seja essa uma observação bastante óbvia, em virtude mesmo da base teórica em que esta pesquisa se sustenta. Isto quer dizer que o termo restrição não está sendo aqui empregado do mesmo modo como pode sê-lo na língua francesa, em que verbos de mudança de estado ou de posição (entrer, sortir,

naître, mourir, etc) não podem figurar na estrutura avoir + participe passé

(correspondente ao TP do português); ou ainda na inglesa, em que verbos estativos

5

típicos (want, know, belocative) não são comumente encontrados na construção be + gerund6.

À maneira da regra variável, o termo restrição é aqui aplicado no sentido de que certos tipos de verbos podem estar correlacionados à seleção de TP ou EG, favorecendo seu emprego em determinados contextos, enquanto que outros tipos de verbos podem inibir o seu uso, naqueles mesmos contextos ou em outros, sem necessariamente bloqueá- los.

Vendler 1967 desenvolve sua proposta basicamente a partir dos verbos do inglês, separando, numa primeira distinção, os verbos que podem ser conjugados tanto na forma simples como na progressiva (be+gerund) daqueles que só podem ser conjugados na forma simples. Num segundo nível de distinção, aqueles que podem ser conjugados em ambas as formas são subdividos em accomplishments (quando são inerentemente durativos e télicos) e em activities (quando são inerentemente durativos e atélicos). Os verbos que só podem ser conjugados na forma simples são subdivididos em states (inerentemente durativos e atélicos) e achievements (inerentemente pontuais e télicos).

Os testes empregados para a classificação de um determinado verbo, segundo o quadro sinótico abaixo, envolvem a detecção de um esquema temporal que se define, portanto, pelos traços [durativo/pontual] e [télico/atélico]; os verbos de estado se destacam ainda pelo traço [- dinâmico], em oposição a todos os outros. A noção de

inerência remete ao fato de que a classificação se dá num nível lexical, mas o próprio

Vendler reconhece que a classificação de um mesmo verbo pode ser diferente, dependendo de especificidades de outros elementos envolvidos no predicado, ou seja, no nível da sentença.

6

Estes casos de restrição categórica, imposta pela classe verbal, nas línguas francesa e inglesa serão retomados e melhor exemplificados no capítulo 5, quando da apresentação dos resultados da análise quantitativa.

accomplishments

[+ dinâmico] [+ durativo] [+ télico]

aceitam a pergunta "quanto tempo levou para...?, mas não aceitam "por quanto tempo...?"

Quanto tempo levou para você correr uma

milha?

*Por quanto tempo você corre / está correndo uma milha?

escrever o livro, corrigir a(s) prova(s)

atividades [+ dinâmico] [+ durativo] [- télico]

aceitam a pergunta "por quanto tempo...?", mas não aceitam "quanto tempo levou para...?"

Por quanto tempo você trabalha / está

trabalhando?

* Quanto tempo levou para você trabalhar?

escrever, corrigir prova(s), correr

estados [- dinâmico] [+ durativo] [- télico] correspondem à pergunta "há quanto tempo...?"

Há quanto tempo você tem /*está tendo esse carro?

gostar, querer, saber

achievements

[+ dinâmico] [- durativo] [+ télico]

correspondem à pergunta "quando...? / a que horas..."

A que horas você chegou? Quando ele morreu?

cair, terminar

Duas observações devem ser feitas a respeito desse quadro. Inicialmente, a primeira grande distinção observada por Vendler 1967 para os verbos em inglês, de acordo com a qual estados e achievements não podem ser conjugados na perífrase correspondente a EG, não é totalmente válida em português:

(01) Eu estou gostando de ir ao cinema durante a semana. (02) * Eu estou tendo um carro.

(03) Ele está morrendo. (04) As pessoas estão morrendo.

Diferentemente do inglês, estativos podem ocupar a posição de verbo principal com EG. O exemplo (02) traz um caso especial em PB, que se assemelha ao inglês. Quanto aos achievements, embora sejam possíveis com EG, elementos quantificadores levam a diferentes interpretações - o aspecto em (03) é o progressivo, e em (04) a leitura mais direta é a iterativa.

A segunda observação é a de que os exemplos de verbos accomplishment e de atividade dispostos no quadro acima ilustram o que notamos anteriormente: um mesmo verbo, enquanto item lexical, pode ser classificado diferentemente dependendo da natureza semântica de seu argumento interno (corrigir prova vs. corrigir a prova vs.

corrigir as provas), ou ainda de sua transitividade (correr vs. correr uma milha).

No entanto, para os interesses da análise quantitativa que será posteriormente apresentada, mais saliente que a classificação dos verbos em si é a possível relação entre as classes e a seleção de EG ou TP na composição de dois valores aspectuais distintos. Por conta disso, a discussão da proposta vendleriana delineada acima é retomada logo antes da apresentação dos resultados, nos capítulos 4 e 5, dada sua pertinência à definição do contexto variável. Neste ponto, é preciso verificar como o durativo e o iterativo se distinguem, numa tipologia do aspecto.