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1.3 Aspectos Fonético-Fonológicos da Linguagem

1.3.1 Fonética e fonologia

1.3.1.2 Variação fonética: visão histórica

No século XIX, precursores da fonética moderna, como Jespersen, Jan Baudouin Courtenay entre outros, já se davam conta da necessidade de distinguir tipos fonéticos, mais ou menos próximos, e suas relações, quer dizer, tentavam estabelecer um estudo sistemático da variação dos sons no âmbito dos sistemas fonológicos. Houve por parte de Courtenay, uma tentativa para definir o fonema como equivalente psíquico do som e que seria estudado pela psicofonética. Outras tentativas de definição do fonema enfatizando o lado psicológico foram surgindo. Por exemplo, para o lingüista norte-americano Sapir (1944), os fonemas seriam “[...] sons ideais que os falantes intentam produzir e os ouvintes crêem escutar”. Trubetzkoy,

a princípio, mantinha esta visão psicológica, somente mais tarde definiu o fonema em termos funcionais.

Aqui vale discutir o posicionamento de Saussure (1857-1913), com sua dicotomia “língua/fala”. O professor suíço foi o primeiro a estabelecer que a linguagem humana compreende dois aspectos: a língua, que representa o código comum a todos os falantes da língua em questão, e a fala, que é a materialização da língua em situação de uso de cada indivíduo em uma comunidade. Podemos dizer, então, que a fonética relaciona-se à fala, com suas particularidades, e a fonêmica relaciona-se à língua em termos de sistema lingüístico. A fala seria estudada pela fonética acústica e articulatória, e a língua, em seu conteúdo, pela fonêmica.

Quando falamos emitimos uma série de sons, porém, estes sons no momento de sua produção podem estar, ou não, condicionados por determinados contextos fônicos que os circundam. Em português, por exemplo, temos o fonema /k/ plosivo, velar, desvozeado que, foneticamente, pode ser produzido com a propriedade secundária de labialização quando seguido de uma vogal arredondada, /Ǥ,o,u/, como em “cubo” [‘kwubwu]; ou com a propriedade secundária de palatalização quando é seguido de vogais anteriores, /i,e,ǫ/, principalmente, diante do /i/, como em “quilo” [‘kjilwu]. Estas diferenças fonéticas não alteram o significado das palavras e são tão sutis que o falante nativo não chega a percebê-las.

Em outra situação, é possível que uma pessoa, ao se encontrar no estágio de avanços e retrocessos em relação às convenções da norma ortográfica, isto é, sem dominar totalmente as regularidades e irregularidades desta, escreva a palavra “casa” conforme a sua pronúncia ca[z]a. Figueiredo (1991, p.67), ao estudar as “interferências fonéticas na ortografia”, diz que o processo revela a grande dificuldade de apropriação da escrita na relação fonema, som e letra. Se, por um lado, demonstra a tendência de pessoas semi- alfabetizadas e de pouca formação escolar de transporem para a escrita os sons emitidos na fala, por outro lado, torna-se, cada vez mais recorrente, hoje em dia, o uso de traços de oralidade na escrita com finalidade estilística, tanto na publicidade como na propaganda, e, dependendo do contexto, um falante pode improvisar uma fala diferente ao realçar as vogais abertas, a lentidão ou outros processos da prosódia para caracterizar a situação do momento, o falar de uma região ou para provocar risos.

Numa relação desse tipo, a letra ou grafema pode ser realizado por diferentes sons que podem representar fonemas ou alofones (variantes fonéticas). Quer dizer, não há uma correspondência biunívoca obrigatória entre letra e som, cada grafema pode corresponder a diferentes fonemas, e um único fonema, a vários grafemas. Em português, por exemplo, o som [z] pode ser representado pelos grafemas “z”, “s” ou “x”, como em “zebra”, “zero” [‘zebȎa – ‘zǫȎu]; pelo “s”, como em “casa” [‘kaza]; pelo “x”, como em “exame” [e’zâmi]; o som [s] pode ser representado, ortograficamente, pelo “s”, como em “seis” [‘seis], pelo “ss”, como em “pássaro” [‘pasaȎu], pelo “ç”, como em “caça” [‘kasa], pelo “x”, como em “auxílio” [aw’silju]; em outros casos, pode haver a combinação de letras “lh”, “nh”, “ch” para indicar um determinado som [Ȟ], [Ȃ], [ȓ], como em “mulher”, “ninho”, “chuva” [mu’Ȟǫ – ‘nîȂu – ‘ȓuva]; ou uma única letra, representando mais de um som, como o “x” na palavra “sexo” [‘sǫksu]; ou ainda, em que uma letra pode não ter correspondente sonoro, como o “h” em “hoje” [‘oƗi].

Os fonemas e suas variantes são identificados por meio de critérios de oposição, distribuição complementar, semelhança fonética e variação livre. Pelo critério de oposição distinguimos os fonemas de uma língua, isto é, os sons que têm valor distintivo. O procedimento é buscar dois signos idênticos, em todos os seus aspectos, exceto em um segmento, são os chamados pares mínimos. No caso dos róticos no PB, por exemplo, podem ser encontrados, contrastivamente, dois tipos de róticos na posição intervocálica, um vibrante múltiplo /r/ e outro vibrante simples /Ȏ/: murro/muro; erra/era. Nas demais posições, a realização fonética do rótico é variável e, dependendo da região, pode alternar com as fricativas [x], [h] e com o [Ø]. O método dos pares mínimos foi desenvolvido no modelo estrutural, mas é utilizado por outras teorias porque permite determinar os fonemas que os falantes reconhecem como elementos do seu sistema fonológico de forma objetiva.

O critério para agrupar ao alofones como variantes de um mesmo fonema chama- se distribuição complementar. Segundo este critério se dois fones ocorrem em ambientes exclusivos, eles podem ser considerados como alofones de um mesmo fonema, em outras palavras, onde uma das variantes ocorre, a outra variante não ocorrerá. Por exemplo, podemos ilustrar com a distribuição dos alofones róticos [h, Ƕ, x, dz] em posição pós-vocálica, em que [h], [x] ocorrem antes de consoantes desvozeadas, como em “porta” – po[h]ta, po[x]ta, e [Ƕ],

[dz] ocorrem antes de consoantes vozeadas, como em “corda”- co[Ƕ]da, co[dz]da, caracterizando uma alofonia posicional. São variantes posicionais quando “[...] os sons tendem a ser afetados por seus contextos lingüísticos”. (PIKE, 1947). Estes contextos podem ser:

– efeitos dos sons vizinhos;

– a posição em ocorrência em unidades maiores (sílaba, palavra, sintagma); – efeito de elementos supra-segmentais (acento, tom);

– informações lexicais, como nome, verbo, adjetivo.

Há um tipo de alofonia que não depende do contexto, em que os alofones são chamados variantes livres. O falante pode usar uma ou outra pronúncia. Por exemplo, é variação livre, em português, a alternância de vogal oral e nasal em posição pré-tônica. “Em vários dialetos do Nordeste do Brasil toda vogal (tônica ou pré-tônica), seguida de consoante nasal é obrigatoriamente nasalizada: ‘c[ã]ma’ e ‘c[ã]mareira’”. (SILVA, 1999, p.121). A execução do r ortográfico em posição inicial, dependendo da região, pode manifestar-se como uma fricativa [x,h], ou como um tepe [Ȏ], isto é, há variação livre desses segmentos, como em “rato” – [x]ato, [h]ato, [Ȏ]ato.

Quer se tenha uma vibração múltipla da língua junto à arcada dentária superior, ou uma vibração do dorso da língua junto ao véu palatino, ou uma tremulação da úvula, ou apenas uma forte fricção de ar na parte superior da faringe, as formas em que aparecem essas execuções, tão diversas, continuam a ser uma forma lingüística única, no seu uso e sentido. (CÂMARA JR., 1976, p.15-6).

Numa visão atual, teorias que estudam a variação lingüística demonstram que a variação livre, na verdade, é condicionada por fatores estruturais e/ou extralingüísticos, como sexo, idade, grau de escolaridade, localização geográfica, dentre outros. Enquanto alguns estudiosos enfatizam o aspecto contrastivo (CALLOU et al., 1996; OLIVEIRA, 1983; MONARETTO, 1997), outros discutem, também, os aspectos variáveis, como no nosso caso. Dessa forma, a variação atestada nos sistemas sonoros pode expressar, não somente, aspectos distribucionais, mas também outros aspectos, como os sociais e psicológicos.

O que tipicamente é caracterizado como sendo um determinado som pelo Alfabeto Internacional Fonético, digamos p, de fato ele tem múltiplas representações numa mesma língua, embora possa ser interpretado como pertencendo a uma mesma categoria segmental naquela língua. (SILVA, 2006, p.14-4).

Segundo Albano (1999, p.23-50), a informatização dos programas de análise acústica desencadeou a instalação de laboratórios de fonética experimental no Brasil, conseqüentemente, as análises acústicas começaram a revelar detalhes, antes, não captados pelas análises impressionísticas.

Apesar de todo este avanço, notamos que ainda há uma escassez de estudos acústicos e articulatórios sobre os róticos (sons relacionados ao r). Estes sons, por sua complexidade articulatória, apresentam problemas tanto na sua produção, como na sua descrição e uma grande variação na sua realização fonética. A esse respeito Abaurre; Sândalo (2003, p.174) observaram que:

A maioria dos trabalhos em fonologia do português se baseia em transcrições de ouvido, exclusivamente, o que freqüentemente acarreta erros. É importante salientar que estes erros de transcrição podem, em grande parte das vezes, levar a erros de análise.

Cagliari (1997, p.11), afirma que, “[...] de um modo geral, as fonologias não- lineares estão baseadas quase que exclusivamente na fonética articulatória, não tendo incorporado (ainda) a fonética tal qual praticada nos laboratórios de fonética”. Head (1987, p.22), no seu trabalho sobre o ‘r caipira’, ressalta a importância de pesquisas com dados de análise instrumental, em laboratório de fonética, a fim de detectar de forma mais precisa as semelhanças e diferenças articulatórias, acústicas e auditivas entre as variantes. Pesquisas nesse sentido poderiam, também, ajudar a esclarecer a questão das diferenças de grau manifestadas nos processos articulatórios.